quarta-feira, maio 20, 2020

Filmes, o devir do tempo, a ambiguidade, memórias





Tenho aqui nesta sala três estantes com dvd's. Penso que aqui tenho belos filmes. A estante que está aqui mesmo ao meu lado, uma das três, é uma estante pequenina que, com desenho meu e a meu pedido, o meu pai me fez. Já o contei várias vezes mas, quando vejo coisas feitas por ele, sempre sinto aquele orgulho que é um misto de orgulho e de surpresa. Toda a vida ouvi a minha mãe dizer que ele era o oposto do irmão. Enquanto o cunhado é habilidoso, cuidadoso, perfeccionista nos trabalhos que faz, a minha mãe achava que o meu pai não tinha jeito nem gosto em nada que fosse bricolage ou afins. O jardim do meu tio sempre estava relvado, com muitas flores, muito bem cuidado, com uma estufa com espécies delicadas enquanto o nosso era meia bola e força, sempre pensado pelo meu pai para ser fácil de manter. Contudo, ao reformar-se, para surpresa geral da família, dedicou-se a trabalhos que deixavam toda a gente espantada.


Com o rigor que punha nos seus projectos e desenhos a nível profissional, assim se dedicava ele aos seus trabalhos de marcenaria. Projectava com rigor, fazia cálculos e medições, adquiria os materiais com precisão e depois passava à execução seguindo à risca os projectos. Passei a ser sua cliente habitual. A minha mãe gostava pois ele estava entretido. Ia para o seu espaço de trabalho e ali estava horas a fio. Ali ao lado da salamandra está um dos trabalhos que mais o pressionou: o meu carrinho das tintas que tem duas prateleiras em baixo e, na de cima, compartimentos para as bisnagas e para os pincéis. 

Bem, mas falava eu nos filmes que aqui tenho. Gosto de passar os olhos por eles. Recordá-los. Quando os meus filhos deixaram de vir connosco ao fim de semana aqui para o campo por acharem que era uma seca, nós vínhamos ao sábado à tarde e íamos ao domingo também à tarde. Eles jantavam e almoçavam em casa dos meus pais. Depois casaram e também não achavam graça a virem para cá. Vinham de vez em quando mas, claro, não tão frequentemente quanto à cidade. Tínhamos, pois, o tempo por nossa conta quando aqui estávamos. Víamos os filmes que nos apetecesse e, aqueles a que o meu marido não achava especial interesse, via-os eu ao sábado à noite, até às tantas.

Não sei como mas recordo esses tempos como tendo uma disponibilidade que hoje não tenho.

Aliás, agora nem é só uma questão de indisponibilidade: agora até o leitor de dvd's se avariou. E, ao pensar que temos que ver se o aparelho tem arranjo, ocorre-me que, às tantas o que fará mais sentido será subscrever a netflix ou o hbo.


Houve tempos em que tinha filmes em cassettes e, agora que escrevo cassettes, nem estou certa de que esse era o nome certo. Tapes não é. É capaz de ser mesmo cassettes, mas grandes, não como as pequeninas dos carros, com música. Temos ali na arrecadação gavetas com cassettes com filmes. Havia duas tecnologias e lembro-me das discussões lá em casa sobre qual a mais universal. Agora nem consigo lembrar-me dos nomes dessas tão importantes tecnologias. Uma coisa que passou à história. Agora, se calhar, são os dvds que passaram ou vão passar. No outro dia, ao arranjar espaço no roupeiro aqui do quarto, dei com uma maleta antiga. Lá dentro tinha duas disquettes. Não faço ideia do que lá esteja. Já não há computadores onde usá-las e provavelmente foram escritas com recurso a programas que hoje também já não existem. E, com esse devir, o que em tempos foi relevante não apenas perde relevância como é forçado ao esquecimento eterno pois deixa de haver onde sequer visionar o que contém.


Claro que isto é conversa de pessoa vcc (= velha como o caraças) pois gente nova julgará que a tecnologia actual foi criada por deus nosso senhor ao oitavo dia.

Outra coisa, por exemplo. Embora não tenha nada a ver com tecnologias. O móvel que tenho à minha frente, onde a televisão está em cima, é um móvel antiquíssimo que veio da casa dos avós e de duas tias do meu marido. Ainda lá está dentro o serviço de chá de que elas tanto gostavam. Na parte de baixo de uma das prateleiras há camarões onde as chávenas estão penduradas pela asinha. Umas peças de louça lindas, creio que bem valiosas, verdadeiras relíquias. Apesar de frágeis, têm atravessado o tempo. Elas, que tão bem cuidaram destas peças, já se foram e as peças ainda cá estão. Provavelmente sobreviver-me-ão. Mas, ao falar nisto, interrogo-me sobre o sentido de tudo isto. Com o medo de as partir, nunca as uso. Acabo por nem me lembrar delas. Será a melhor forma de as preservar?


Depois, encho-me de um pragmatismo. Penso que, se as usasse, na volta, onde é que elas já iriam. É como uma caneca grande, de cerveja, de que o meu marido gostava. Gostava. No passado. Hoje a minha filha resolveu fazer um bolo de caneca. Ou a receita estava enganada, com tempo a mais, ou outra coisa qualquer correu mal. A caneca rebentou, a parte de baixo do bolo queimou-se e encheu a casa de cheiro a esturro e, a parte de cima do putativo bolo de limão, embora não queimada, ficou sólida e compacta como um calhau. Mas, no meio da animação que é o dia inteiro, já ninguém se espanta ou liga muito a minudências desse tipo. Mas, de certeza, se fosse uma chávena do século passado já haveria desgosto.

E estou com isto tudo porque estive a ver o vídeo abaixo e gostei de ver a Isabelle Huppert a observar as caixas dos filmes e a recordá-los. É uma mulher interessante, ela. Sorri enquanto fala, irradia luz. É daquelas mulheres irresistivelmente interessantes. Gosto dos seus personagens ambíguos. A ambiguidade assenta bem numa mulher. Eu, pelo menos, acho isso. Já os homens não, os homens devem ser tudo menos ambíguos. A ambiguidade num homem leva uma mulher ao desespero.


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Isto de só escrever tarde e más horas leva-me a produzir textos aos ziguezagues. Sei que mudo e desmudo de assunto enquanto escrevo mas não tenho tempo ou disposição para apagar e recomeçar direitinho. Espero é que não fiquem almareados ao ler estas palavras escritas ao sabor da ondulação do pensamento.

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As fotografias foram feitas aqui em casa, in heaven, e acho que vêm bem ao som de Chet Baker e Bill Evans.

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Uma boa quarta-feira.

3 comentários:

Lúcio Ferro disse...

Enfim, já eu, vejo-me mais como Velho, Híbrido, Sistemático. Claro que, no passado, também houve uma versão Beta de mim mesmo. E, antes das diskettes ainda brinquei com floppy diskettes. Quanta a chávenas, vou contar-lhe um segredo: tenho um serviço em casa (lx) que era da minha avó materna, um daqueles em que no fundo das chávenas à luz aparece o rosto enigmático de uma mulher. Quando vim para o campo, trouxe uma das chávenas e não é que a parti? Ora, bolas, para a frente é que o futuro, já só eram cinco quando herdei esse serviço, ficaram quatro, sempre emparelham. :-)

Anónimo disse...

Pergunta indiscreta: qual a ordem pela qual arruma os DVDs de forma a encontrar com facilidade aquilo que um dia quererá ver? realizador? actor principal? género? Debato-me com essa dúvida, dono que sou de umas boas centenas (eu disse centenas...).
Desejo-lhe um feliz teletrabalho e um bom fds, já aí à porta.
MPDAguiar

Um Jeito Manso disse...

Olá MPDAguiar

Não sou especialmente criativa... Organizo-os por ordem alfabética de título. Não conto com artigos definidos ou indefinidos, claro. Por exemplo O Boxeur está nos Bs.

Contudo, nas outras duas estantes organizo-os por séries: filmes que que entra a Meryl Streep e, aí dentro, por ordem alfabética de títulos, filmes em que entra o Clint Eastwood, filmes de realizadores. Claro que a série dos filmes da Meryl Streep vem depois das do Clint pois aí também impera a ordem alfabética.

Uma boa sexta-feira de verão!