domingo, março 25, 2012

Uma noite tranquila em casa de Eva


Música, por favor

Mendelssohn - Barenboim interpreta Songs without Words


E então chegou a casa. Pousou a carteira, as chaves do carro.

Foi à casa de banho, desmaquilhou-se.

Depois foi à cozinha e encheu um copo de sumo.

Com o copo na mão, foi até ao quarto, escolheu uma música (sem palavras). A hora era tardia, a noite estava amena, quase parecia verão, abriu a janela que dá para a varanda. Ao longe, no silêncio nocturno, um vago marear que, sem aragem, não podia ser o som da ondulação dos cedros, era, só podia ser, o som do mar.

Olhou-se no espelho, o sorriso tinha-se recolhido, estava um pouco cansada.

Com lentidão, puxou uma ponta da echarpe de rede, sentiu-a a deslizar devagar pelo pescoço até que ficou toda na sua mão, pousou-a depois sobre o busto negro; a seguir, com lentidão, despiu o casaquinho. Olhou-se no espelho. Talvez um ou dois quilos a mais. Terá que caminhar com mais intensidade, terá que emagrecer um pouco.

Depois deixou descair uma alça e arqueou ligeiramente os ombros para a frente, para favorecer a descida, depois, com a mão, aliviou a pressão da outra alça, arqueou de novo os ombros, deu um jeito e o vestido iniciou a trajectória descendente, descaiu todo ele, deixando os seios a descoberto e ficando retido nas ancas.


Olhou-se assim no espelho. A barriguinha lá estava e, com o vestido assim descaído, preso nas ancas, quase parecia a Vénus de Milo.

Vénus de Milo

Ou, então, Rubens. Uma das saudáveis mulheres de Rubens.

Rubens- The Union between Earth and Water


Sorriu da auto-condescendência. 

Alivou a pressão do vestido, puxou-o um pouco para baixo e ele caíu, pesado, nos pés.

Levantou um pé, depois outro, apanhou-o, pendurou-o num cabide, organizada.

Olhou-se no espelho. Meias de seda, de cor neutra, ligas de renda, saltos altos. Pensou no príncipe árabe a dizer poesia.

A seguir retirou os brincos, depois a pulseira, e só então se sentiu quase despida.

Apeteceu-lhe ir até à varanda, descansar um pouco antes de se deitar.

Pegou no telemóvel, no copo, mas, ao chegar à porta, sentiu que a aragem estava fresca. Voltou atrás e pegou na écharpe de renda transparente. Envolveu-se nela e, tal como estava, foi então até à varanda.

O som remoto de um carro que passava lá em baixo na estrada, o vago som do mar, de dentro o som da música – um quase silêncio, portanto. 

Sentou-se na cadeira que está no recanto mais abrigado e ali, descansada, ouvindo a música, pensou no suave e morno roçar da mão do príncipe. Malandreco.

E pensou também num certo sorrisinho alarve, parvo, insuportável.

Fez então uma chamada. Quando atenderam, disse secamente: ‘Não quero saber que ele seja dos nossos, estou-me nas tintas, o tipo é execrável, estaria bem na república das bananas, não aqui, que isto, parecendo que não, ainda passa por ser um país civilizado. Além disso, já disse não sei quantas vezes que não o reconheço como sendo dos nossos’.  Do outro lado alguém devia estar a protestar mas ela interrompeu, ríspida: ‘Não quero saber. E a esta hora não tenho paciência para ouvir argumentos que me maçam. Faça como quiser mas tenha em consideração aquilo que eu quero’.  Desligou, vagamente irritada.

Encostou-se para trás, bebeu o resto do sumo, olhou a noite, respirou fundo. Que paz, afinal.

Deixou-se estar assim, tranquila. A seguir fez nova chamada e a voz agora era quente, ciciada, sorridente: ‘Por onde andas?...  A dormir? … A uma hora destas? … E não te ocorreu que eu poderia precisar de resolver umas quantas coisas contigo?’ e riu-se com a resposta que veio do outro lado e a gargalhada espontânea era agora de menina marota.

‘Não sejas preguiçoso. Ainda se fosse para atravessares a cidade…’ e ria, alguém a fazia de rir de gosto.

‘Vá lá…. Ainda se fosse para atravessar a rua…’ e depois voltava a rir.

Depois concluíu, mas a voz era doce: ‘A esta hora não tenho paciência para pedir. Ok. Quem quer vai, não é? Está bem, vou eu’.

Quando ia desligar, lembrou-se: 'Espera, não desligues, como é que entro? Qual é o santo e senha?' e sorria, era uma menina marota. 'Quem? Deixa cá ver....' e pensava, 'Pode ser o Eugénio'.

Do lado de lá ouviu dizer num sussurro, um sussurro cheio de silêncios, 'Então fixa:


                                                               Vê como o verão
                                                               subitamente
                                                               se faz água no teu peito,

                                                               e a noite se faz barco,

                                                               e a minha mão marinheiro.'


Eva fechou os olhos, encantada. E respondeu: 'A senha, então, será:


                                                                         Tenho o nome de uma flor
                                                                         quando me chamas.
                                                                         Quando me tocas,
                                                                         nem eu sei
                                                                         se sou água, rapariga,
                                                                         ou algum pomar que atravessei.'


E sorria. Olhou-se ao espelho, depois hesitou, deveria levar a écharpe?, talvez não, afinal não ia atravessar nenhum pomar, apenas o corredor.

Mas quando ia bater à porta, hesitou. Determinada, voltou para trás. Foi buscar a écharpe. Ensaiou ao espelho a melhor forma de a passar pelos ombros, deixando uma das pontas mais comprida, e sorriu, pensando: 'Afinal, qualquer Eva usa parra..'*

{}

Os poemas são de Eugénio de Andrade e têm o título, respectivamente de 'Arte de navegar' e [tenho o nome de uma flor...] 


NB: Todos os episódios desta história estão agrupados no separador 'Eva - a mulher dos olhos verdes', à direita, lá mais para baixo

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E tenham, meus Caros, um belo domingo!
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* - Os créditos e os agradecimentos à Mary (vide comentário abaixo)

11 comentários:

Maria disse...

Jeitinho amiga:
Eva. Gostei do nome. Gostei da senha, gostei da forma como se despiu,do marulhar das árvores (ou seria o mar?), do modo como tratou o 1º interlocutor, da marotice da 2ª chamada. Há um pormenor, que está, quanto a mim, errada. A écharpe. Mesmo para atravessar o corredor, devia ter levado a écharpe. Toda a Eva, usa parra. Um pouco de mistério.
Quanto ao príncipe de ébano, talvez nem se consiga livrar das mulheres.
Continue neste tom. Estou a adorar.
Beijinho
Mary

patricio branco disse...

é um curto episodio, mas podia ser uma cena tirada dum cenário para filme.
estranho, o 1º poema tem algo de letra de chico buarque ou até de vinicius de moraes, especialmente no se faz, foi uma surpresa ver que eram de eugenio de andrade, poeta que conheço pouco. Tambem a sucessão de movimentos ou acções: depois foi, foi até, com lentidão puxou, olhou-se, depois deixou,a seguir retirou, etc, me evoca algo dos autores brasileiros, construção? embora aqui o tom seja o erotico ou sensual feminino.
o primeiro telefonema é sem duvida para dar uma resposta a uma questão que anteriormente lhe tinha sido posta, o 2º é mais pessoal. Haverá que ver os antecedentes de eva.

Anónimo disse...

Cara UJM:
Afinal a história está a ficar séria!
Madura, inteligente sabe que nada pode fazer contra o tempo. Sabe, também, que o tempo lhe deu a oportunidade de saber mais coisas, o que a torna mais atraente relativamente às jovens magricelas.
Eva, a perigosa sedutora, revela a verdadeira natureza da sua magnânima actividade, tão cansativa! - Não admira que só consiga a serenidade nos braços de Miguel, o anjo que a suporta e que lhe dá a verdadeira alegria, agora retirado da ribalta, com quem fala baixinho e em versos de Eugénio(tinha que ser). -
Ali estava ela, apesar do adiantado da hora, esta noite o relógio avançou uma hora, pronta para envolver as carícias em palavras, mas que ele não quis ouvir. - Prefere ficar no doce engano de nada saber, mas apenas intuir, para poder continuar a amá-la.-
E para não saber verdades inúteis ofereceu-lhe um cálice de Porto Calém branco 10 anos, fino de aromas, bem fresco! Porque sabe que Eva não conhece o cansaço do prazer.
Sabia que já estava gorada a participação na meia maratona e a hipótese, que há tantos anos acalentava, de atravessar a ponte a pé. … Iria propor-lhe o almoço na Quinta das Lágrimas e a visita à exposição de Armanda Passos – Extinção II -, no Edifício Chiado, em Coimbra.
E tenha um bom domingo, E sempre o bom humor …
Um abraço da
Leanor formosa e segura

Um Jeito Manso disse...

Caro Patrício,

Gostei muito do que me disse. Eu, quando as palavras estão a aparecer aqui no monitor do computador, é como se estivesse a visualizar, como se eu estivesse lá a filmar, justamente.

Eugénio, nesta fase, era assim, límpido, destilado, uma sensualidade muito pura.

Gostei da associação de ideias entre 'a cena' e o despir a roupa. Mas não me parece que o que se estivesse ali a passar fosse uma construção - era, mais, uma desconstrução (acho eu...).

Como não sou Eva, não sei.

Também não estou certa de que o 1º telefonema fosse a resposta a qualquer questão. Se bem percebo a cabeça de Eva, ela é mais de agir por iniciativa própria do que por reacção a questões que lhe coloquem. Mas também não sei. Tenho que a conhecer melhor.

Obrigada. Como sabe fico sempre a pensar no que me diz.

Um Jeito Manso disse...

Mary, sexy girl,

E eu gostei do que escreveu. A Mary tem uma visão e um entendimento muito próximos dos meus.

E essa da écharpe... tem toda a razão!

Saio daqui já para ir acrescentar esse importantíssimo pormenor (pormenor mas que faz toda a diferença). É o que digo, Mary, ainda formamos uma empresa de guionismo. Que me diz...? Vamos nessa?

Um beijinho, Mary!

ERA UMA VEZ disse...

Ai Jeitinho

Era mesmo EVA...ainda bem que é EVA.

Só Eva encerra a mulher,a beleza, a matriz, a tentação, a traição, a culpa, o paraíso, o princípio de tudo...e o inevitável perdão.

Parabéns.

Um Jeito Manso disse...

Leonor, formosa, segura e criativa,

Fiquei encantada com o que escreveu e, como referi no outro dia, um dia que me ocorra formar uma empresa de guionismo, chamava-a também a si para o exercício de criação em conjunto.

Tudo o que escreveu encaixa na perfeição no ambiente e Miguel, arcanjo Miguel, é perfeito. Nas asas de Miguel vai Eva voar...!

E quanto às ideias de Eva ainda não as conheço bem, mas as minhas conheço-as. Durante algum tempo pensei mesmo participar ma maratona para atravessar a ponte a pé mas achei que devia desistir pois penso que atravessar a ponte deve ser uma coisa tão especial que, tal qual os momentos de religiosidade, não deve ser vivido no meio de multidões mas a solo.

Quando me sair o euromilhões pego numas massas e indemnizo a Lusoponte e peço para fecharem a ponte de madrugada para a atravessar a pé.

Agradeço a sugestão cultural que deve ser óptima e que será útil para os leitores que estejam por perto ou que possam lá deslocar-se.

A Quinta das Lágrimas, gastronomicamente falando, também deve ser uma maravilha. Da próxima vez que lá for a ver se não me fico pelos leitões da zona...

Obrigada uma vez mais e mantenha-se por perto para ir dando umas achegas, está bem?

Um Jeito Manso disse...

Erinha,

Na história anterior nunca dei nomes e às tantas senti a falta e agora já estava a ir pela mesma.

Ainda bem que me lembrou e ainda bem que gostou do nome que lhe dei. Fica bem, não fica? Eva é tudo o que diz e acho que 'cai' bem nesta mulher forte e feminina.

PS: Adorei ver o seu rapaz de óculos, executivo, a arranjar emprego para o Villas-Boas. O jeito que ele também leva naquele registo mais sério...

Um beijinho, Erinha e obrigada eu.

(Se ler a minha resposta aos comentários acima, da Mary e da Leanor, já sabe que eu também a arregimentava a si para escrevermos guiões a meias. Seríamos imbatíveis.)

Maria disse...

Jeitnho amiga:
Agora sim. Eva está perfeita.
Os pormenores insignificantes, fazem toda a diferença.
Obrigada. Talvez um dia, façamos o tal guião.
Vou entrar ao serviço como avó, durante as férias da Páscoa.
Arranjarei um minuto para cá vir.
Beijinho
Maria

ERA UMA VEZ disse...

Olá Jeitinho

No que respeita ao meu menino, o que me nos tem surpreendido mais, é a "Força" que ele consegue imprimir à canção final...

É assim uma coisa entre Jorge Palma, José Mário Branco ou Sérgio Godinho (digo eu)...

Um Jeito Manso disse...

Erinha,

É verdade, canta tão bem! Nunca me tinha dado conta, é uma surpresa, podia fazer carreira também por aí. Tem uma voz muito expressiva, com força - uma surpresa, mesmo.

O rapaz é mesmo um poço de energia e de arte|