Música, por favor
Mendelssohn - Barenboim interpreta Songs without Words
E então chegou a casa. Pousou a carteira, as chaves do carro.
Foi à casa de banho, desmaquilhou-se.
Depois foi à cozinha e encheu um copo de sumo.
Depois foi à cozinha e encheu um copo de sumo.
Com o copo na mão, foi até ao quarto, escolheu uma música
(sem palavras). A hora era tardia, a noite estava amena, quase parecia verão,
abriu a janela que dá para a varanda. Ao longe, no silêncio nocturno, um vago
marear que, sem aragem, não podia ser o som da ondulação dos cedros, era, só
podia ser, o som do mar.
Olhou-se no espelho, o sorriso tinha-se recolhido, estava
um pouco cansada.
Com lentidão, puxou uma ponta da echarpe de rede, sentiu-a a deslizar devagar pelo pescoço até que ficou toda na sua mão, pousou-a
depois sobre o busto negro; a seguir, com lentidão, despiu o casaquinho. Olhou-se
no espelho. Talvez um ou dois quilos a mais. Terá que caminhar com mais
intensidade, terá que emagrecer um pouco.
Depois deixou descair uma alça e arqueou ligeiramente os
ombros para a frente, para favorecer a descida, depois, com a mão, aliviou a
pressão da outra alça, arqueou de novo os ombros, deu um jeito e o vestido
iniciou a trajectória descendente, descaiu todo ele, deixando os seios a
descoberto e ficando retido nas ancas.
Olhou-se assim no espelho. A barriguinha lá estava e, com
o vestido assim descaído, preso nas ancas, quase parecia a Vénus de Milo.
Ou, então, Rubens. Uma das saudáveis mulheres de Rubens.
Sorriu da auto-condescendência.
Vénus de Milo |
Ou, então, Rubens. Uma das saudáveis mulheres de Rubens.
Rubens- The Union between Earth and Water |
Sorriu da auto-condescendência.
Alivou a pressão do vestido, puxou-o um pouco para baixo
e ele caíu, pesado, nos pés.
Levantou um pé, depois outro, apanhou-o, pendurou-o num
cabide, organizada.
Olhou-se no espelho. Meias de seda, de cor neutra, ligas
de renda, saltos altos. Pensou no príncipe árabe a dizer poesia.
A seguir retirou os brincos, depois a pulseira, e só então se sentiu quase despida.
Apeteceu-lhe ir até à varanda, descansar um pouco antes
de se deitar.
Pegou no telemóvel, no copo, mas, ao chegar à porta, sentiu
que a aragem estava fresca. Voltou atrás e pegou na écharpe de renda
transparente. Envolveu-se nela e, tal como estava, foi então até à varanda.
O som remoto de um carro que passava lá em baixo na
estrada, o vago som do mar, de dentro o som da música – um quase silêncio,
portanto.
Sentou-se na cadeira que está no recanto mais abrigado e
ali, descansada, ouvindo a música, pensou no suave e morno roçar da mão do
príncipe. Malandreco.
E pensou também num certo sorrisinho alarve, parvo,
insuportável.
Fez então uma chamada. Quando atenderam, disse secamente:
‘Não quero saber que ele seja dos nossos, estou-me nas tintas, o tipo é
execrável, estaria bem na república das bananas, não aqui, que isto, parecendo
que não, ainda passa por ser um país civilizado. Além disso, já disse não sei
quantas vezes que não o reconheço como sendo dos nossos’. Do outro lado alguém devia estar a protestar mas ela
interrompeu, ríspida: ‘Não quero saber. E a esta hora não tenho paciência para ouvir
argumentos que me maçam. Faça como quiser mas tenha em consideração aquilo que
eu quero’. Desligou, vagamente irritada.
Encostou-se para trás, bebeu o resto do sumo, olhou a
noite, respirou fundo. Que paz, afinal.
Deixou-se estar assim, tranquila. A seguir fez nova
chamada e a voz agora era quente, ciciada, sorridente: ‘Por onde andas?... A dormir? … A uma hora destas? … E não te
ocorreu que eu poderia precisar de resolver umas quantas coisas contigo?’ e
riu-se com a resposta que veio do outro lado e a gargalhada espontânea era agora
de menina marota.
‘Não sejas preguiçoso. Ainda se fosse para atravessares a
cidade…’ e ria, alguém a fazia de rir de gosto.
‘Vá lá…. Ainda se fosse para atravessar a rua…’ e depois
voltava a rir.
Depois concluíu, mas a voz era doce: ‘A esta hora não tenho
paciência para pedir. Ok. Quem quer vai, não é? Está bem, vou eu’.
Quando ia desligar, lembrou-se: 'Espera, não desligues, como é que entro? Qual é o santo e senha?' e sorria, era uma menina marota. 'Quem? Deixa cá ver....' e pensava, 'Pode ser o Eugénio'.
Do lado de lá ouviu dizer num sussurro, um sussurro cheio de silêncios, 'Então fixa:
Eva fechou os olhos, encantada. E respondeu: 'A senha, então, será:
E sorria. Olhou-se ao espelho, depois hesitou, deveria levar a écharpe?, talvez não, afinal não ia atravessar nenhum pomar, apenas o corredor.
Mas quando ia bater à porta, hesitou. Determinada, voltou para trás. Foi buscar a écharpe. Ensaiou ao espelho a melhor forma de a passar pelos ombros, deixando uma das pontas mais comprida, e sorriu, pensando: 'Afinal, qualquer Eva usa parra..'*
NB: Todos os episódios desta história estão agrupados no separador 'Eva - a mulher dos olhos verdes', à direita, lá mais para baixo
Quando ia desligar, lembrou-se: 'Espera, não desligues, como é que entro? Qual é o santo e senha?' e sorria, era uma menina marota. 'Quem? Deixa cá ver....' e pensava, 'Pode ser o Eugénio'.
Do lado de lá ouviu dizer num sussurro, um sussurro cheio de silêncios, 'Então fixa:
Vê como o verão
subitamente
se faz água no teu peito,
e a noite se faz barco,
e a minha mão marinheiro.'
Eva fechou os olhos, encantada. E respondeu: 'A senha, então, será:
Tenho o nome de uma flor
quando me chamas.
Quando me tocas,
nem eu sei
se sou água, rapariga,
ou algum pomar que atravessei.'
E sorria. Olhou-se ao espelho, depois hesitou, deveria levar a écharpe?, talvez não, afinal não ia atravessar nenhum pomar, apenas o corredor.
Mas quando ia bater à porta, hesitou. Determinada, voltou para trás. Foi buscar a écharpe. Ensaiou ao espelho a melhor forma de a passar pelos ombros, deixando uma das pontas mais comprida, e sorriu, pensando: 'Afinal, qualquer Eva usa parra..'*
{}
Os poemas são de Eugénio de Andrade e têm o título, respectivamente de 'Arte de navegar' e [tenho o nome de uma flor...]
NB: Todos os episódios desta história estão agrupados no separador 'Eva - a mulher dos olhos verdes', à direita, lá mais para baixo
{}
E tenham, meus Caros, um belo domingo!
----
* - Os créditos e os agradecimentos à Mary (vide comentário abaixo)
* - Os créditos e os agradecimentos à Mary (vide comentário abaixo)
11 comentários:
Jeitinho amiga:
Eva. Gostei do nome. Gostei da senha, gostei da forma como se despiu,do marulhar das árvores (ou seria o mar?), do modo como tratou o 1º interlocutor, da marotice da 2ª chamada. Há um pormenor, que está, quanto a mim, errada. A écharpe. Mesmo para atravessar o corredor, devia ter levado a écharpe. Toda a Eva, usa parra. Um pouco de mistério.
Quanto ao príncipe de ébano, talvez nem se consiga livrar das mulheres.
Continue neste tom. Estou a adorar.
Beijinho
Mary
é um curto episodio, mas podia ser uma cena tirada dum cenário para filme.
estranho, o 1º poema tem algo de letra de chico buarque ou até de vinicius de moraes, especialmente no se faz, foi uma surpresa ver que eram de eugenio de andrade, poeta que conheço pouco. Tambem a sucessão de movimentos ou acções: depois foi, foi até, com lentidão puxou, olhou-se, depois deixou,a seguir retirou, etc, me evoca algo dos autores brasileiros, construção? embora aqui o tom seja o erotico ou sensual feminino.
o primeiro telefonema é sem duvida para dar uma resposta a uma questão que anteriormente lhe tinha sido posta, o 2º é mais pessoal. Haverá que ver os antecedentes de eva.
Cara UJM:
Afinal a história está a ficar séria!
Madura, inteligente sabe que nada pode fazer contra o tempo. Sabe, também, que o tempo lhe deu a oportunidade de saber mais coisas, o que a torna mais atraente relativamente às jovens magricelas.
Eva, a perigosa sedutora, revela a verdadeira natureza da sua magnânima actividade, tão cansativa! - Não admira que só consiga a serenidade nos braços de Miguel, o anjo que a suporta e que lhe dá a verdadeira alegria, agora retirado da ribalta, com quem fala baixinho e em versos de Eugénio(tinha que ser). -
Ali estava ela, apesar do adiantado da hora, esta noite o relógio avançou uma hora, pronta para envolver as carícias em palavras, mas que ele não quis ouvir. - Prefere ficar no doce engano de nada saber, mas apenas intuir, para poder continuar a amá-la.-
E para não saber verdades inúteis ofereceu-lhe um cálice de Porto Calém branco 10 anos, fino de aromas, bem fresco! Porque sabe que Eva não conhece o cansaço do prazer.
Sabia que já estava gorada a participação na meia maratona e a hipótese, que há tantos anos acalentava, de atravessar a ponte a pé. … Iria propor-lhe o almoço na Quinta das Lágrimas e a visita à exposição de Armanda Passos – Extinção II -, no Edifício Chiado, em Coimbra.
E tenha um bom domingo, E sempre o bom humor …
Um abraço da
Leanor formosa e segura
Caro Patrício,
Gostei muito do que me disse. Eu, quando as palavras estão a aparecer aqui no monitor do computador, é como se estivesse a visualizar, como se eu estivesse lá a filmar, justamente.
Eugénio, nesta fase, era assim, límpido, destilado, uma sensualidade muito pura.
Gostei da associação de ideias entre 'a cena' e o despir a roupa. Mas não me parece que o que se estivesse ali a passar fosse uma construção - era, mais, uma desconstrução (acho eu...).
Como não sou Eva, não sei.
Também não estou certa de que o 1º telefonema fosse a resposta a qualquer questão. Se bem percebo a cabeça de Eva, ela é mais de agir por iniciativa própria do que por reacção a questões que lhe coloquem. Mas também não sei. Tenho que a conhecer melhor.
Obrigada. Como sabe fico sempre a pensar no que me diz.
Mary, sexy girl,
E eu gostei do que escreveu. A Mary tem uma visão e um entendimento muito próximos dos meus.
E essa da écharpe... tem toda a razão!
Saio daqui já para ir acrescentar esse importantíssimo pormenor (pormenor mas que faz toda a diferença). É o que digo, Mary, ainda formamos uma empresa de guionismo. Que me diz...? Vamos nessa?
Um beijinho, Mary!
Ai Jeitinho
Era mesmo EVA...ainda bem que é EVA.
Só Eva encerra a mulher,a beleza, a matriz, a tentação, a traição, a culpa, o paraíso, o princípio de tudo...e o inevitável perdão.
Parabéns.
Leonor, formosa, segura e criativa,
Fiquei encantada com o que escreveu e, como referi no outro dia, um dia que me ocorra formar uma empresa de guionismo, chamava-a também a si para o exercício de criação em conjunto.
Tudo o que escreveu encaixa na perfeição no ambiente e Miguel, arcanjo Miguel, é perfeito. Nas asas de Miguel vai Eva voar...!
E quanto às ideias de Eva ainda não as conheço bem, mas as minhas conheço-as. Durante algum tempo pensei mesmo participar ma maratona para atravessar a ponte a pé mas achei que devia desistir pois penso que atravessar a ponte deve ser uma coisa tão especial que, tal qual os momentos de religiosidade, não deve ser vivido no meio de multidões mas a solo.
Quando me sair o euromilhões pego numas massas e indemnizo a Lusoponte e peço para fecharem a ponte de madrugada para a atravessar a pé.
Agradeço a sugestão cultural que deve ser óptima e que será útil para os leitores que estejam por perto ou que possam lá deslocar-se.
A Quinta das Lágrimas, gastronomicamente falando, também deve ser uma maravilha. Da próxima vez que lá for a ver se não me fico pelos leitões da zona...
Obrigada uma vez mais e mantenha-se por perto para ir dando umas achegas, está bem?
Erinha,
Na história anterior nunca dei nomes e às tantas senti a falta e agora já estava a ir pela mesma.
Ainda bem que me lembrou e ainda bem que gostou do nome que lhe dei. Fica bem, não fica? Eva é tudo o que diz e acho que 'cai' bem nesta mulher forte e feminina.
PS: Adorei ver o seu rapaz de óculos, executivo, a arranjar emprego para o Villas-Boas. O jeito que ele também leva naquele registo mais sério...
Um beijinho, Erinha e obrigada eu.
(Se ler a minha resposta aos comentários acima, da Mary e da Leanor, já sabe que eu também a arregimentava a si para escrevermos guiões a meias. Seríamos imbatíveis.)
Jeitnho amiga:
Agora sim. Eva está perfeita.
Os pormenores insignificantes, fazem toda a diferença.
Obrigada. Talvez um dia, façamos o tal guião.
Vou entrar ao serviço como avó, durante as férias da Páscoa.
Arranjarei um minuto para cá vir.
Beijinho
Maria
Olá Jeitinho
No que respeita ao meu menino, o que me nos tem surpreendido mais, é a "Força" que ele consegue imprimir à canção final...
É assim uma coisa entre Jorge Palma, José Mário Branco ou Sérgio Godinho (digo eu)...
Erinha,
É verdade, canta tão bem! Nunca me tinha dado conta, é uma surpresa, podia fazer carreira também por aí. Tem uma voz muito expressiva, com força - uma surpresa, mesmo.
O rapaz é mesmo um poço de energia e de arte|
Enviar um comentário