Quando eles saíram -- e é sempre aquela alegria de estarmos juntos, os rapazes falando insaciavelmente de futebol, toda a gente conversando, muito apetite em volta da mesa, depois uns vendo a final do Roland Garros, outros jogando vólei ou badminton ou descansando e sempre muito movimento e boa disposição -- deitei-me no sofá e adormeci. Ferrada. Na televisão estava a dar futebol, claro. Mas não dei por nada.
Às tantas, ouvi, remotamente, uns apitos e não percebi de que se tratava, mas também não acordei.
Só depois de o meu marido me chamar várias vezes, dizendo que depois não durmo de noite, é que consegui começar a despertar. Percebi que os apitos eram do microondas, ele a aquecer o jantar. Acho que lhe disse que eu não jantava mas não me lembro de nada. Quando consegui levantar-me do sofá, comi uma banana e uns miolos de amêndoa. Também tinha lanchado, era normal que não tivesse tido fome para jantar. E, ao lanche, imagine-se..., até comi umas fatias de brownie que dois dos meninos tinham feito. Ai a minha dieta... Como nunca como doces, aquelas fatias de bolo souberam-me ainda mais maravilhosamente.
Depois, estive a ver televisão e a ler um pouco mas ainda estou com sono. Creio que foi porque acordei mais cedo do que devia. Passou um carro com uma sirene e os cães da vizinhança desataram todos a uivar. Como durmo de janela aberta, ouve-se tudo. Ainda tentei dormir mas já não consegui. E fiquei em défice. Longe vão os tempos em que dormia umas cinco horas ou cinco e picos, vá lá seis, e ficava para as curvas. Agora tenho que dormir no mínimo sete horas. Dá ideia que acumulei e que que estou a pôr em dia. Ou isso ou ainda é efeito covid, já aqui falei nisso muitas vezes.
Estou a escrever e a ouvir a rega. Gosto de ouvir regar. Gosto de sentir o ar fresco e húmido que vem da terra. É quase como chover. Gosto de ouvir a chuva, gosto do cheiro da terra molhada.
Estava aqui a pensar que os meus filhos me contam coisas dos seus trabalhos. Falam-me de situações pelas quais também passei, identifico-me com o que dizem, com os stresses em que se vêem, reconheço os dilemas que enfrentam ou a que assistem. Sinto-me solidária. Compreendo-os muito bem, já estive no papel em que eles estão agora. Mas, estando tudo ainda tão presente, a verdade é que me parece que era outra-eu ou, então, que eram outros tempos, tempos que atravessei por acaso, ou outras geografias que frequentei também por acaso.
Acomodamo-nos a tudo, é certo. Para mim, começar a trabalhar em ambiente empresarial aos vinte e dois anos, vinda de uma realidade académica (estudar e ao mesmo tempo ser professora) foi natural. Ver-me metida em projectos de grande complexidade e ser acompanhada por especialistas do Banco Mundial que vinham dos Estados Unidos para se reunirem comigo e verem a evolução do meu trabalho era natural. Ter filhos pelo meio era natural. Arranjar tempo para uma dedicação que sempre foi absoluta era natural. Ocupar cargos dirigentes aos trinta e poucos era natural. Seleccionar empresas internacionais para trabalharem comigo em projectos inovadores e disruptivos era natural. Mudar de área profissional ou de empresa ou acumular áreas ou trabalhos em várias empresas era natural. Trabalhar horas a fio, fazer apresentações para muita gente, participar em projectos de reorganização que implicavam 'libertar' milhares de pessoas era natural. Sempre foi tudo natural. Sempre me adaptei sem esforço, sem 'teorias de cão caça', sem me vitimizar ou sem me achar especial. Sempre me senti bem na minha pele. Travei montes de lutas, fui contestada, contestei, parti louça, virei mesas, atirei granadas para cima da mesa (pelo menos, era o que diziam que eu fazia). Mas para mim isso era natural. Não me enervava, não me zangava, não me tirava o sono. Parecia que ser assim e viver assim era a minha natureza. E era.
Mas a verdade é que, agora que larguei tudo, me sinto ainda melhor. Não sinto falta, não tenho saudades. Se calhar, mudei.
Talvez que uma possível explicação seja que, durante todos aqueles muitos anos, sempre me mantive próxima da minha família, eles sempre foram a minha primeira e inquestionável prioridade, o meu verdadeiro propósito. Ou seja, se calhar toda a minha vida profissional sempre foi uma adjacência, uma circunstância, talvez uma necessidade mas não a minha verdadeira natureza. Não sei, é uma tentativa de explicação. Além disso, também sempre consegui compatibilizar todo aquele frenesim com um espaço meu, vital, para ler, para escrever, para bordar, para pintar. Roubava ao sono. Para não prejudicar o meu tempo com a família, era quando todos dormiam que eu ia fazer aquelas coisas de que sentia falta.
E ainda é assim. Ainda não consegui desligar-me do hábito de ser quando a casa está silenciosa que eu abro o computador (digo que abro porque é portátil e o fecho quando acabo de escrever) e solto as mãos e me entrego a estes momentos só meus.
Claro que é bizarro dizer que os momentos são só meus e, ao mesmo tempo, estar a soltá-los aos sete ventos, para que quem quiser os conheça. Mas isso já são outros quinhentos, são os paradoxos destes tempos em que podemos comunicar com o mundo inteiro em tempo real e, ao mesmo tempo, fazer com que todas as palavras e imagens fiquem a pairar por aí até ao fim dos tempos.
E pronto, já estou a divagar. Nem sei se alguma destas coisas que estou para aqui a dizer faz grande sentido. Vou mas é dormir.
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Boa semana
Dias felizes. Saúde e boa disposição.
4 comentários:
Para mim, nascer numa familia pobre e temente ao Senhor e aos senhores, num prédio sem luz ou saneamento básico, na capital do que restava de um império, foi normal. Ter sido abandonado junto com a mãe e um irmão bébé, pelo pai que se juntou a uma sra. que tinha dinheiro e outras coisas, foi normal. Começar a trabalhar aos nove anos foi normal. Ter percebido que a igreja era uma farsa, quando no confessionário o padre queria era saber dos meus pecados com meninas ou com outros meninos, foi normal. Estar a preparar-me para assim que tivesse idade me oferecer voluntário para os fuzileiros, para ir a africa mostrar aos turras como era, foi normal. Acordar para a realidade, depois do 25 de ABRIL, passando do obscurantismo para a informação, foi normal. Ser pai aos 19 anos foi normal. Trabalhar quase 50 anos, e ser prejudicado na aposentação, porque uma geringonça elaborou uma lei das carreiras longas, mas não considerou nela quem descontou para A CX NACIONAL DE PENSÕES- PREVIDENCIA do tempo da outra senhora, foi normal. Ver que hoje, no século 21, na era da informação, o que prevalece é a desinformação, mesmo para aqueles que pela sua qualidade intelectual, deveriam ter o discernimento para perceber a realidade, já não é normal. Mas tudo vale a pena, quando a alma não é pequena. Abraço. M. Linho.
Uma vida cheia, vero ?
Uau... que testemunho poderoso. Já li algumas vezes. Gostei de ler. Muito obrigada.
Vero. Veríssimo. Cheia e boa.
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