Ando naquela fase em que, depois de um dia de trabalho tão preenchido, chego aqui e só me apetece pôr-me a ver televisão, seja lá o que for -- ou, melhor, não prestando atenção a nada -- ou ver os vídeos que me apareçam à frente. E não é só isso, confesso: é que, ao fim do dia, colocaram-me questões que não sei bem como resolver e não me apetece pensar nisso pois as soluções costumam aparecer sozinhas mas, por outro lado, acho que devo pensar nelas pois as implicações são tantas que receio tomar decisões erradas por me ter esquecido de alguns factores. Depois, a noite passada dormi mal. Fui para a cama sem sono e isso é trágico. E é igualmente trágico passar um dia com défice de horas dormidas (e logo a uma segunda feira).
E agora tenho sono. Sono, temas rodopiando na minha cabeça, e, pairando, vontade de ir ver como se pintam móveis de madeira, vontade de me entreter com coisas que me ocupem sem me trazerem preocupações. Estou aqui com a cabeça nas nuvens e os pés a quererem puxar-me para chatices terrenas.
Não tenho respondido a comentários e bem sei que isso parece impossível. Deveria ter tempo de sobra para tudo e o que me parece é que não estou a saber geri-lo bem. Desculpo-me dizendo a mim própria que isto se deve à minha nova ocupação, àquela que abracei há uns meses, e que sabia de antemão que seria assim, tomador de todo o meu tempo e energia. Mas o facto de esta fase coincidir com este período de teletrabalho é propício a que o trabalho se expanda absorvendo toda a minha disponibilidade.
Por isso, chego a aqui e sinto-me quase vazia, sem nada de nada nada para dizer. Não sei de assuntos dos quais se possa fazer conversa. Das notícias que leio em diagonal pouca coisa me suscita vontade de opinar. Há aquilo de o medicamento que tem estado a provar bem no combate ao corona ser um que é usado no combate aos piolhos. Acho isso de uma ironia extraordinária. Pois não se está mesmo a ver que o corona é um bicho tinhoso, piolhento? Mas, para falar do assunto, deveria ter pedigree e não tenho. Farmaceuticamente falando, sou rafeira. Por isso, mais vale que fique caladinha.
Também li hoje que uma mulher, em Nova Iorque, sentindo frio em casa e sentindo que o frio era maior quando estava na casa de banho, como que uma aragem que até lhe fazia esvoaçar um ou outro cabelo, resolveu tentar descobrir de onde vinha. Parecendo que a aragem vinha de dentro da parede, resolveu investigar. Até que percebeu que parecia vir do espelho. Então, resolveu tirá-lo. E aí, para sua surpresa e susto, descobriu um buraco. E, de lanterna na cabeça e esquecendo todos os riscos, fez o que não devia: entrou. E foi dar a um apartamento secreto de três divisões. Ao ver uma garrafa de água ainda mais se assustou. Mas depois percebeu que ninguém poderia sobreviver num apartamento sem janelas. Claro que não sei se será bem assim já que alguma corrente de ar deverá haver, senão não sentia a aragem. Mas, enfim, façamos de conta que sim.
Parece que quem lhe vendeu a casa também não tem explicação. Nem a empresa de construção a tem.
E esta história verídica, sim, esta dá-me alguma vontade de me deter um pouco.
Quando viemos aqui visitar esta casa, caí de amores à primeira vista. Assim caio sempre quando caio de amores: à primeira vista, de caixão à cova, sem apelo nem agravo. Não há cá isso de não ficar muito convencida e de a coisa só lá ir aos poucos, à medida que se vai conhecendo melhor. Treta. Comigo não, eu sou mais de cair de amores na base do desconhecido. Total blind date com um instantâneo coup de foudre. Saímos daqui, fizemos logo uma proposta, passado um bocado veio a resposta e, assim, na hora, a coisa deu-se. Mas, dizia eu: estavam a mostrar a casa e tudo batia certo, o santo da casa a cruzar-se com o meu, tudo na mouche.
Na segunda vez, já o negócio feito, viemos para a minha filha conhecer e para eu tirar dúvidas. O meu filho tinha podido vir na primeira vez. Mas eu estava baralhadíssima. Queria descrever a casa e não atinava. Na minha cabeça, tudo se tinha misturado do ponto de vista geográfico. Não sabia onde estavam os quartos, onde estava a porta, como se ia para o piso de cima. Então, a dona, que eu estava a conhecer nessa altura (na primeira visita não estavam cá), ao mostrar-me tudo, ao chegar ao sótão, perguntou se eu já tinha visto um certo compartimento. Eu achava que não mas não sabia. E, então, para meu espanto, dou com um compartimento que parecia secreto, a biblioteca privada do marido, uma biblioteca toda feita por ele. Estava cheia de documentação técnica ligada à profissão dele. Foi a última coisa que foi esvaziada, contaram-nos eles depois. Quando os meninos vieram conhecer a casa, fui logo mostrar-lhes aquilo: deliraram. Parecia coisa de filme, um compartimento mesmo secreto, só quem sabe dá com ele.
Está vazio. Ainda não pus lá nada. Para já, não preciso, tenho agora muito espaço para livros e para tudo. Mas também é outra coisa: parece que assim tem mais graça, um compartimento secreto, mágico, à espera do seu destino. Talvez seja ali que um dia vou pôr objectos especiais, velharias que resgate por aí, peças que eu construa. Não sei ainda. Só sei que não devemos precipitar as coisas. O que interessa acontece por si. Não temos que forçar nada.
E, pronto, não sei que mais dizer.
Foi dia da mulher mas não ia pôr-me para aqui a deitar foguetes. Não é um dia que faz qualquer diferença. Mas tinha pensado contar qualquer coisa relacionada com a minha condição de mulher e o que me ocorria era falar do nascimento dos meus filhos. O parto que, das duas vezes, a meu pedido, foi a sangue frio. Eu a sentir o corpo a despedaçar-se por dentro, temendo não conseguir aguentar tantas dores, até que as crianças me foram arrancadas a ferros e vieram para os meus braços. Não há sensação melhor no mundo do que termos nos nossos braços os seres que se geraram dentro de nós. Aliás, há sim. Há sensação tão boa ou melhor do que essa: é vermos o amor, a realização e a sensação feliz dos nossos filhos com os seus filhos nos braços e é, a seguir, termos nos nossos braços os filhos dos nossos filhos. Amor maior, sem explicação, coisa visceral.
Mas depois resolvi que não, que não deveria falar nisso: há mulheres que ainda não tiveram filhos ou que não tiveram nem vão tê-los e que nem por isso são menos mulheres do que as que já tiveram a bênção de os ter. Por isso, deixei-me dessa conversa. E depois, acreditem, estou mesmo cansada, com sono, sem assunto. Que me desculpem os queridos Leitores que generosamente me deixam as suas palavras. Não levem a mal. Leio com gosto mas a esta hora já só dá para deixar que os dedos para aqui andem no vício. A cabeça já está encostada às boxes há algum tempo.
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Pensei: pelo menos podia colocar aqui um vídeo com uma mulher e peras. Pensei: Paula Rêgo. Depois pensei: uma escritora. Depois pensei: uma médica. Depois: uma engenheira. Depois: uma sem abrigo. Depois pensei: uma professora. Depois: uma bombeira.
Depois deixei-me disso.
E resolvi colocar a Meryl Streep que gosta de se divertir e que não se leva a sério que é como as mulheres de bem devem ser.
E, portanto, cá está ela.
2 comentários:
Ai Riqueza adoro casas cheias de salas e salinhas, comportimentos, escadas, caves, sótãos, garagens, arrecadações, anexos no exterior, jardins cheios de escadinhas, cantinhos e labirintos.
Que tenha tido um belo 8 de março!
Um rico dia!
“Diz-se que as anestesias, como a epidural, impedem que a mulher liberte, durante o parto, um cocktail de hormonas, como ocitocina, a que chama hormonas do amor …”, perguntou Joana Ferreira da Costa .
“Esses medicamentos são substitutos de hormonas naturais que as mulheres não conseguem libertar durante o parto se não tiverem o ambiente adequado. Uma anestesia epidural é uma forma de substituir as endorfinas, hormona que o organismo liberta para se adaptar à dor. A libertação de ocitocina sintética é uma substituta da natural. Quando se medica, cria-se desequilíbrio num processo de libertação de hormonas em várias etapas. Quando se tenta eliminar a dor, parte do processo fisiológico, perturba-se o equilíbrio hormonal. Em mamíferos o processo está demonstrado. Uma ovelha que dá à luz com epidural não toma conta do filho. Mas não está estudado nos humanos cujo processo é muito mais complexo”, respondeu Michel Odent.
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