quinta-feira, julho 04, 2019

Coisas de que me arrependo





Vi o vídeo abaixo e pus-me a pensar. De que é que me arrependo? Assim de repente não me lembrei de nada. Só de insignificâncias. Fiquei até a pensar que a minha vida deve ser toda ela insignificante para não ser capaz de me lembrar de uma única coisa significante de que me arrependa. Depois de pensar um bocado, lembrei-me de uma coisa que me pareceu digna de registo, estava mesmo convicta e até arreliada por, antes, não me ter lembrado. Mas recebi uma mensagem pelo meio, depois deixei-me estar por uns minutos a olhar para a televisão e agora já não faço ideia do que seria. Passo-me comigo por ser assim, tão aérea para coisas a sério.

Estou para aqui a puxar pela cabeça e, para quase tudo o que me ocorre, tenho uma boa justificação. Por isso, o arrependimento fica frouxo. 

E há outros: o arrependimento de ainda não ter feito algumas coisas que gostava de fazer. Mas ainda tenho esperança de vir a fazer e, nestas coisas, tenho uma coisa que se calhar é superstição: não gosto de falar não vá o falar atrair forças contrárias. 


Ah, parem tudo antes que me esqueça outra vez. Arrependo-me de não me ter informado capazmente na altura de escolher um curso. Na altura certa não me ocorreu ser arquitecta e se calhar poderia ter tido uma vida diametralmente oposta e, cá para mim, empolgante. Gostava tanto de desenhar cidades, jardins, casas improváveis, formas surreais, jogos de luz, jogos de água. Mas foi coisa que nunca me passou pela cabeça quando andava a estudar. E, se calhar arrependo-me. Mas não sei se arrependimento é a expressão certa.


Também havia aquilo de querer ser psiquiatra e pelo medo de ter que ver mortos ou doentes que me afligissem muito desisti da ideia, não podia passar pela provação do curso de medicina. Psicologia na altura não tinha um ensino muito a sério. Ou, pelo menos, pareceu-me. Mas também não sei se é sério dizer que me arrependo.

Ah, já sei o que era, já sei, já me lembro.

Já aqui falei daquele jovem casal que morava ao nosso lado. Tinham dois filhos, crianças. Ainda a minha filha não era nascida. Eu era uma miúda. Eles eram ambos drogados. As crianças deviam ficar com os avós mas, para aí uma vez por semana, eles levavam o casalinho para casa, um menino e uma menina um pouco mais velhinha, talvez o menino tivesse uns quatro e a menina uns seis anos. E, à noite, eles deixavam as crianças em casa e saíam, só regressando, pedradíssimos, noite alta. E as crianças ali ficavam sozinhas e choravam, choravam, chamavam pelos pais, um sofrimento. E eu passava horas debruçada na varanda, a tentar consolá-los, a dizer 'não chorem, os pais vêm já, não chorem'. E nunca me ocorreu chamar a polícia. E se calhar fiz mal. A jovem de então é agora uma mulher que deve ser pouco mais velha que eu. Trabalha numa loja que era do pai e que agora é dela. Tem um ar sempre triste e as unhas muito roídas. Não sei se ela, na altura, tinha consciência do que fazia e se os filhos a perdoaram. Sei que, quando olho para ela, tenho pena do que ela fez sofrer os filhos e, se calhar, do que ainda sofre caso tenha presente aqueles tempos terríveis. E disso eu guardo um pensamento que me incomoda por pensar que não defendi os miúdos como, mais do que certo, deveria ter feito. Eram outros tempos, a consciência era outra. Mas se calhar fiz muito mal. É um arrependimento misturado com tristeza. Deve haver tantas crianças que passam por isto. 

Agora, à medida que escrevo, vou-me lembrando. Mais outra. Por exemplo, lembro-me de um certo dia em que fui avaliada por um superior hierárquico. Toda a gente ali era avaliada. Há objectivos, há competências, há comportamentos. E, para cada função, há um target (tal e qual assim: um target, para ser uma coisa mais business). Ora bem. Num dado ano apanhei um que me avaliou pela primeira vez. E acontecia com ele aquilo que já me aconteceu noutras vezes. Vou dizer uma coisa que alguns dos que me lêem vão pensar que é imodéstia ou armação ao pingarelho. Nada a fazer se pensarem isso porque é a verdade: quando andava a estudar, alguns professores ficavam um bocado nervosos, em especial se tinham que me fazer avaliação oral, a dita 'chamada', ou se lhes pediam para resolver problemas complexos e se atrapalhavam, sabendo que algum engraçadinho lhe iria dizer para ele me pedir explicação. E uma vez, porque todos os meus amigos e, em especial, o meu amor, andavam na explicação e eu quis ir para lá, o explicador não queria receber-me, achava que eu não precisava de explicações dele, que, sendo aluna de notas muito altas, se calhar eu é que lhe podia dar explicações a ele. E este meu chefe também padecia da mesma psicose. Dizia a torto e a direito, como se fosse defeito meu: 'você é muito inteligente' ou 'as pessoas têm medo de discutir consigo porque já sabem que você lhes dá sempre a volta'. E, neste clima, a avaliação foi o maior tormento. Eu não tenho paciência para avaliações levadas a sério. Tudo muito pueril e desnecessário. E, então, eu a querer despachar e ele, tudo muito by the book, a querer dissecar tudo, os meus comportamentos, as minhas competências, tudo naquilo de querer encontrar defeito para provar que não posso ser tão inteligente quanto ele próprio estava sempre a dizer. Comecei a ficar uma pilha, uma pilha pronta a explodir, com vontade de dizer que preenchesse a ficha como lhe apetecesse, que para mim era igual ao litro, e ele que não, que tínhamos que levar a sério e avaliar step by step e, a cada coisa que dizia de mim, queria a minha opinião e eu com vontade de dizer 'nas tintas' e ele a querer saber se eu concordava e eu já furiosa, enervada, a pensar que me ia mas era levantar e dizer 'bardamerda para a avaliação' e sair porta fora. Mas pensei que se fizesse isso ia ser uma barraca das antigas e fui-me aguentando mas a ficar cada vez mais arrasada, a paciência esgotada. Horas. Uma saturação. E hoje sei claramente que me arrependo de não me ter levantado e dito que já chegava e sobrava e que não estava para aturar aquilo. Foi uma violência, daquelas violências que eu poderia perfeitamente ter interrompido.


E, agora que desemburrei, parece que me ocorrem mil coisas de que me arrependo. Não sei se de alguma alguém poderia fazer um filme. Tenho para mim que, lidos, os meus arrependimentos são uma seca. Mas são o que são. Acho que, a menos que amanhã já me tenha outra vez esquecido de tudo, tinha pano para muitos posts.

Mas agora tenho que ir pregar para outra freguesia porque, para variar, vou ter que madrugar para mais umas sessões non stop de reuniões e compromissos e afazeres. Uma vidinha de cão (dos rafeiros) que, a bem dizer, quando a vir pelas costas sou bem capaz de me vir a arrepender de mais umas quantas coisas. Mas, arrependimento a posteriori é como aquilo do leite derramado ou lá o que é.

Mas, pronto, esta conversa toda por causa deste vídeo:

100 People Tell Us Their Biggest Regret



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As pinturas que enfeitam o texto (ou vice-versa) são de Andy Newman

E queiram descer caso queiram ver umas casas muita fake.

1 comentário:

Anónimo disse...

Às vezes, disto:

https://youtu.be/ccYTI7UfyMU