quinta-feira, maio 30, 2019

Palavras em silêncio





No domingo, antes de irmos votar, não resisti a ir comer um gelado. O meu marido disse que sim, que era coerente com a minha vontade de fazer dieta. Não liguei. Pelo-me por gelados. Estava tão desejando... Só de pensar já antecipava o bem que me ia saber. Afinal não havia o kumquat que era o que eu queria mesmo. Fiquei decepcionada e não recuperei logo: vacilei na escolha. Hesitei entre rum com passas e o do dia, que era de banana com creme de caramelo e amêndoas. Mas pensei que o do dia era capaz de ser muito doce e o de rum com passas se calhar um bocado sem graça, só se fossem duas bolas e a outra fosse de gianduja. Mas duas bolas já seria uma afronta. O meu marido, à espera de vez na caixa, fazia-me sinal para me decidir. E eu ali, em frente ao balcão e a olhar para o que via e para o quadro atrás, com o enunciado de todos os sabores. Acabei por escolher papaia com gengibre (em cone sem açúcar, claro). E então reparei numa mulher que entrava e se dirigia resolutamente para a caixa. Sabia que era pequenina mas não tão pequenina. E vestida completamente à vontade, como seria natural, mas até vagamente despenteada e sem pingo de maquilhagem. Pensei: a diferença que a maquilhagem faz. Então reparei que o meu marido passava os olhos por ela sem reconhecer. Porém, acto contínuo, olhou de novo, discretamente, por uma fracção de segundo. E, quando estava a olhar para mim, para eu lhe dizer a minha escolha, reparei que, como quem não quer a coisa, voltava a olhar.

Quando saímos, perguntei: 'Portanto, reconheceste-a?' e ele 'Não sei. É ou não é?' e eu 'Bolas, então não viste que é!?' e ele: 'Não sei se é, parece diferente'. Expliquei: 'Falta-lhe a maquilhagem e o barulho das luzes'. Era mesmo. Quase não se percebia mas era mesmo ela. Quando eu vinha a queixar-me que papaia com gengibre tem pouca graça -- muito sorvete, coisa sem aquela substância de que gosto (textura com fundo de leite, com alguma espessura melada), papaia com gengibre é bom mas falta-lhe corpo -- diz ele: 'Das vezes que ela andava por lá armada em mandona, nunca nenhum gajo lhe terá dito: Cresce e aparece?' e eu, armada em engraçadinha, disse: 'Como é que as investigações hão-de andar mais depressa? É que não há-de conseguir impor respeito nenhum' mas aí ele disse: 'Agora a sério: acho que a gaja deve ser retorcida, os gajos devem ter é um medo danado que a gaja se passe com eles' e eu concordei porque, a sério, ela deve ser é danada para chuchu, que só para não a verem passada devem é andar todos direitinhos que nem fusos.

Mas comecei com esta conversa a propósito de quê? Já nem me lembro, estou a escrever e a tratar de assuntos e, pelo meio, a espreitar a televisão. Isto esta semana não está nada fácil. Uns dias estou doente de sono, outros com o trabalho a sobrar-me em cima, o tempinho do fim do dia a voar e eu sem poder fruir o bocadinho de descanso só meu. Muito cansada.
Tendo deixado escapar da mão o fio da meada, estou aqui a pensar que me apetece escrever mas sem ter sobre o que falar e o que me ocorre, embora não abone a meu favor porque atesta que não sou de dietas (nem de gelados nem de livros), é que, à hora de almoço, pensei que a única maneira de deixar entrar ar no dia seria entrar numa livraria. 

Mas não terá sido só isso. É que também estava preocupada comigo. Conheço-me descomportada e fraca face às boas tentações e já me habituei ao ser que me habita, já me causa saudade quando ele se ausenta de mim. E ter-me visto, no outro dia, a sair de uma livraria sem que um único livro se tivesse vindo aninhar nas minhas mãos, deixou-me a pensar: 'O que é isto? Desencanto? O desconsolo a insinuar-se-me sob a pele? A idade a fazer-se sentir e da pior maneira?'. Por isso, na minha intimidade, confessei que não ia só deixar entrar o ar, ia também perceber se a minha personalidade tinha mudado.


Não mudou. Felizmente. Aquele apelo, aquela vertigem boa que não é nos pés, a sentir que vou despenhar-me, mas nas mãos, a sentir que vou deixar que os livros mergulhem em mim. Quando já estava com dois nas mãos, adicted confessa, ouvi uma jovem a dizer para outro jovem: 'Pá, a feira não começou hoje?' e ele 'Pá, pois é! Tipo bora bazar e ir lá?' e lá foram, animados. E eu fiquei surpreendida porque não sabia e aquilo deixou-me a pensar: 'Pá, tipo, eu aqui e a feira ali'?. Mas depois ajuizei: 'Pá, tipo, com 36º mais vale estar aqui, a respirar o ar que felizmente é condicionado do que, pá, tipo, ir destilar abaixo e acima, ao ar livre'. E, portanto, destemperadamente, avancei por entre as estantes, feliz, feliz da vida. Eu ainda igual a mim, perdida de amores por livros, sempre dada a amores à primeira vista, sempre a deixar-me ir na onda de uma bela capa, de um belo título, e só depois a confiar que a intuição não há-de trair-me com um mau conteúdo. Ainda assim, prudencialmente, para não me sentir completamente leviana -- e decidir apenas na base de um belo corpo, de um tentador olhar -- espreito o interior, folheio, abro ao acaso, leio uma palavra e com uma palavra construo uma esperança: vai ser bom. E é. Estão aqui, eternos, cheios de surpresas como são sempre os amores à primeira vista: desconhecidos, tentadores, descarados.


E outro dia conto quais eles foram, que eu, quando muito gosto, não sou adepta daquela máxima de o que é bom pouco basta, e gosto é de farturinha, amor às braçadas.

Agora é tarde e, uma vez mais, tenho que madrugar. Estes dias não me dão descanso.

Mas, antes de ir, mais um vídeo com uma bebida do bosque. No outro dia, recebi um poema com um belo caminho comunicante e um aviso: cuidado com os teixos. Fiquei logo intrigada. E fui logo ver como é a caruma do teixo, que, se calhar, nem se chama caruma. E fui ver se dá para fazer chá da caruma do pinheiro. E encontrei mas é uma infusão que leva um pó que me fez um bocado espécie, não sei se a bebida não fica a saber demais a terra. Não sei. Talvez tenha que arranjar alguma coragem. Mas estes vídeos são sempre tão bons.

Têm silêncio e eu preciso de silêncio. Rodeei as palavras com coisas aqui de casa, coisas silenciosas que me acompanham. Silêncio com canto de pássaros dentro.



A todos, um dia feliz e que me desculpem por não comparecer nos comentários. Não consigo.

2 comentários:

arménio pereira disse...

Possíveis bandas sonoras:

a) Coisas de Casa

b) Silêncio


E que seja hoje aquele dia mesmérico.

Isabel disse...

Gosto das suas fotos. Posso perguntar-lhe o que é o fundo por trás dos castiçais, na última foto? Intrigou-me...é pintura?

Beijinhos:))

(Não fui votar, não acredito em nenhum político. Só voltarei a votar se algum dia os políticos começarem a tirar a si próprios os privilégios que não fazem sentido. Aí, sim, passaria a acreditar neles. Por isso acho que nunca mais na vida vou votar.)