terça-feira, agosto 24, 2021

Dar à luz

 



No nascimento de qualquer dos meus filhos houve falsas partidas. Nasceram ambos no limite, às quarenta e duas semanas, de partos induzidos. Antes houve ameaços, contrações, idas ao hospital. No caso da minha filha, cheguei a ficar lá um dia inteiro a parecer que ia mesmo nascer. Mas não nasceu. O médico, pessoa em quem tinha grande confiança, dizia que achava que se deveria deixar a natureza seguir o seu curso. Nada me parecia melhor. 

Portanto, nos dois casos, esperámos até ao limite e, no dia acordado, apresentei-me para que, a bem ou a mal, as crianças saltassem cá para fora. Nos dois casos só soube o sexo depois de terem nascido. Era informação irrelevante. Seriam os meus bebés queridos, fossem o que fossem, fossem como fossem.

Nos dois casos fiz preparação para o parto e, nas duas vezes, fui convencida de que não me ia custar nada. Nem por um instante coloquei a hipótese de que poderia doer. Pelo contrário, o que combinei é que não havia anestesia por qualquer via e que cesariana só em último caso.

Não fui nervosa. Pelo contrário, irritava-me quando me diziam que doía. Achava que a dor era psicológica e que eu, encarando a coisa na boa, não iria senti-las. Mesmo na segunda vez, depois daquilo por que passei na primeira vez, tive exactamente a mesma ideia.

Contudo, as dores que tive, horas e horas de violentas contrações, o organismo em sofrimento absoluto, transpirando em bica, por fim verdadeiramente desesperada de dores, seriam para deixar marca em qualquer animal, humano ou não. 

Lembro-me de estar num estado tal, incapacitada de todo, que, quando se aproximou o momento da expulsão, a enfermeira me ter dito que tinha que me pôr de pé e ir para a marquesa que estava mais além. Eu disse que não conseguia. As dores eram dilacerantes, parecia que alguma força invisível estava a rasgar o meu ventre, a agarrar o meu corpo por dentro, a esmagá-lo. Não sei explicar pois, na verdade, nunca antes tinha vivido uma situação de tal impotência perante o fenómeno que estava a enfrentar. Chegou a um ponto em que notoriamente as dores estavam para além do suportável. Pensei que poderia acontecer qualquer coisa de limite pois o sofrimento que estava a sentir já não era compatível com a natureza humana.

Nessa vez em que a enfermeira me mandou andar e me disse que conseguiria, não sei como mas, na verdade, consegui. Encontramos forças onde não sabemos que existem. Fui, quase inconsciente de tantas dores, o corpo todo tolhido. 

Quem não passou por isso não pode imaginar. Não se comparancom dores musculares, ósseas ou traumáticas. É coisa de outra dimensão, uma violência profunda, um espasmo doloroso, visceral, integral, o corpo em carne viva.

Acresce que, por características de família, criança não queria descer.  Melhor: não conseguia descer. No meu nascimento aconteceu o mesmo, no da minha mãe idem. Já mão me lembro mas tenho ideia que são os ossos da bacia que, na altura devida, não dão o espaço devido. Não sei. 

O médico fez de tudo para evitar a cesariana, conforme eu lhe tinha pedido. Saiu com ferros, o médico a puxar para a frente, o meu marido e a parteira a puxarem-me para trás. Não sei como resisti, não sei como não desmaiei. Mal a minha filha chegou cá fora e ma puseram em cima dizendo-me que era uma menina, apaguei. Mas apaguei condicionalmente pois vinha a mim para perguntar se a menina estava bem. Diziam-me que sim, eu caía no vazio para logo de seguida voltar a mim e perguntar pela menina. Até que cheguei ao quarto e foi como todas as dores se tivessem evaporado e se iniciasse uma nova fase em que me ia entregar a ela, dando-lhe o meu leite, alimentando-a e enchendo-a de amor. 

Fui para o segundo parto com a descontração e inconsciência da primeira vez. Contudo, foi pior. Ele era enorme. No momento do parto, sentia-me como se estivesse a rebentar, dores insanas. O médico tentou convencer-me a ser anestesiada. Não quis. O médico disse que deveria ser cesariana. Não quis. Gritavam-me para eu não fazer força pois poderia rasgar o útero mas não era eu que fazia força, devia ser ele. Ou era todo o organismo, não sei. Dores, dores, dores.

Daria a minha vida por eles.

Achava que ao natural, sem anestesias, sem artificialismos, as crianças seriam mais saudáveis. E, por isso, por elas, eu deixar-me-ia despedaçar se necessário fosse. 

Hoje pensaria de uma forma menos linear: tantas horas de dores, de contrações, de brutal sofrimento, afectarão de alguma forma a criança? Sofre também? Estará num sufoco, apertada, quase sem respirar, quase asfixiada durante as contrações? Se a resposta fosse positiva, isto é, que sim, que a criança também sofre e que tanto sofrimento seria escusado se a mãe aceitasse abreviar e atenuar o sofrimento, certamente pensaria melhor. Na altura não me ocorreu nem ninguém me falou de tal hipótese.

Também não me ocorria que uma criança, mesmo que com meses ou escassos anos, tinha sentimentos e pensamentos como qualquer ser humano. Na altura, preocupava-me sobretudo que fossem bem alimentadas, bem higienizadas, bem tratadas, acarinhadas, as suas necessidades compreendidas e atendidas. Se interpretavam bem ou mal os meus gestos ou se sofriam psicologicamente com alguns dos meus actos isso não me ocorria. Tantas vezes debaixo da pressão de trabalhar e deslocar-me e atender as suas necessidades, quantas vezes terei deixado os meus bebés sem perceberem bem as minhas opções? Terão ficado neles marcas de que nem eles próprios suspeitam?

Não sei. 

Sei que queria (e quero e sempre quererei) que sejam felizes e saudáveis. Mas será que há um ponto de equilíbrio entre o que queremos a nível de saúde e a nível de felicidade e que, muitas vezes sem querer, sem nos darmos conta, estamos a desbalancear num ou noutro sentido?

E estes são apenas exemplos de uma coisa. Conheço algumas pessoas que dizem que, se fossem hoje fazer uma coisa, fariam exactamente da mesma maneira. Acham que isso é sinal de coerência. Eu sou o contrário. Talvez seja inconsciente, incoerente. Mas mudo, penso segundo outras perspectivas. Hoje talvez os meus filhos tivessem nascido mais cedo, de cesariana. Pelo menos não teria sido tão irredutível e não pensaria tanto no lado físico, dedicando mais atenção ao seu lado psicológico. A ciência avança e, o que parece de uma maneira, rapidamente deixa de sê-lo pouco tempo depois. Temos que ter a humildade de reconhecer que, por vezes, julgando que estamos a fazer o melhor possível, estamos a errar.

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E já não sei bem a que propósito vinha isto. Caí aqui no sofá e o torpor do cansaço tomou conta de mim. Adormeci várias vezes ao escrever. Estou in heaven. Viemos ao fim do dia, depois de reuniões que demoraram mais do que se tinha previsto. Depois, parámos ainda no supermercado. Pelo meio, consegui convencer o meu marido a desviar-se para irmos aos gelados. À chegada, tivemos que arrumar as coisas. Jantámos às dez e tal. A seguir não se encontravam os cabos da televisão. E não sabíamos onde estavam os lençóis. Tivemos que fazer a cama.

Com tudo isto a pesar-me, comecei a escrever com um objectivo mas, pelo meio, perdi-o e agora, depois das duas e meia da manhã, já não consigo pensar. Portanto, fica assim. Pode ser que alguém consiga descortinar onde é que isto ia levar ou se o texto, tal como está, pode existir por si mesmo. 

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As imagens são da autoria de Adrian Murray que, de forma tão terna, sabe fotografar os seus filhos. 

Bob Marley interpreta Three little birds

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Desejo-vos um dia feliz.

2 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Ai Riqueza, durante vários anos foi tradição saber a história do meu nascimento, a coisa surgia naturalmente, mesmo, mas o que é verdade é que a escutava com um encanto como se fosse a primeira vez.

Há algo mais belo que a vida?? E vida pressupõe amor.

Uma bela 3.ª

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

A minha mãe fala muito do susto que apanhou quando nasci, fora de prazo, coberta de musgo verde. Diz que foi um milagre eu não ter ficado com mazelas. O meu marido contraria-a: 'não ficou...? ah ficou, ficou...*

E eu também gosto de falar dos partos dos meus filhos.

São momentos marcantes: o momento em que o milagre se dá.

Fico contente por saber que na sua família também se dava um valor especial ao do seu nascimento. Não tendo nós a consciência do momento mais importante das nossas vidas (o momento em que vimos a luz do dia), é bom ouvi-lo da boca de quem nos quer vem.

Abraço, Francisco|