terça-feira, setembro 01, 2020

Técnicas para o engate perfeito e, ainda, o prazer de ser corrigido
- isto para culminar um dia bom mas pouco descansado




Foi simples: passou a correr. Tanto que eu gostava de saber gerir o tempo de outra maneira.

Comecei o dia com arrumações. Ainda havia uns sacos de roupa interior, pijamas -- coisas de uso raro. Não que não use roupa interior mas o gosto tem mudado ou as circunstâncias também. Portanto, a de uso normal já estava arrumada. As peças especiais, pijamas e que tais ainda estavam à espera de inspiração no que à arrumação se refere. Uma coisa é a gente ter uma casa e, ao longo do tempo, as coisas irem tomando o seu rumo e outra, bem diferente, é a gente pegar nas coisas que estavam cada uma em seu buraco e agora vir com elas para uma casa nova e nem saber como arrumar. Às tantas só dá vontade deitar coisas fora. Mas uma pessoa vai deitar fora coisa boa, em bom estado, de que um dia pode precisar? 

Depois chegou a minha filha e os meninos. Dia de empregada em casa. Os meninos instalaram-se a ver televisão, vinham ainda cansados da véspera. Meus meninos crescidos e lindos, meus amiguinhos. A minha filha deu um jeito na decoração do meu quarto, depois descobriu um passarinho gordo e em tons clarinhos que colocou na sala e varreu e provou o vestido cujas mangas a minha mãe tinha arranjado. Depois, para lhe mostrar, colocou-se em cima de uma cadeira da casa de jantar e fotografou-se no espelho que está na parede, sobre o aparador. E enviou a fotografia à avó com quem falou a seguir. 

A seguir almoçámos na rua, debaixo do toldo que tem as buganvílias por perto. E sentimo-nos tão bem, num outro mundo. E eu senti aquilo que aqui sempre sinto: que tudo isto ainda me parece um sonho. Dantes, há mil anos, eu gostava disto aqui. Mas por isto, aquilo ou o outro foi sempre coisa que foi sendo deixada para lá. Até que agora. Quase por magia apareceu esta casa e agora aqui estamos. 

Depois ela foi para a praia com os meninos e nós fomos para aquela missão que me dá conta da cabeça: buscar coisas à outra casa. Já vieram os meus casacos de inverno, impermeáveis, capas, casacões de malha. Ele não sei o que trouxe. Pelo menos um blazer eu vi, um dos muitos azuis escuros que tem, todos iguais. E trouxe as gravatas: dozens and dozens. Alturas houve em que não ia trabalhar sem gravata. Sempre teve muito bom gosto para gravatas. Todas hiper clássicas mas de boa qualidade, seda macia, ou lisas ou padrão discreto mas sempre com cores bonitas. Agora raramente usa. Não sei onde as guardou. 

Lá viemos com o carro a deitar por fora, tipo a carrinha dos ciganos quando levantam a banca e vêm com a carrinha atravancada, a deitar por fora com grandes sacalhadas de roupas.

Eu, quando contrariada, calo-me. Foco-me no que tenho a fazer e pratico a contenção emocional. O meu marido é o meu oposto: pragueja, arrelia-se, ameaça que tão cedo não volta lá, que se deve é deitar fora tudo o que ainda lá está, que grande parte da tralha que lá está é minha. Furioso, furioso. Tento não responder para não inflamar ainda mais os ânimos.

Mas eu, muito sinceramente, estou cada vez mais na dúvida. Uma coisa é uma pessoa ir todos os dias para a empresa, ter reuniões várias vezes por dia, todos os dias da semana, ter aquilo de andar aperaltada e gostar disso, e outra, bem diferente. é ter estar em teletrabalho e desejavelmente assim continuar na maior parte do tempo, é ter a cabeça virada do avesso e ter ganho aversão ao consumo. Em que circunstâncias vou precisar de sair de casa dressed to impress? Talvez um ou outro dia. Agora todos os dias...? Não. Vários meses a andar descalça, quase sempre sem soutien, sem maquilhagem excepto para as reuniões (remotas) e, ainda assim, coisa ligeira, sempre na maior das descontracções, já não serei capaz de voltar à vidinha do costume. Tanta toilette, tanta coisa que, para falar a verdade, não sei quando voltarei a usar.

Mas a vida dá tantas voltas, tantas. Sei lá se um dia não volto a ter uma vida nova, cheia de cenas, a precisar de um blazer de linho branco com calças do mesmo? Ou um fato completo em tons de mel? Vou deitar tudo fora? Não sei mesmo que faça. Ou blusas branquinhas lindas mas que me estão justas demais, quase escandalosas... Deito fora? E se consigo refrear os ímpetos carnais que me levam a comer figos aos montes, kefir com frutos secos e mel, pêssegos, uvas e ameixas e volto a caber nelas à larguinha...?

Juro. Não sei mesmo o que fazer. Por um lado poupava-me horas de desgaste: tudo para sacos pretos e tudo para os contentores de roupa. 

Mas, enfim. Quando chegámos e enchemos o corredor de sacos, chegou o meu filho. Veio deixar os miúdos enquanto foi correr com a mulher. Todos bronzeados, mais crescidos. Uma semana sem os ver e já os acho maiores. Mais lindos. Depois, contei-lhe duma coisa que se avariou e ele simpaticamente ofereceu-se para ver. Uma coisa do caneco, num sítio alto, difícil de atingir. Parece que até ficou mal do ombro, tanto se esticou. Mas ficou resolvido.

Quando se foram já não era cedo. Fui lá para fora e, pela primeira vez nestas duas semanas, abri uma cadeira espreguiçadeira e pus-me a ler um livro, neste caso o Narciso e Goldmund. Mas já havia pouca luz. Fui, então, buscar o ancinho que ele me ofereceu pelos anos e fui apanhar flores e folhas secas da relva. Descalça, a relva morna, uma sensação boa.

Depois fui tomar banho, fazer o jantar, peixinho cozido, maruca. 

Quando vim para o sofá, deitei-me a ler. Por pouco não adormeci. Aliás, só não adormeci porque estava a ler de gosto o livro. Mas deu-me o cansaço, lá isso deu. 

Quando liguei o computador, as notícias não me interessaram. Talvez porque a minha cabeça tem andado por outras pastagens, não há touradas que puxem pelo meu afã, nem avantes, nem tiro à dgs, nem marceladas, nem riozices. Não estou nem aí. Portanto, YouTube com ela. E, lá está, o sujeito percebeu que me farto de rir com os malucos e repetiu a dose. E eu, porque me divirto mesmo, com vossa licença, vou reincidir. Tão bom. Gente inteligente é um gosto de ver e ouvir.

Miguel Esteves Cardoso e Bruno Nogueira, uma dupla virtuosa: 
Fugiram de casa de seus pais e disseram das suas. 
Abençoadas cabecinhas.





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Pinturas de Christian Krohg na companhia dos Voces8

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E, por hoje, nada mais a declarar.

Ah, podia falar das cortinas. Mas isso fica para outro dia.

Saúde, sorte e amor para vossemecês.

2 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Hahha, eu tenho um misto de UJM e do seu marido, uma vezes foco-me para resolver as contrariedades a tentar não me arreliar, outras vezes é ralhar e bufar.

Um belo dia.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

E por falar em mudanças, também tenho umas cenas giras, a melhor delas, tinha eu 9 anos, foi uma que fizemos no nosso carro de então, um Renault 5, porque quem estava combinado baldou-se e então um vizinho nosso, artista em improvisos, com cordas fez o serviço. Como tínhamos comprado mobília nova para a sala, a coisa maior a transportar era um sofá 2 lugares e meio (ou seja, sentava bem 3 pessoas, embora fosse considerado 2 lugares). Assim, em modo vai e vem fez-se tudo pelo serão adentro.

Um abraço. P