In heaven, em paz, numa noite do fim de Julho. Enquanto vejo um filme - no qual duas mulheres se aproximam e se afastam, amores e desamores, pele contra pele, lágrimas, gritos, abraços - vou revendo as imagens de hoje à tarde.
As figueiras estão carregadas mas os figos ainda estão pequenos, rijos, verdes. Percorrem os mesmos caminhos que os cavalos azuis que por aqui passam em tropel enquanto, sonolenta, deslizo entre o sono e a leitura, o sono e o sonho.
Os marmeleiros também têm marmelos, não muitos mas já a amarelecer. De longe parecem reluzentes mas, vistos de perto, estão cobertos por dócil penugem. Quando estiverem mais maduros libertarão um odor doce. Os figos também. Tal como os loendros agora. E o rosmaninho, o alecrim, o alfazema, o tomilho, os orégãos. E os pinheiros e os cedros. De todos se solta o doce perfume que atrai os cavalos azuis, os dançarinos nus, os pássaros misteriosos que cantam sem que eu os veja, as sombras cúmplices, o tempo que passa com vagar.
O sol vagueia pelos muros, entra em casa, ilumina os meus passos, e eu quase durmo, deitada a ver o céu sobre a copa das árvores ou as árvores do lado de lá dos vidros.
Não dormi, estava a ler, mas estava com muito sono, fechava os olhos, quase adormecia, e a luz do fim da tarde e os sons e os cheiros embalavam o meu corpo agradecido.
E chegaram-me mensagens, palavras brincalhonas escritas por um menino que já tem seis anos e depois foi o irmão que quis falar comigo, disse que queria vir para cá. Disse-lhe que estamos quase de férias e que, não tarda, virão todos para cá. Depois, começaram os dois a dizer palermices e a rir, e depois pedi ao mais pequeno que cantasse o hino porque não há igual. A plenos pulmões, cantou com aquela energia fantástica que se lhe conhece, 'Às ajas! Às ajas!'. Sei que não se deve rir quando alguém canta o hino mas como resistir a este hino...? Claro que ninguém o corrige, fica melhor assim, às asas, às asas. Além disso, como lhe iríamos explicar o que são armas?
Já de manhã tinha estado com os meus outros meninos, já chegados do sul. O bebé, quase a fazer dois anos, já sobe sozinho as escadas do escorrega e grita, 'Eu conchego!'. E consegue mesmo. Trepa muros, sobe escadas de rede (embora, por vezes caia, claro) e fala quase como gente grande. A maninha linda, de vestidinho florido, rodopia, coquette, e vai dar-lhe um beijinho.
Também telefonei aos meus pais, estão bem, o meu tio esteve lá, estiveram a conversar mas, para o fim, como sempre, o meu pai já estava impaciente. Conversar ou ouvir conversar durante muito tempo, cansam-no. Mas está bem. Este domingo à tarde lá estarei. Comprei de tarde, antes de vir para cá, dois Pães de Deus da Padaria Portuguesa para lhes levar, são muito fofos e cremosos e eles gostam muito. Se já houvesse figos ou marmelos maduros, levaria. As uvas também ainda estão verdes. O que está maduro são as amoras, adoro comer amoras escuras e doces. Por vezes, fico picada, as silvas são ariscas. Mas não é coisa que lhes leve, ficaria toda picada se tentasse apanhar uma quantidade que se visse.
Tenho sempre pouco tempo para estar aqui no campo, sossegada, mas o tempo aqui parece que dura mais tempo, é uma tal acalmia.
Ao anoitecer caíu uma leve neblina e a serra aparecia-me suavizada, em contra-luz. É lá que o sol se põe e, em dias de muito calor, o céu fica em chamas. Não hoje que o sol estava dourado e depois se deixou envolver pela fresca névoa que trouxe a noite.
Gostava de poder ficar cá já esta semana, estou a precisar de descansar. Chega a esta altura do ano e começo a ficar cansada. De cada vez que alguém me entra no gabinete a dizer que temos um problema só me apetece que o vão resolver e que, só depois, me venham falar nele, mas, se fazem favor, com os verbos no passado, tivemos um problema. Mas não é possível, ainda tenho que pôr a minha resistência à prova por mais uns tempos. Mas não me queixo. Como poderia queixar-me se tenho trabalho, se sou respeitada, se sou remunerada pelo que faço? Não, por todas as pessoas que queriam ter trabalho e não tem, ou que têm um trabalho de que não gostam ou que não se sentem reconhecidas ou recompensadas, por todas as pessoas que, para terem trabalho, tiveram que se afastar do país, eu tenho que sentir-me agradecida pela sorte que tenho e desejar que todos esses venham, em breve, a ter também sorte. A desigualdade fere-me.
Por isso, pelo que tenho, sinto-me agradecida, sim. E sinto-me tanto mais agradecida quanto tenho a sorte de ter descoberto, em vida, a parcela de paraíso que me estava destinada, este bocado de terra de cujas pedras nascem árvores carregadas de fruta e de pássaros, e flores que perfumam o ar doce que respiro.
E tanto mais agradecida quanto sei que, junto a mim, estão todos vocês, a receber estas minhas palavras que espero que cheguem intactas e limpas até vós.
Obrigada por estarem aqui comigo.
Também telefonei aos meus pais, estão bem, o meu tio esteve lá, estiveram a conversar mas, para o fim, como sempre, o meu pai já estava impaciente. Conversar ou ouvir conversar durante muito tempo, cansam-no. Mas está bem. Este domingo à tarde lá estarei. Comprei de tarde, antes de vir para cá, dois Pães de Deus da Padaria Portuguesa para lhes levar, são muito fofos e cremosos e eles gostam muito. Se já houvesse figos ou marmelos maduros, levaria. As uvas também ainda estão verdes. O que está maduro são as amoras, adoro comer amoras escuras e doces. Por vezes, fico picada, as silvas são ariscas. Mas não é coisa que lhes leve, ficaria toda picada se tentasse apanhar uma quantidade que se visse.
Tenho sempre pouco tempo para estar aqui no campo, sossegada, mas o tempo aqui parece que dura mais tempo, é uma tal acalmia.
Ao anoitecer caíu uma leve neblina e a serra aparecia-me suavizada, em contra-luz. É lá que o sol se põe e, em dias de muito calor, o céu fica em chamas. Não hoje que o sol estava dourado e depois se deixou envolver pela fresca névoa que trouxe a noite.
Gostava de poder ficar cá já esta semana, estou a precisar de descansar. Chega a esta altura do ano e começo a ficar cansada. De cada vez que alguém me entra no gabinete a dizer que temos um problema só me apetece que o vão resolver e que, só depois, me venham falar nele, mas, se fazem favor, com os verbos no passado, tivemos um problema. Mas não é possível, ainda tenho que pôr a minha resistência à prova por mais uns tempos. Mas não me queixo. Como poderia queixar-me se tenho trabalho, se sou respeitada, se sou remunerada pelo que faço? Não, por todas as pessoas que queriam ter trabalho e não tem, ou que têm um trabalho de que não gostam ou que não se sentem reconhecidas ou recompensadas, por todas as pessoas que, para terem trabalho, tiveram que se afastar do país, eu tenho que sentir-me agradecida pela sorte que tenho e desejar que todos esses venham, em breve, a ter também sorte. A desigualdade fere-me.
Por isso, pelo que tenho, sinto-me agradecida, sim. E sinto-me tanto mais agradecida quanto tenho a sorte de ter descoberto, em vida, a parcela de paraíso que me estava destinada, este bocado de terra de cujas pedras nascem árvores carregadas de fruta e de pássaros, e flores que perfumam o ar doce que respiro.
E tanto mais agradecida quanto sei que, junto a mim, estão todos vocês, a receber estas minhas palavras que espero que cheguem intactas e limpas até vós.
Obrigada por estarem aqui comigo.
Estás aqui comigo à sombra do sol
escrevo e oiço certos ruídos domésticos
e a luz chega-me humildemente pela janela
e sou amável
selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
e sei que afinal posso ser isso
talvez porque aqui sentado
dentro de casa
sou
talvez porque aqui sentado
dentro de casa
sou
outra coisa
Estás aqui comigo
e à volta são as paredes
e à volta são as paredes
e posso passar de sala para sala
a pensar noutra
coisa
a pensar noutra
coisa
Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso
diante dos dias.
Que ninguém conheça este meu nome
este meu verdadeiro nome
depois talvez encoberto noutro
nome
embora no mesmo nome este nome
de terra de dor de paredes este nome doméstico
Estás aqui comigo
deixa-te estar aqui comigo
é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos
mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos
tu és em cada gesto todos os teus gestos
e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como
a palavra paz
Deixa-te estar aqui
perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
perdoa pagares tão alto preço por estar aqui
perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui
prossegue nos gestos
não pares
procura permanecer sempre presente
não pares
procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo
mas sei que tu estás aqui
mas sei que tu estás aqui
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A música lá em cima é Rachmaninov, Rhapsody on a Theme of Paganini
Os excertos de poema pertencem a Tu estás aqui de Ruy Belo que, no vídeo, é dito por Luís Miguel Cintra
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo e feliz domingo.
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2 comentários:
As suas palavras, que umas vezes me comovem e outras me fazem rir "a bandeiras despregadas " chegam sempre intactas e limpas.
Tudo de bom para si e família, em especial os " pimentinhas "
Obrigado pela partilha
HB
Olá Humberto Barbosa,
Muito agradeço as suas palavras. Tudo de bom, para mim, para a minha filha e para os que me são mais próximos é o que eu desejo. E estendo esses votos também aos meus Leitores.
Muito obrigada pelas suas palavras.
Desejo-lhe uma boa noite!
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