sábado, maio 30, 2020

Fim de dia na praia, de máscara e a caminho de vir ver e ouvir a bloody daughter







O dia em casa. Parte do dia sozinha. Há quanto tempo não estava sozinha em casa? Nem sei. A casa silenciosa, o rio na janela. E calor. Telefonemas, mails, reuniões, aprovações. Não apreciei especialmente. Não gosto de estar confinada. Há dois meses e meio em liberdade, estar a trabalhar fechada em casa, sem ter como ir fazer uma caminhada enquanto telefono e, mal acaba o telefonema, voltar a entrar ou, de vez em quando, estar de porta aberta ou na rua, a trabalhar a ouvir os passarinhos, e hoje fechada, limitada. Todo o dia senti saudades dessa liberdade.

E isto já para não falar nas conversas boas e divertidas com a minha filha ou na alegria, na energia, no apetite divertido dos meninos. Tão bem que eles lá estiveram.

E já contei que lhes voltou a preocupação que todos eles, à vez e sem saberem dos outros, manifestam? O que acontece ao lugar quando morrermos? Quando se pergunta porque perguntam respondem que estavam a pensar nisso. A minha filha ou o meu marido, já nem sei qual deles, se calhar até os dois, dizem que isto significa que gostam muito de lá estar e têm medo que aquilo se perca já que agora é um lugar que está associado a nós e nós, um dia, haveremos de virar pó. Dizemos que terão que se entender entre eles para manter o lugar na família. É um lugar sagrado. Um paraíso que nasceu das pedras e das minhas mãos.


Alimentou-me o dia a expectativa de nos encontrarmos ao fim do dia, na praia, com os outros meninos e seus pais. Lá fomos, eu entusiasmada, com aquela excitação de quem vai estar com aqueles que ama.

Eram sete e meia da tarde, a estrada pejada. Muitos carros a saírem da praia. Estávamos estupefactos. Àquela hora ainda tanta gente a vir da praia? Fogo. E ainda vários carros a entrarem. 

Estávamos quase a chegar quando, ao lado, a carrinha com eles -- os meninos de máscara. O do meio também de óculos escuros espelhados. Umas máscaras todas fashion. Ganda pinta. Estava ao telefone com a minha mãe, ela ouviu a minha exclamação: 'Olha! Eles' E estão de máscara!'

E, quando estacionámos, vimos que já não eram só eles, já estavam os cinco de máscara. A do meu filho em negro, a da minha nora em estampado. Mostrou que são dupla face. A mãe fez umas, outras foram encomendadas. O bebé orgulhoso com a sua máscara preta com carros. Perfeitamente adaptado. Nada daquilo o estorva. No outro dia a tia disse-lhe que estava com saudades, que queria estar com ele, ele que fosse ter com ela. Resposta dele: 'Não posso, não quero apanhar o coronavírus'. Tal e qual.

O meu marido achou que, se eles assim estavam, também nós devíamos. Eu super contrariada. Para a praia? De máscara? Parece a contradição dos termos. Depois explicaram-nos: no passadiço há muita gente. E, de facto, muita gente a sair e a entrar na praia. 

Lá chegados, retirámos a máscara. E a menina mostrou que já faz muito bem a espargata e a roda e mil poses artísticas e acrobáticas. Estava toda contente por estar comigo, contava-me coisas, deixou que eu a fotografasse de todas as maneiras. Linda, linda, mil vezes linda. E tão querida. O menino do meio não estava nos seus melhores dias, estava mal de um ouvido, meu menino querido. Tão alto que já está. Esguio como um bambu. O bebé fala já de forma totalmente explicada. Viu um avião e, enquanto eu estava a digerir a visão de um avião no céu e, ainda por cima, tão baixo que dava para ver que era da TAP, ele: 'Mãe, de onde é que ele vem e para onde vai?'. E a mãe: 'De onde vem não sei mas sei que vai para Lisboa'. E ele 'Vai aterrar em Lisboa?'. E quando eu me preparava para explicar como é que os aviões baixam e aterram, logo o mano do meio: 'Mas ele sabe, ele já andou de avião...'. E o bebé: 'Sim, eu já andei' de avião, eu sei'. E eu fiquei a pensar: 'Onde terá sido a última vez? Aos Açores?'. Sei que na última vez pensei que tão pequenino e já era a sua segunda viagem de avião. Mas parece que foi há tanto tempo que já nem consigo situar-me. Este ano, pela Páscoa, iam de férias para Itália.

Mas a praia estava uma maravilha. Calor. Os meninos fartaram-se de mergulhar, de andar a apanhar as ondas. São destemidos, brincalhões. Também não resisti. Não mergulhei completamente mas andei também dentro de água a sentir a rebentação. Tão bom, tão bom. Quando viemos de lá já passava das oito e meia. Perguntaram se queríamos jantar com eles. Mas não, tínhamos afazeres. Viemos para casa, tomámos banho, fiz um jantar rápido, pus a máquina a lavar. Essas coisas.

Agora que o cabelo já se me secou e que ainda não o apanhei, muito menos entrancei, sinto-me uma leoa com frondosa juba, e o calor que isso me dá ninguém imagina. Mas a preguiça para ir ali buscar um elástico ou uma mola e apanhá-lo...?

Adiante.

Agora que estou na sala enquanto vejo o Governo Sombra, estava aqui para falar do vídeo que estive a ver feito pela filha de Martha Argerich justamente sobre a sua mãe.

Gostei tanto de ver.

Atraem-me os pianistas. Uma vez escrevi um conto sobre um pianista. Não faço ideia que será feito desse conto. Foi inspirado por uma pessoa muito concreta que, por acaso, não era pianista (embora toque piano de uma forma que me emociona). Se eu voltasse a escrever um conto, talvez um livro, talvez um guião para um filme (presunção e água benta, vocês sabem como é) penso que não resistiria à tentação de lá tê-lo, de novo. Talentoso, solitário, apaixonado, atormentado, insolente. Penso nele e vejo-o. Vejo as suas mãos grandes. Vejo-o entregue ao seu prazer solitário, a casa espaçosa e quase vazia, o piano na penumbra, um raio de luz dourada desenhado na parede. 

Mas, falava eu, a Martha Argerich -- que tanto gosto de ouvir tocar. A sua vida. Como chegou até aqui, talentosa, bela, com aquela sua personalidade, como se o tempo não passasse por ela? Como consegue uma pessoa com uma vida assim arranjar tempo e espaço para ter relações duradouras? Como consegue tempo e disponibilidade para filhos? Tenho curiosidades por coisas assim. Não é bem fofoca. É mesmo curiosidade, vontade de perceber como funciona a cabeça de pessoas assim, que admiro como se tivessem milagres a nascerem-lhes dos dedos.

O vídeo é longo mas arrisco-me a partilhar pois pode ser que haja por aí outros malucos como eu, com gostos difíceis de definir.

Um retrato íntimo

Martha Argerich's intimate portrait: Bloody Daughter - Film by Stéphanie Argerich


As pinturas são de Joaquín Sorolla y Bastida
Celso Fonseca aqui deixa a sua pose de flâneur e vem dizer qual a origem da felicidade

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A todos desejo um dia feliz. 
... apesar do calor que, a alguns, faz lembrar o fim dos tempos e que a mim me faz, pura e simplesmente, derreter...

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