quarta-feira, agosto 25, 2021

O medo de se ficar sozinho

 


Nunca vivi sozinha. Enquanto pequena vivi com os meus pais, ficando, por vezes, em casa dos meus avós. 

Quando acabei o liceu fui em passeio com sete ou oito conhecidos e mais uns trinta desconhecidos passar um mês num país africano. 

Namorava nessa altura. Lembro-me do meu namorado muito emocionado no aeroporto e eu já toda entusiasmada com a aventura que se perspectivava. Foi um mês de múltiplas revelações. Acho que nem por um dia senti saudades do namorado. E não sei se isso diz muito sobre o que eu sentia por ele ou se diz da minha natureza. O que for.

Quando regressei, fui viver para uma residência de estudantes. Apesar de me dar bem com os meus pais, continuar a viver permanentemente com eles afigurava-se-me fora de questão. Tinha acabado de fazer dezassete anos. O ambiente de bairro e o controlo que a comunidade exercia nos seus membros e o receio que os meus pais tinham de que eu me tornasse objecto de falatório era-me insuportável. Ansiava por liberdade. Depois, por razões diversas, saí da residência e fui para um quarto. O namorado e os amigos eram uma presença constante com a graça adicional de que, entretanto, me tinha apaixonado por um desconhecido que me trazia de coração alvoroçado. Pouco depos, durante uns meses, vivi uma vida dupla. Nuns dias namorava com um, noutros andava inseparavelmente com outro.

Já o contei várias vezes pelo que abrevio.

Quando se tornou impossível gerir a situação, acabei com o namorado e caí nos braços do desconhecido. Algum tempo depois casei-me com ele. Tinha vinte anos. E algum tempo depois veio uma filha e algum tempo depois um filho. E vieram os primos dos filhos e os filhos dos amigos. A casa estava sempre cheia. E o tempo passou a correr e a filha arranjou um namorado e o meu filho uma namorada. E os namorados vieram cá a casa. E algum tempo depois a minha filha saiu para ir viver com o namorado e depois foi o meu filho que saiu para ir viver com a namorada. Entretanto casaram-se e começaram a chegar os filhos deles. Cinco. A casa foi-se enchendo.

E tal como os meus filhos vieram com os seus companheiros, um dia destes hão-de os meus netos começar a trazer os seus próprios companheiros e serão muito bem vindos.

A preocupação é o tamanho da mesa ou haver mesas adicionais que se juntem. E cadeiras. E bancos adicionais.

Por isso, viver sozinha nunca vivi. Nunca fui sozinha à praia ou ao cinema. Nunca levei o carro a lavar. Nunca usei um berbequim. 

Mas uso este 'nunca' com a convicção que, no dia em que precisar, irei, farei. É assim porque aconteceu assim. Calhou ter tido a sorte do desconhecido me ter saído melhor do que a encomenda e de ter nele o companheiro presente, atento e dedicado, compreensivo e amoroso, bem humorado, culto, bom pai e bom avô, bom genro e bom amigo que justifica a sua presença ao meu lado há tantos anos. Se o não fosse já o teria rifado há séculos. Não suportaria ter dentro de casa alguém que não fosse o meu homem, sendo que, para ser o meu homem, tem que ter tudo o que acho fundamental e não apenas uma parte. Nestas coisas não se podem fazer concessões: ou se é tudo ou não se é nada. Não tem que ser perfeito ou não tem que ser um santo: tem é que ser o nosso homem. Isto no meu caso que sou hetero. Se fosse homo, seria a minha mulher mas teria que ser identicamente completa. Um meio homem, um meio companheiro, uma mariazinha que uns dias sim mas outros não, um zé cueca que põe a sua agenda à frente da vida a dois, um coiseca que se acha o máximo descurando a atenção e mimo que eu acho que mereço, eu e qualquer mulher ou qualquer homem, seria rifado de imediato. Santa paciência.

Teria que ir à praia sozinha, teria que atinar com o berbequim ou teria que ir sozinha ao restaurante. Acredito que não seja a melhor coisa do mundo mas é certamente melhor do que uma pessoa anular a  sua autoestima para fazer de conta que tolera ou que aprecia a pouca coisa que o pouca-coisa tem para dar. 

E depois há a família e os amigos para fazerem companhia. E há as oportunidades que estão sempre a aparecer, assim a gente esteja disponível para as perceber e aproveitar.

Não posso falar de experiências que não tive. Posso apenas imaginar.

Se vivesse sozinha não teria a quem me encostar nas noites frias. Mas, pelo contrário, não teria um corpo quente a encostar-se a mim nas noites de calor. Há sempre um lado bom em tudo.

Sinceramente, não sei como seria comigo se me visse sozinha, sem companheiro. Se me puser a pensar nisso, acho que depois da estranheza de ter que me virar sozinha em coisas com que hoje não tenho que me preocupar (colocar pesados varões para cortinados, pintar muros, andar com uma roçadora a cortar mato ou coisas afins), me sentiria como me senti quando, adolescente, estive um mês num país africano que não conhecia, maioritariamente rodeada de desconhecidos, a viver situações até então desconhecidas... e feliz, feliz da vida, cada dia uma descoberta, cada dia um imenso sentimento de liberdade. À distância de algumas décadas penso que foi pena foi não ter aproveitado ainda mais. Se fosse hoje, com as facilidades que hoje há, provavelmente teria ido viver (fosse para estudar, fosse para trabalhar), nem que fosse durante uns meses ou um ano, num país desconhecido. Gosto do desconhecido.

Mas, na altura, com a cultura e os hábitos de então e porque o lado familiar sempre esteve muito presente em mim, foi como foi e ainda bem que assim foi. Mas sei bem que há muitas maneiras de uma pessoa se sentir realizada e feliz e muitas delas não passam por um casamento de longa duração como o meu.

E vem isto a propósito de um vídeo que hoje me apareceu: The high price we pay for our fear of loneliness

Ainda hei-de perceber o racional do algoritmo do YouTube. Creio que muitas vezes atira o barro à parede e, a partir dos vídeos que despertam o meu interesse, levando-me a abri-los e vê-los até ao fim, vai desenhando o meu mindset: Esta gosta de macacada, de arte, de arquitectura, de decoração, de política, de jardinagem, de música, de dança, de psicologia, de poesia... e, portanto, deixa cá ver o que é que se arranja para aqui a ver se ela morde o isco.

Quando eu partilho alguns vídeos deve ser a apoteose algorítmica e, portanto, a partir daí é iguaria que não falha no menu.

E estava a ver o vídeo acima referido e, a seguir, apareceu um outro que também me pareceu relevante. The fear of being alone and narcissistic relationships. Muito interessante e, creio, muito esclarecedor.

Pode a maioria das pessoas andar preocupada com matérias mais filosóficas ou mais prementes na actualidade e toda esta conversa soar a nonsense típico da silly season. Talvez. Mas acredito que, para além do eu-social ou do eu-político, há em todos nós o eu-eu que dá atenção a temas que têm a ver com assuntos mais pessoais. Por isso, tenho esperança que o tema deste post seja útil para alguns de vós que, aí desse lado, me ouvem a respirar.

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The High Price We Pay for Our Fear of Loneliness

We often make some very peculiar and regrettable choices on the basis of a hidden and unmentioned fear: that of being alone. But once we realise that there isn't, in fact, anything to fear about being on our own, we'll be liberated to make some far healthier decisions.


The fear of being alone and narcissistic relationships



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Fotografias de Niki Colemont photoshopada por Necromechanimal ao som de Max Richter em Flowers Of Herself

Nota: Tive dúvidas no título. Deverá ser como escrevi 'O medo de se ficar sozinho' ou 'O medo de se viver sozinho' ou 'medo de se estar sozinho ' ou 'o medo da solidão? Não sei. O que acham?

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Desejo-vos um dia bom.
Saúde. Alegria. Confiança. 

4 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

A capacidade de se estar sozinho é um bom indicador de maturidade existencial, claro está que quem tem essa capacidade não vive, por outro lado, sem a experiência do outro, sem amar e deixar-se amar.

Com a UJM, relações de treta, pautadas por insuficiências e desequilíbrios afetivos, são mesmo coisas para ir de patins com as rodas untadas de óleo para ir mais depressa.

Um rico dia.

Anónimo disse...

O medo de me tornar sozinho.

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

É isso mesmo. Penso que temos que ser tolerantes e compreensivos. Mas há situações em que se percebe que não vai passar daquilo. Sendo que, ao contrário de si, não acredito na vida eterna, penso que temos que aproveitar bem a curta vida que nos é dado viver, não a desperdiçando com casos perdidos, com atrasos de vida.

Fazer por viver bem junto de quem nos acarinhe, ampare e incentive parece-me um dever perante o milagre que nos foi dado viver. Por isso, tenho dificuldade em perceber quem desperdiça a aturar gente de onde nunca nada de bom virá, passando a sua vida a disfarçar, fingindo que se é feliz ao lado de amélias-encrencadas ou mini-pseudo-divas que apenas pensam nelas mesmas e que, directa ou indirectamente, forçam os seus companheiros a uma permanente erosão da sua auto-estima.

Comigo iriam de patins na hora.

Dias felizes, Francisco. E a ver se tenho a casa mais em ordem e se tenho mais tempo para fotografar para mostrar (não me esqueci do seu pedido...)


Um Jeito Manso disse...

Olá Anónimo

Curioso isso que escreve. "O medo de me tornar sozinho", como se a solidão invadisse o meu corpo e eu próprio passasse a ser feito de solidão. Não estou sozinho: sou sozinho. Uma expressão habitada pela solidão. Bonito e, ao mesmo tempo, triste.

Mas deixemo-nos de tristezas. Venha daí um big smile!