segunda-feira, maio 18, 2020

Porque sì dolce è'l tormento, be kind -- até porque dizem que dano e virtude andam a par e passo
Um domingo de Maio in heaven





Difícil falar do que penso e sinto. No fundo, se calhar isto tem a ver com o facto destes dois meses terem sido muito desgastantes. No outro dia uma pessoa dizia-me que o teletrabalho para algumas pessoas é um passeio. Diz ele que há pessoas de quem nada sabe vai para dois meses. Acredito. Há trabalhos que se prestam a que, em casa, haja pouco que fazer. Mas para mim não tem sido fácil. A minha filha dizia-me hoje que eu não devia trabalhar tanto. Mas como? E as pessoas que dependem de mim? Vou deixá-las meio ao abandono? Sou de me envolver, sou de puxar por eles. Não sou de me recolher e deixá-los entregues à sua sorte.

O meu marido, que agora observa de perto, diz que ninguém trabalha assim, que é demais. E eu, que sempre trabalhei assim, agora, vendo com o este excesso invade a minha vida familiar e doméstica (porque trabalho em casa, à vista da familia), também acho, também acho que merecia uma vida mais descansada. Só que não sei onde pôr a fronteira entre trabalhar como gosto (e que é a única maneira que conheço) e o baldar-me, deixar os meus colaboradores decepcionados, ficar aquém das minhas próprias expectativas.

Mas, portanto, ando com isto na cabeça.


O dia esteve mesmo bom, um calorzinho bom, um sol suave, todos bem dispostos. O meu marido pelo campo, entregue àquilo de que gosta, depois a arranjar os caminhos, a fazer uma queima de sobrantes, os meninos a brincarem às mangueiradas, com jogos, a minha filha ao sol, a ler, ou a jogar ténis com os filhos. Pelo meio fiz duas máquinas de roupa, estendemo-la ao sol, fiz limpezas. Para o almoço fiz frango no forno e ela fez esparguete para acompanhar. Para a sobremesa tentou replicar aquela gelatina com frutas do self do CAM que todos adoramos. Também ficou boa mas menos compacta e as natas não ficaram bem em chantilly porque não tenho batedeira, só tenho varinha. Mas ficou saborosa na mesma. Para o jantar fiz sopa de tomate com corvina e ovo escalfado, que eles comeram com pão torrado no fundo do prato (eu não, tenho que dosear, caraças, senão ainda acabo a quarentena com meia dúzia de quilos a mais). Os meninos comem como uns lobos. Pasmo. Fazem-me lembrar o meu filho na idade deles, também comia quantidades desconcertantes. Só que, como ela nunca foi de comer muito, a coisa, no conjunto, não era excessiva. Agora estes dois lobinhos comem que é uma coisa do além. Dá gosto. Eu, que gosto de cozinhar e ver que à minha mesa toda a gente se alimenta bem, fico consolada. O meu marido, volta e meia, desabafa: 'Eh pah, já estão a comer outra vez... Eh pah, assim não dá, daqui a nada já não há, outra vez, fruta...'. Quem diz fruta diz pão, que são coisas que voam. Mas, por hoje, ainda ali há um tabuleiro cheio de maçãs, peras, um prato de bananas, um saco de laranjas. Temos nêsperas nas árvores mas ou estão lá em cima demais, outras caem, outras os pássaros comem-nas. Por isso, não rendem nada.


Hoje perguntei ao meu marido: 'Vês-te a regressar ao trabalho em Lisboa?'.  Respondeu-me apenas: 'Vejo'. Espantei-me: 'A sério?'. Limitou-se a dizer: 'Tenho que voltar'. Mas já estava noutra, dali não dá para arrancar muito. 

De televisão, de novo, pouco ou nada vi. O Marcelo a festejar, de máscara, creio que a beber uma imperial e a fazer selfies. Não sei onde mas andava muita gente de roda dele. Quando uma pessoa vive no campo, ocupada de manhã à noite, é quase como se estivesse noutro lugar, noutro tempo, fora da realidade que tanto dá que escrever e falar a comentadores, jornalistas e afins.

Ah, ainda outra coisa. De manhã, alarido lá fora. Fui ver. Tinham encontrado a pele de uma cobra. Prateada, quase transparente, bonita. 


Fui ver, fotografei. Regressei à lida. Passado um bocado, um alarido ainda maior. Tinham visto a cobra. Dizem que era grande, gorda. A minha filha também a viu, diz que teria um metro ou metro e meio. Fui ver mas já não a vi. O meu marido só dizia que não queria ninguém descalço ali onde a cobra andava. Passa-se com a falta de cuidado de toda a gente. 

O mais novo veio a correr a casa e passado um bocado andava a dizer que era uma cobra rateira. Perguntei como sabia. Disse-me que tinha pesquisado. Depois foi o mais crescido que me apareceu a pedir o tubo de aspirador para a apanhar, que tinha pesquisado e que era a maneira de a caçar. Depois engendrou uma armadilhae passou à prática: um tubo com uma ponta no lugar por onde a cobra se tinha esgueirado e a outra ponta dentro de um jerricã. Mas não foi bem sucedido. Quando estava a falar com a minha mãe fui várias vezes interrompida, queriam isto, aquilo e o outro. Contei à minha mãe. Ficou assustadiça. Tem medo de cobras. Descansei-a, que a cobra é pacífica (sei lá se é...), que já fugiu para longe (sei lá se fugiu...). 

É a vida do campo, sempre uma animação.


À noite, estávamos aqui na sala, a minha filha de costas para a porta, vimos o gato a passar encostado, a espreitar. O meu marido disse: 'Olha o gato'. A minha filha deu um salto, assustada. Como à noite costumamos ter as portadas de fora fechadas e, portanto, não se vê para a rua, ela pensou que o gato estivesse dentro de casa. Mas não, tínhamo-nos era esquecido de fechar as portadas de fora. O meu marido, que passa a vida a avisar para não deixarmos as portas todas abertas deve ter pensado que qualquer dia, quando dermos por ela, temos mesmo o gato cá dentro. 

E é isto. Vou parar de escrever pois, por muito que escreva, pouco mais digo do que isto. 


Só que dei a ler à minha filha o Dano e Virtude da Ivone Mendes da Silva. Devorou-o. Gostou muito. Eu também. A autora é a autora e a personagem e o argumento e o fio que percorre o argumento e as palavras que dão corpo ao fio que vai tecendo, parágrafo a parágrafo, os dias que parecem iguais mas que são todos diferentes.

E eu, ao escrever o que estou a escrever, penso: e se eu agora abrisse as portadas de vidro e também as de fora e, de repente, vindo do nada, devagar, na ousadia, na malícia, assomasse aqui à porta o leopardo azul que todos os dias me deixa pétalas azuis voando no espaço, pétalas cujo perfume só eu reconheço? Que faria eu? Se calhar apagava a luz e ia para a entrada da casa, sentava-me no chão, deixava que ele viesse cheirar-me, dir-lhe-ia, em silêncio, palavras inventadas, sorrisos feitos só de olhar, um olhar feito de luz e de lágrimas. Talvez ele se sentasse também, talvez se deitasse olhando o céu e, de vez em quando, olhando os meus olhos como só ele sabe olhar.

____________________________________________________________________

Como é bom de ver, as fotografias foram feitas in heaven
Lea Desandre & Thibault Cauvin interpretam Sì dolce è'l tormento de Monteverdi
E, como não há duas sem três, despeço-me com Be Kind de Charles Bukowski
_____________________________________________________________________



Uma boa semana!

2 comentários:

Lúcio Ferro disse...

Cuidado com os leopardos, azuis ou não, os leopardos são carnívoros. ;-)

Um Jeito Manso disse...

Olá Lúcio,

Não, os leopardos azuis são leopardos filósofos, metafísicos, taoistas, dados a subtilezas. Alimentam-se de ar, de sonhos, de palavras. Portanto, não há perigo...!

:)

Aproveite bem estes dias de calor em liberdade!