Tenho para mim que, por natureza, tenho a curiosidade e a capacidade de encantamento de uma criança. Talvez isso resulte de um misto de genuína inocência e de esforçada ignorância. Isso permite-me deslizar pela vida com aquela leveza de quem passa ao lado das pingas da chuva, das ameaças existenciais e dos olhares gordos. Seja o que vier por mal, bate na trave, faz ricochete.
Só que sou assim, mas, podendo parecer que não, tenho em mim alguma reserva de cepticismo que me permite, de quando em quando, dar um passo atrás e, antes de me entregar ao desfrute, questionar das boas intenções da situação.
Por exemplo, perante algo que me parece extraordinário, antes de me pôr, embasbacada, a tecer loas, interrogo-me: 'Será que não é fake?'. Ponho-me a ver. 'Parece mesmo de verdade...' mas, ao mesmo tempo, 'isto, na realidade, não pode acontecer...'. E assim fico, desejosa de acreditar, de louvar, de sair a correr a partilhar com todos a coisa fantástica que vi, e, ao mesmo tempo, com a amígdala a carregar no travão emocional, 'não vás, ainda fazes papel de parvinha, já viste se vais mostrar que acreditaste numa piroseira que se vê a milhas que é obra de inteligência artificial....'
E a questão é que esta exacerbação se vai expandindo e, às tantas, já desacredito de tudo.
Por exemplo, vi nas notícias que uma mulher em trabalho de parto foi mandada para casa, que aquilo não era nada, ora essa. Passadas três horas, apenas três!, estava de volta, aflita, a criança já entrepernas. Dito assim, imagina-se que meio mundo teria desatado a correr, a pôr a senhora numa maca, levando a maca, todos a correr pelos corredores em direcção ao bloco de partos. Só que afinal não. Pelos vistos, naquele hospital é gente que atua num outro comprimento de onda, mais naquela base do tudo bem, a senhora já está a desovar mas nada de pressas, que tire a senha e vá inscrever-se que as coisas não são assim, à la Gardère, muito menos à vontadinha. A senhora, coitada -- nem quero pensar na aflição, se eu já fico aflita quando tenho vontade de fazer chichi e tenho que aguentar --, imagino bem o que é a sentir a criança a escorregar à força toda e ter que fazer força para ela não sair. Caraças. Só que, disseram nas notícias, a senhora não conseguiu reter e, ali mesmo na recepção, a criança caiu-lhe aos pés, uma queda a pique, a cabeça da criança a bater no chão.
Ora, perante isto, fico naquela... Isto só pode ser fake... Nem com o polígrafo a pôr-lhe o carimbo de verdadeiro eu engulo esta. Pode lá ser... Estarão os hospitais e o pessoal médico-tarefeiro (leia-se, fugitivos ao fisco) tão desatinados que uma coisa destas pode mesmo ter acontecido? Ná, não papo esta. Vão enganar outro.
Também li que, mais uma vez, os Bombeiros da Moita fizeram um parto na ambulância. Já vão em 15 só este ano. Desculpem mas também não manjo. Alguém acredita que a falta de Urgências Obstétricas em Portugal esteja a atingir números tão sétimo-mundistas que a mulherada, em especial as pobre coitadas da margem sul, agora parem nas ambulâncias? Não. Não pode ser. Na volta, os tipos (ie, os Bombeiros da Moita) têm alguma pancada e é tudo a fingir, na volta não são bebés de verdade, são reborns, fingem que estão a fazer partos e fingem que sacam reborns de dentro das mulheres. Só pode, não é?
E mais outra. Ando sem saber em quem votar nas Autárquicas. Quero comparar programas eleitorais, quero avaliar o CV dos candidatos. E não descubro isso em lado nenhum. Já pesquisei de todas as maneiras e apenas descobri de um deles. De todos, encontro o facebook que contém as fotografias e toda a espécie de palha. Programas, nada. Não sei se sou só eu que quero informar-me antes de votar. Se calhar sou. Se calhar, é isso: ando desconfiada, não quero ir em conversas ou em sondagens. Quero conhecer os compromissos dos candidatos. Mas os candidatos ou não têm compromissos ou estão-se nas tintas para os dar a conhecer.
Acontece que hoje à noite, ao irmos dar a nossa volta higiénica com o cão, vimos, no larguinho, um pequeno grupo de pessoas silenciosas com papéis na mão. O meu marido disse: 'Deve ser a campanha.'. Não acreditei: 'Campanha? Em ruas desertas? À noite? Ná...'. Mas, pelo sim, pelo não, dirigi-me a eles: 'Desculpem... Tem a ver com as eleições?'. Olharam para mim, admiradíssimos, como se tivessem sido apanhados em flagrante. Depois, vencido o espanto, uma senhora fez que sim com a cabeça e deu-me um papel. Eu disse: 'É que estou farta de tentar encontrar o programa eleitoral dos partidos e não encontro.'. A senhora disse: 'Agora já aí tem. Vamos distribuir nos próximos dias...'. Ri-me: 'Já não vai dar muito tempo, as eleições são dentro de dias... E podiam pôr no site, ficava acessível a toda a gente...'. Olharam para mim, espantados e em silêncio, como se eu estivesse a sugerir que se montassem num foguetão para distribuírem propaganda política a partir de Marte.
Quando cheguei ao pé de um candeeiro, espreitei o papel para ver de que partido era. Pois, lá está, do partido em que, de certeza, não vou votar.
Portanto, já se vê. Estou desenquadrada disto tudo. Desconfiada. Céptica. Céptica mas não cínica. Ser-se cínico é outra coisa, é ter uma desconfiança moral a propósito de tudo e de todos. Ser céptico é diferente, é alimentar uma permanente dúvida racional. Só que o drama é que, depois, não tenho como encontrar as provas de que necessito. Uma frustração.
Por exemplo:
Este vídeo é real? Estes bichos existem assim, fazem isto, isto tal e qual? Estes saltos? Estas guerras malucas? Posso acreditar que não é fake? Não será coisa de IA? Pode ser, não é?
E este aqui abaixo? É real? Já vi tantas vezes a Música no Coração. Conheço esta canção, claro que conheço. Quem a não conhece? Ou seja, posso jurar que não tem nada de fake. Real, real, real. Ou não?
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