Saímos muito tarde do campo. Só vi as imagens da cerimónia de adeus a Jorge Sampaio à meia noite ou quase, nem sei. Momentos muito dignos e muito emotivos. Do que vi, em especial nas palavras dos filhos, pareceu-me que houve uma autenticidade e uma clareza que honraram a memória de Jorge Sampaio não apenas enquanto figura pública mas também enquanto pai, certamente um pai muito querido.
Vi ali uma dimensão superior que não é muito habitual. Parece que, de repente, se sentiu uma convergência no sentido de uma escala de altos valores morais, éticos, cívicos, bem acima das pequenas irrelevâncias que parecem corroer o quotidiano da vida social e política em Portugal.
A organização do espaço, um certo distanciamento a que a covid obriga, a contenção e, ao mesmo tempo, a emoção que perpassava por todos parecem ter contribuído para que a despedida a Jorge Sampaio tivesse sido um momento ímpar.
Perante estes momentos e perante a saudade que ele nos deixa, pouca vontade tenho de falar das minhas coisinhas.
Mas a vida da gente é também a vida de todos os dias, a vidinha, a nossa vidinha. E este blog é apenas o despretensioso canto para onde venho ao fim do dia para descansar a cabeça.
Por isso, apesar de sentir o peso emocional da partida de um homem bom que era uma referência da defesa da democracia, da liberdade, da inclusão, do respeito pela dignidade e do direito ao futuro, vou escrever algumas palavras sobre o meu pequeno dia.
Arranjámos duas pequenas plataformas com rodinhas e porque devo ser casada com um hércules de verdade, ele conseguiu levantar o bisonte em peso enquanto colocávamos as ditas plataformas por baixo. E assim, com o bisonte montado num carrinho, levámo-lo caminho afora até à casinha das ferramentas.
Só que cometi um tremendo erro. Estava incumbida de medir o animal e a porta da casinha por onde deveria entrar. Concluí que passaria à justa. Contudo, lá chegados, percebemos que qualquer coisa não estava bem. Medi o corpo do animal e porque à vista desarmada se via que a base e o tejadilho eram mais largos, medi o que estava mais à mão: a base. Só que, hélas, o tejadilho tem mais dois centímetros que a base. Portanto, missão abortada.
Uma vez mais o meu marido tinha uma solução: desfazermo-nos do pouco-amado guarda-fatos. Mas eu não desisto assim tão facilmente.
Pensei, então, em colocá-lo no quarto do estúdio. Para isso, ter-se-ia que retirar o pequeno roupeiro que lá estava, o que era do quarto da minha filha quando era miúda, que iria, esse sim, para a casa das ferramentas.
E foi o que fizemos. Foi uma empreitada pesada, a la Ilha de Páscoa. O meu marido, sempre com medo que me dê algum fanico, está o tempo todo a mandar-me não empurrar, não levantar, não puxar, não fazer força. Por isso, para além de empurrar, levantar, puxar, carregar, estou sempre a ser impedida de fazer o que me apetece ou, pior, a ser admoestada.
Mas fez-se.
A arca, a famosa arca, está a esta hora na mala do carro. Tivemos que rebater os bancos. Agora era tarde e estávamos exaustos e cheios de fome, já não deu para tirá-la do carro.
De lá, da arca dos mil tesouros, saiu um grande e quentinho cobertor, vários naperons de renda e lá continuam lençóis e toalhas e renda e bordados, parte dos quais, provavelmente, do enxoval de tias há muito falecidas.
Entretanto o 'tasker' que ia montar o roupeiro no nosso quarto e outas insignificâncias e que estava escalado para as dez da manhã, apareceu às cinco da tarde. E, em vez de trazer um ajudante, apareceu sozinho. Portanto, em desespero de causa, o meu marido acabou a montar sozinho duas das peças cuja montagem pagámos ao tasker e, ainda assim, acabámos por sair de lá à hora a que deveríamos estar aqui, banhos tomados, jantares despachados. Um desespero.
Mas o quarto está outro. Parece que cresceu. E é agora um lugar de serenidade e leveza. A diferença que faz ter as divisões com móveis escuros ou com móveis claros. A nossa disposição, queira-se ou não, ilumina-se. Acho que o guarda-fatos, que agora navega noutras paragens, não vai escapar a, um dia destes, ser pintado de verde claro ou de cor-de-rosa suave, pó de giz (quiçá até às cores).
Sobre duas das pequenas outras peças que vieram para além do roupeiro falarei noutro dia: cada uma tem um uso atípico e, diria, algo arriscado. Mas não digo nada. Talvez mostre fotografias daqui por uns dias.
Esta segunda-feira retomo a rotina pré-férias e talvez consiga ter uns dias mais descansados. Não sei se posso dizer que tive férias mas, nestas coisas, é mesmo assim: cada um tem aquilo que merece.
E, por ora, é isto.
Ah, só mais uma coisa: ao telefone com a minha mãe, disse-me ela com voz embargada, certamente com os olhos cheios de lágrimas: 'Se o teu pai ainda fosse vivo, fazíamos hoje...' Interrompi-a para ver se não rompia mesmo em pranto: 'Eu sei, faziam anos de casados'. Sinto muita pena por ela, por saber que fica triste por não tê-lo cá para festejar com ela.
3 comentários:
Podemos aproveitar o seu blog para lançar uma candidatura. Jorge Sampaio a Prémio Nobel da Paz, por tudo o que fez e defendeu. Grato.
D'Albano
O nosso querido Jorge Sampaio deixa obra e não só boa, mas também bela. Tenho o prazer de ter tido como Diretor o Prof. Daniel Sampaio, outro homem de craveira.
O seu heaven está a ficar o verdadeiro wonderland, decerto.
Não tenha azares com molhas.
Um bom serão.
Assisti em direto à cerimónia fúnebre de Jorge Sampaio e comungo inteiramente das suas impressões. Entretanto, dei por mim a pensar : Cavaco morrendo, vai ter também que ter um funeral de Estado. Mas o que vai haver de bom e nobre para dizer sobre a personalidade e feitos da criatura? O melhor é que se mantenha vivo pois sempre se adiam embaraços.
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