sexta-feira, maio 31, 2019

Uma recordação em forma de alerta e uma capela no céu ao pé de coisas cá de casa





Não sei se é por andar com muitos programas e não conseguir respirar entre eles, se é por andar sempre com a sensação (real) de ter deixado trabalho por fazer e não saber quando vou conseguir ter tudo em dia, se é por ter que madrugar amiúde não me deixando descansar de permeio -- ou se é disso tudo mais do efeito deste calor abrasador. Ando verdadeiramente sem energia. 

Ao fim do dia, fomos fazer a nossa pequena caminhada; mas foi um esforço tão grande. Ainda por cima, não tínhamos água. Estava sedenta, estafada, com a pele a ferver.  Quando cheguei, como o jantar estava feito, depois de me pôr à fresca, estendi-me no sofá e fiquei imediatamente à beira de dormir. 

E, depois de jantar, cheia de calor, cheia de sono, a pensar que deveria ir acabar um trabalho mas incapaz de pegar nele, para aqui fiquei a navegar em seco.


No entanto, penso às vezes que há cansaços que não devem ser subestimados. Já não me lembro há quantos anos mas não foram muitos, o meu pai que, na altura, ainda andava por si em casa -- embora com muita dificuldade e agarrado aos móveis -- caíu e partiu uma perna. Teve que ser operado. 

Todos os dias, a minha mãe ia vê-lo ao hospital. Na maior parte dos dias eu ia buscá-la a casa à hora de almoço e íamos as duas. Depois ia pô-la a casa e voltava ao trabalho. Outras vezes, ela ia com o meu tio, outras com a minha nora. Nos outros dias ia de autocarro ou táxi. O pós-operatório foi uma complicação total e ele esteve internado muito tempo. Para a minha mãe, um susto permanente e uma canseira. Depois, foi para casa porque não arranjámos um lugar decente com fisioterapia onde ficasse internado. Ficou acamado, numa situação complicada. Para a minha mãe, um desgosto por vê-lo assim e uma nova canseira. Ao fim de algum tempo, arranjámos uma espécie de clínica onde ele poderia tentar a reabilitação. Odiou lá estar e veio de lá sem ter feito quaisquer progressos. Não colaborava, não percebia sequer porque lá estava. Mas achávamos que era para bem dele, queríamos que pudesse voltar a andar. Todos os dias a minha mãe ia vê-lo. Eu ia ao sábado e ao domingo e ia buscá-la e levá-la mas, durante a semana, ela ia de autocarro -- e aquilo ainda era longe da paragem. De vez em quando ia de táxi mas na maior parte do tempo a de autocarro.


E estava um calor horrível e ela queixava-se disso, como lhe custava tanto. Eu dizia-lhe que não fosse todos os dias, que naquelas tardes de grande calor ficasse em casa, a descansar. Mas ela isso não fazia, não queria que o meu pai lá estivesse à espera e que ela não aparecesse. Até que o meu pai foi para casa. Para a cama. 

E, então, aí, a minha mãe foi-se abaixo. Cansada. Dizia que andava sem acção. Foi no verão e estava um calor verdadeiramente insuportável. Pensávamos, por isso, que o cansaço nascia daquele calor. Também tem um pequeno desequilíbrio a nível da tiróide, pensámos que talvez pudesse ser disso. Ou tensão baixa. Ou o somatório do cansaço daqueles meses todos em que andou a ir e vir todos os dias a caminho do meu pai. Ou a idade. Dizia: 'É que também já não sou nova, não é?' Arranjávamos explicações lógicas para aquele cansaço. Por vezes não percebo como, com a idade que tem, ainda conserva aquela energia. Por isso, pensando bem, com o desgaste psicológico e físico a que tinha estado sujeita, com aquele calor e com a idade que tem, parecia mais do que normal que estivesse cansada.


Mas às tantas achou que era cansaço a mais. Não se queixava de mais nada, só isso, mas isso era invulgar nela. Foi ao médico, um bacano da idade dela. Pensava ir pedir-lhe um suplemento qualquer ou ver se precisava de alguma coisa para a tiróide. Mas o médico, experiente e intuitivo, mandou fazer análises, incluindo às fezes. Mas nem ela veio de lá preocupada nem eu o fiquei. Tantos meses a cuidar do meu pai, não tendo tempo e disposição para si própria, era bom mesmo que fizesse uma revisão geral. Só que o resultado não foi tão bom quanto se queria. Estava com uma anemia e havia sangue nas fezes. Fui à net. Nem sempre isso é perigoso, há muitas causas benignas. Além disso, fazia bem a digestão, não tinha incómodos de qualquer tipo. Tranquilo. Mas o médico mandou fazer colonoscopia. 

Não quis que eu fosse, que estava bem, que ia com uma amiga (por acaso, mais velha). Ia tranquila e eu também não estava muito preocupada. Pouco depois da hora, liguei. Já tinha feito, estava à espera. E afinal, depois, pouco depois, ligou-me com a voz aflita, que a médica tinha ido falar com ela e que era melhor eu ir ter lá casa já, havia coisas a combinar. Fui a conduzir nem sei como, na maior ansiedade, horrorizada, cheia, cheia de medo. Quando cheguei, a minha mãe estava numa aflição, 'o que vai ser do teu pai? no estado em que está... nem quero pensar no que vai ser...' e chorava, angustiada, amedrontada, estávamos cheias de um medo terrível, aquele medo fundo, cavado, que acompanha as ameaças de morte. 


Depois foi uma corrida contra o tempo. Exames que nos matavam de medo, sempre sob o terror de virem ainda piores notícias. Depois foi a operação. Ficou sem metade do intestino mas teve alta num instante e saíu a andar, sem dores. Não havia metástases, ficou bem, e o médico, outro boa-onda, disse-lhe que daquilo ela não morreria. E todos disseram que a sorte foi ter ido ao médico por se sentir cansada. Se não se tivesse investigado, se tivesse tomado medicamentos para ganhar energia, se tivesse achado que era normal e deixasse andar, poderia ter sido bem pior. Não tinha qualquer outro sintoma senão o cansaço. Assim, felizmente, atalhou a tempo. 

Não conto isto para alarmar ninguém. É apenas um testemunho que, sabe-se lá, pode ser útil a alguém.

E eu, cansada que ando, sem energia, penso que não é o meu caso pois acho que tenho razões de sobra para me sentir assim. A ver é se, no fim de semana, consigo retemperar-me. 

Que me desculpem os que aqui vêm procurando algumas palavras mais animadas ou interessantes. Agora não consigo dar mais que isto.


Uma vez mais, à falta de melhor ideia, abonequei o texto com umas coisas cá de casa. E deixem que vos mostre porque é que a minha canseirinha é bobagem tola quando comparada com a canseira a sério que deve ter sido construir o que aqui abaixo se vê ou com a canseira de quem, para estar num lugar assim, espantoso, tem que subir tudo aquilo (e que vertigens sinto ao ver).

Uma capela no céu


Dias felizes para todos

6 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Um testemunho importantíssimo, apanhar as coisas a tempo pode ser meio caminho andado para tudo correr bem.
Desconfiemos sempre de sintomas estranhos que persistam.

Uma noite revigorante (pelo menos qb).

Anónimo disse...

Olá Ujm, acho que já sabe, mas não faz mal ouvir outra vez, vá ao médico. Não foi só a sua mãe que descobriu que tinha cancro por se sentir cansada.

Anónimo disse...

“Verão”, ou “verão”? É que “Verão” (com maiúscula) é nome de estação do ano e “verão” é verbo. Uma vez mais se prova quão imbecil o Acordo Ortográfico acabo por ser.
O cancro já me levou duas pessoas bem próximas. Coisas que não se esquecem.
R.V

Janita disse...

Olá, UJM.

Desta vez não posso entrar, ler e sair calada. Fez bem em partilhar o seu estado d'alma e as recordações que este súbito calorão lhe trouxe. Uma das funções/benesses de se ter um blogue é vir depositar nele os nossos desabafos.

Quanto ao seu extremo cansaço, veja se não arranja desculpas e, logo que possa, consulte um médico. O burnout...anda por aí. Acautele-se.

Bom fim-de-semana.

Um abraço. :)

AV disse...

Um texto como temas que tocam muitos de nós, escrito com a empatia de sempre. O calor forte também me ficou associado a memórias menos felizes dessa natureza. Desejo dias doces e amenos por aí.

Isabel disse...

Há cerca de quatro anos também andava com um cansaço anormal e tive uma anemia brava. Fiz um tratamento de quatro meses.

Vá ao médico, pelo menos para descartar as possibilidades que a preocupam.

Beijinhos, e que não seja nada de preocupante.