terça-feira, março 23, 2021

Uns estão desesperadamente sós e outros desesperados por ter um tempo só para si

 


Recebi uma chamada de uma ex-colega com quem antes falava bastante. Agora estamos em empresas distintas, cada uma trabalhando em teletrabalho, as casas longe uma da outra. Deixámos de nos encontrar quotidianamente pelo que, cada uma com o seu trabalho e a sua família, a oportunidade para nos pormos à conversa não surge naturalmente. Ligou-me estava eu em reunião. Avisei que ligava depois e liguei. Estivemos mais de uma hora, de gosto, à conversa. 

Contou-me de um outro, nosso conhecido, que está reformado há uns dois ou três anos e que continua a trabalhar. Diz ela: só sabe trabalhar, não se vê a estar em casa sem nada que fazer. A mulher ainda trabalha, o filho está no estrangeiro, o neto também. Portanto, nada o puxa para casa. Já reformado? Não fazia ideia. Fiquei muito admirada. Deve ser um bocado angustiante uma pessoa saber que já pode, e se calhar deve, ficar em casa, não precisar de mais dinheiro e, portanto, trabalhar apenas porque não sabe, ou não quer, fazer mais nada.

Esta minha ex-colega, que tem família numerosa e que antes relatava vitórias e provações dos filhos, dos netos, dos genros, dos compadres e demais familiares, agora, por causa da covid que a força a estar longe dos familiares, fala-me de animais de estimação, de flores, de passarinhos no jardim, da horta -- e está igualmente feliz. Já antes aqui falei dela. Tudo lhe tem acontecido e tudo ultrapassa com uma perna às costas, sempre na boa, sempre na levezinha.

Hoje, ambas na má língua a propósito de uma outra, rimo-nos a bom rir. E o que ela penou para aturar a outra, uma incompetente e vigarista encartada, uma flausina que mascarava o bluff que era com um rebuscado charme. Mas penou também na desportiva pois achava a outra tão postiça que não conseguia levar a sério tudo o que vinha dela. Agora que a outra deu de frosques, ainda mais na desportiva ela encara aqueles anos que poderiam ter deitado abaixo o seu optimismo. Contou-me cenas da outra, cenas verdadeiramente imperdoáveis, altas sacanices, e fartámo-nos de rir.

Habituada a uma casa sempre cheia e a andar num virote para ir trabalhar longe de casa e para acudir à legião que sempre estava de passagem por sua casa, isto quando a criançada não era lá deixada (o que era quase inevitável dada a profissão dos pais), agora vive o oposto e continua feliz da vida. Perguntei: 'e não sente a falta da barafunda?'. E ela, rindo: 'eu não; vemo-nos por vídeo; e temos tempo, qualquer dia isto passa; e nunca tive uma vida tão regalada como agora; não quero outra coisa'. Diz que faz o mesmo trabalho que fazia antes ou talvez mais mas não perde tempo com o trânsito, que o trabalho em casa caiu para perto de zero e que isso lhe sabe a merecidas férias. E ri de gosto.

Li que umas pessoas estão desesperadamente sós e outras desesperadas por ter um tempo só para si. E perguntam onde nos encaixamos. Fiquei a pensar. Durante muito tempo desejei ter disponibilidade para estar sossegada ou para fazer o que me apetecesse. Agora, com o confinamento, tudo se alterou. Mas porque coincidiu com isto o ter mudado de trabalho e ter pela frente e em mãos um desafio muito absorvente (por vezes, esmagador), o que aconteceu é que o meu tempo de trabalho tem galgado para o tempo do descanso. Talvez por isso, não sinto sombra de solidão. Mas a verdade é que nunca a senti. Não me lembro de alguma vez me ter sentido sozinha. Mesmo se alguma vez o estive, ocupei o tempo a fazer coisas que me sabem bem fazer. Posso agora sentir saudades de estar com os meus, de os ter próximo de mim, mas o tempo em que estou sozinha sabe-me bem. Claro que sozinha também não estou. Mas, de vez em quando, gosto de estar no meu canto e isso é bom. 

Contudo, penso nas pessoas que vivem sozinhas e que, com o confinamento, não podem sair e encontrar-se com amigos. Deve ser muito triste. Aí a solidão deve pesar e de que maneira. Penso também nas pessoas que estão vinte e quatro horas por dia com companheiros com quem já não sentem grande afinidade, com filhos que impedem que certas situações se esclareçam de frente, com trabalho a fazer e sem um minuto de privacidade. Deve ser de deixar os nervos em franja, um sufoco, uma asfixia.

Por tudo o que se tem passado na casa e na vida das pessoas, imagino que, logo que isto desconfine a sério, muito desequilíbrio emocional venha a ver a luz do dia. O que tem que rebentar, há-de rebentar quase como uma explosão e isso, antevejo, acontecerá mal se volte a sentir o prazer da liberdade que acompanhará o alívio ou a ausência de medo.

Eu o que me apetece fazer, para além de voltar a ter a família reunida, é passear pelo meu país. Tenho muita vontade de andar a descobrir montanhas ou a beira de riachos escondidos entre arvoredos. Muita, muita.

No outro dia, uma com quem conversava pelo telefone dizia que estava cheia de saudades de fazer retiros daqueles em que passava uma semana ou um fim de semana prolongado enfiada num mosteiro, em silêncio, fazendo meditação, ioga, lendo. Sem computador ou telefone, sem conversar. Só silêncio. Estando em teletrabalho e tendo mandado o companheiro bugiar, sozinha em casa, aquilo de que tem saudades é de retiros de silêncio. Acho notável. E a verdade é que a percebo. Será um silêncio de qualidade ao passo que agora o seu tempo está preenchido com o trabalho e com banalidades. Contou-me, cheia de orgulho em si própria que, no verão, pela primeira vez na vida, foi passar férias sozinha e que tinha adorado. E que essa sensação de liberdade a deixou cheia de confiança e cheia de vontade de ir à procura de coisas novas. Eu ouvi-a espantada com a transformação que senti que estava a operar-se nela.

Vamo-nos adaptando a tudo mas a adaptação é, em si, uma transformação. E há transformações profundas que, forçosamente, nos farão ver o mundo de forma diferente mesmo que as circunstâncias voltem a parecer-se com o que eram antes da fractura da covid. E há decisões que antes temíamos e que, quando menos dermos por isso, nos vão parecer naturais, inevitáveis.


Moral da história? Nenhuma, ora essa. A história de cada um é coisa de cada um e geralmente não tem moral que se cheire. 

Tenho dito.

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E agora vou partilhar um vídeo com o que agora gosto de ver -- não notícias, não comentário, não coisas com as quais não aprendo nada. Só coisas tranquilas. Não sei se são coisas úteis ou apenas curiosas. Ou apenas silenciosas. Seja por que for, gosto.

Bricolage com madeiras antigas

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As fotografias são de Anastasiya Dobrovolskaya e acompanham Peter Gregson em Somnia

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Desejo-vos uma bela terça-feira.

1 comentário:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Este grande desafio pôs a nu tudo aquilo que as pessoas tantas vezes procuram evitar. Quem caminha sobre bases sólidas reinventa os modos de bem estar, quem não, decerto tem-se confrontado com a realidade do que há muito deveria ser trabalhado e modificado na vida.

O meu pai também é trabalhador reformado, ela lá passa sem a balada das épocas do bicho x ou y das culturas, sem as doutorices dos agricultores que depois lá têm de seguir as prescrições de quem sabe, de organizar os dias de promoção aos empresários do setor com muita comezaina (a verdade é que tem sido um sucesso que passaram de fazer em restautante para o a Expotorres)... E a quadrilhice? Isso nem se fala. Uma das coisas que ele me disse que mais estranhou do confinamento foi o facto de há décadas não saber o que era almoçar em casa durante a semana.

Um rico dia!