quinta-feira, julho 11, 2019

Kodi Lee, o extraordinário autista cego e savant




Sou muito adepta de receber estagiários. Muito do rejuvenescimento das minhas equipas acontece por essa via. Aparecem desejando aprender, mente aberta a tudo, a receber ensinamentos, a interiorizar experiências, a pôr em prática o que aprenderam. E aparecem sem vícios, verdinhos, prontos para os primeiros passos, dispostos a fazerem-se à vida. E não sou de querer moldar nem de ser dirigista. Naqueles assessments de que muitas vezes aqui falo, durante os quais somos avaliados sob todas as perspectivas por subordinados, pares e  hierarquias e virados do avessos por psicólogos, é unânime que o meu estilo de liderança é outro: não sou de dirigir, de mandar fazer isto, aquilo e o outro, não sou de andar em cima. Pelo contrário, sou de lançar desafios, alguns de loucos, atirá-los para a piscina, pô-los a fazer aquilo com que nem sonham. E não ando em cima a ver como estão a desembrulhar-se: nem quero saber. Vão à procura, peçam ajuda, o que quiserem. Limito-me a perguntar se está quase, se está tudo bem. E quando vejo que a coisa já está quase no ponto, peço para ver o que fizeram, dou uns palpites, umas sugestões. E mal acho que a coisa está como eu a idealizei (e tantas vezes além do que idealizei!), atiro-os para a frente, quero que sejam eles a apresentar o trabalho que fizeram, dou-lhes visibilidade. 

E vejo-os felizes -- e tenho cá para mim que não há nada mais aliciante na vida do que a gente perceber que é capaz de se superar.

E depois tenho uma coisa e digo-o com toda a sinceridade (aliás, sempre o faço): acredito que uma pessoa é gente de pleno direito desde que nasce. Quando eu pedia a opinião aos meus filhos não o fazia por maneirismo, fazia-o porque genuinamente queria conhecer a sua opinião. Desde pequenos, sempre os respeitei. Pensem de maneira diferente ou idêntica à minha, eu aprendo sempre com eles. Acontece-me o mesmo com os meus netos, mesmo com o pequenino de dois anos. Gosto de saber o que pensam, admiro-me com o que sabem, com o que são capazes de fazer.

E com os jovens estagiários a mesma coisa: quero ouvir a sua opinião, quero que sugiram maneiras diferentes de fazer as coisas. E surpreendo-me com a qualidade das suas ideias.

Mas tem-me acontecido uma coisa de que já aqui falei algumas vezes. 

Quando seleccionamos os jovens nem sempre tenho oportunidade de estar presente. Mas tento. E acontece tantas vezes aparecerem jovens que surpreendem pela impreparação para a vida, incapazes de mostrarem um querer, uma vontade, de saberem o que querem na vida, que falam dos pais como se ainda fossem crianças pequenas e, no entanto, já andam pelos vinte e tais, que querem saber como se vai de casa para lá mesmo quando vivem perto, como se não estivessem habituados a andar de transportes. Com muita pena, muitas vezes não os quero. Tenho arriscado em casos em que aparecem cheios de timidez, ainda sem saber estar, sem à vontade. Mas se sinto que são lutadores, em especial se sinto que vieram de longe, que passam dificuldades, que fazem de tudo para se virar, aí sinto imediatamente que tudo farei para que 'vinguem'.

Mas há casos e casos. 

Há tempo apareceu um jovem que, na entrevista, falou pelos cotovelos, quis impressionar, mal eu começava a falar já ele estava a responder mesmo que não àquilo que eu tinha perguntado. Um jovem inquieto, desconcentrado, nervoso. Tentei acalmá-lo, tentei tirar a pressão. Impossível. Notoriamente um caso problemático. 

Ficou.

E foi um caso muito sério. Nunca conseguiu fazer um trabalho, nunca conseguiu prestar atenção a nada do que se lhe dissesse. Brincava com o telemóvel, sempre a fazer jogos.

Entrava e saía do elevador, atropelando toda a gente, auscultadores, isolado do mundo, agarrado ao seu brinquedo, aos joguinhos. Outras vezes, se era chamado à atenção, por instantes desligava-se do telemóvel mas, nessas alturas, as suas inabilidades sociais eram ainda mais gritantes: interrompia toda a gente, inoportuno, inconveniente.

Muitas vezes nos interrogámos se não seria autista. E todos dizíamos que autista ou outra coisa, alguma coisa era, normal é que não era.

E eu pensava tantas vezes na preocupação da mãe dele. Tanto que ela deveria querer que ele aproveitasse a oportunidade que lhe estávamos a dar.

Grande parte dos jovens estagiários acaba por ficar e tomara eu que não mudem de ideias. Já lá esteve um, talentoso, uma inteligência rara, tímido que só visto mas um diamante em bruto. Toda a gente o queria. E ele não quis. Queria ir fazer mestrado para Praga, queria conhecer mundo, não queria emprego fixo. Por mais que o aliciássemos, nada. Até que desistimos, percebemos que nada a fazer, era pássaro de arribação, nada o atraía para ficar. Desejámos-lhe felicidades e que voltasse para nós quando quisesse.

Mas com aquele jovem problemático foi o oposto: não pôde ficar, não conseguimos que se interessasse por nada, que aprendesse a fazer o que quer que fosse. Impossível. Deveria ter apoio especial, tratamento, acompanhamento especializado. Não sei que tipo de tratamento ou acompanhamento mas sei que ele não tinha a mínima possibilidade para se aguentar no mundo do trabalho.

E eu continuo a pensar no que será o futuro daquele rapaz e na preocupação terrível que os seus pais devem ter vendo-o já na idade adulta e ainda com um comportamento tão pouco responsável, tão indiferente ao meio em que se insere.

Mas mesmo que fosse mesmo autismo, nem todos os tipos de autismo são assim. É sabido que empresas como o Facebook ou a Google gostam de contratar autistas: penso que, quando se focam num assunto, não largam e, além disso, como pouco socializam, não apenas são muito produtivos como não conversam nem contam o que andam a fazer.

E depois há o Asperger, versão mais ligeira, como ainda no outro dia aqui o referi a propósito de Greta Thunberg. Mas há também os que sofrem de autismo profundo, vivendo num mundo só seu. Imagino como os pais devem sofrer por não conseguirem entrar no mundo de um filho impenetrável.

O vídeo que abaixo mostro impressiona muito. Emociona-me. É extraordinário sob todos os pontos de vista e peço que o vejam. Mas não é apenas o Kodi Lee que me emociona: é também a sua mãe. A presença daquela mãe, a alegria dela, o orgulho dela. E a reacção dele, no fim. Tudo me perturba, tudo me faz pensar que não sabemos nada da natureza humana, que não somos capazes de aceitar as diferenças em toda a sua maravilhosa extensão, que, ao sermos preconceituosos, mostramo-nos mesquinhos, limitados, imperfeitos.

Kodi Lee ganhou um botão dourado


[E se o vídeo do post a seguir alcançou mais de três milhões em menos de um dia, este aqui abaixo já vai em quase trinta e oito milhões de visitas em cerca de mês e meio]



Kodi Lee is a 22-year old blind and autistic musical prodigious savant. Kodi’s truly remarkable gift lies within his musical expression, perfect pitch, and passion for music in all forms. He has been performing his singing and piano expertise all across the globe for many years. His musical repertoire ranges from rock, to jazz, to R & B, and pop. Plus his mastery of the classics such as Bach, Beethoven, Chopin, Mozart and the list goes on. But he doesn’t stop there. He recently has picked up tap dancing and he continues to amaze with his musical expression through dance and vocalization. Kodi’s story and inspirational determination has been featured in Orange County Register, LA Times, numerous broadcast television features and documentaries. Born with optic nerve hypoplasia, surviving a life saving surgery at 5 days old, and being diagnosed with autism at an early age has never stopped Kodi. Kodi continues to pursue his musical career and his dream is to be a “rock star!"
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Usei pinturas de Bang Hai Ja para dar alguma cor às minhas palavras

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E a todos desejo um dia feliz

2 comentários:

Isabel disse...

O video é emocionante. O jovem tem uma bela voz. Não é fácil educar um filho, mais ainda quando ele tem problemas. É uma dedicação a tempo inteiro. Esta mãe teve esta felicidade merecida.

Tenho vindo aqui espreitar, mas não tenho comentado, porque tem sido uma fase muito ocupada. Mas venho sempre espreitar.

Beijinhos:))

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel,

A precisar de férias, não, Isabel? Tomara que os seus dias acalmam e que uns merecidos dias de descanso se aproximem.

E é isso, Isabel, a alegria do Kodi e a emoção da mãe são emocionantes. Tão bom que deve ter sido para ela, não é?

Beijinhos, Chabeli.