quinta-feira, maio 23, 2019

Não me lembro do nome dela





A secretária do director era uma pessoa intrinsecamente neutra. Nunca tinha opinião e nem valia a pena que tentassem tirar-lhe nabos da púcara: dizia que não sabia, que não tinha lido nem ouvido nada. As outras juntavam-se na copa e riam-se e comentavam tudo mas ela, por isso mesmo, evitava lá ir, especialmente se percebia que as outras lá estavam. Na melhor hipótese dizia-se dela que não dava confiança a ninguém e, na maior parte, dizia-se que era o cão de guarda do chefe. Creio que ela nunca suspeitou destes comentários pois parecia viver fechada no seu mundo.

Não gerava simpatias nem nunca lá lhe conheci uma melhor amiga ou alguém que lhe fosse especialmente simpático. Frequentemente, quando lhe ligava para saber se o meu colega estava disponível, não me lembrava do nome dela. Agora que escrevo também não me lembro. Deve ser das poucas pessoas de que nunca me lembrei do nome, como se fosse anónima, como se a sua identidade fosse irrelevante.

Aquele meu ex-colega sempre foi muito alegre e informal e bem disposto e tentava contagiá-la quer na forma como falava com ela quer na forma como queria que ela organizasse o trabalho. Mas ela era irremediavelmente formal. Colocava cada papel num separador de pastas de despacho, coisa antiga, e levava-lhe como se vivesse no século passado. Separava-lhe os documentos todos em pastas, tudo com um cerimonial a que já ninguém estava habituado. Parecia ignorar as possibilidades da informática. Contudo aprendia tudo num instante e, mesmo no computador, a organização das suas pastas eram exemplar.

Era mais ou menos da minha idade mas sempre a vi como pessoa velha. Não me lembro que tivesse rugas ou cabelos brancos e sempre a vi bem arranjada. Mas tudo nela era convencional, antigo, coisa de outra era. Estou a tentar lembrar-me dela e só me ocorre que parecia estar sempre vestida de igual, de uma cor indefinida, de saias e blusa mas tudo fora de moda, como se vivesse na província, décadas atrás. Tenho ideia que andava geralmente em tons de castanho, com o cabelo também sempre igual, da mesma cor, nem mais curto nem mais comprido. E até pode ser que houvesse cambientes mas é assim que a minha memória a guardou.

Quando eu estava no gabinete do meu colega, ela aparecia a perguntar se eu queria chá e se eu dissesse que sim ela perguntava se preferia lúca-lima, menta, cidreira. E aproveitava para verificar se a garrafa tinha água. Era silenciosa, quase invisível, quase desconfortavelmente discreta. Muitas vezes quase não dava por ela e, quando ia agradecer-lhe, já ela estava a sair.

A certa altura, o meu colega começou a andar preocupado. O novo accionista estava a impôr algumas mexidas e na área dele, em concreto, queria que se passasse grande parte do trabalho para outsourcing o que implicaria mandar embora várias pessoas do departamento. E ele falava, com muita preocupação, de alguns jovens licenciados em quem vinha apostando e de quem, provavelmente, teria que abrir mão. Os jovens nem supunham que o seu destino estava a ser discutido com a maior frieza. Faziam-se contas, equacionavam-se vantagens e desvantagens. O meu colega batia-se como um leão e eu e outros colegas estávamos ao seu lado. Tudo se fez para combater a estúpida moda de externalizar os serviços. Substituía-se mão de obra especializada, gente motivada e dedicada, por serviços que se compravam, serviços esses prestados por outros jovens mal pagos, desmotivados, sem qualquer 'amor à camisola'.

Mas a sentença estava traçada.

Aquela direcção foi reduzida a quase nada e o meu colega foi incentivado a sair ficando ligado à empresa através de uma avença.

Tudo muito triste.

No meio disto, ninguém se lembrou dela. Um dia, ia eu a passar no corredor ao pé do espaço dela, uma espécie de antecâmara do gabinete do meu colega, e vi-a com a cabeça entre as mãos. Senti como que um choque. Nem por um momento me tinha lembrado dela. E agora gostaria de a referir pelo nome e não consigo ter nem ideia de qual fosse. Parei, perguntei-lhe o que se passava. Disse-me o óbvio: tinha sido convidada a ir-se embora. Contou-me que o meu colega lhe tinha dito que não era obrigada a aceitar sair, que ficasse. Mas ela tinha medo de ficar sem nada que fazer ou de ser mandada para outro serviço onde se sentisse recebida por favor, onde não conhecesse o trabalho. Lembro-me que dizia: 'Ainda me põem a lançar facturas'. E eu dizia-a que isso não tinha mal nenhum. Ela dizia, voz quase estrangulada, que não sabia nada de contabilidade. Eu dizia que para lançar facturas não é preciso ser-se contabilista e que a ensinariam. Mas ela reagia como se qualquer dessas perspectivas fosse um pesadelo. Tentei convencê-la: que não estivesse assim, que, para onde fosse, a fariam sentir integrada. Mas ela não queria sequer equacionar essa possibilidade. Nunca tinha conseguido enturmar-se, nunca tinha estabelecido laços de amizade com ninguém. Vivia para trabalhar naquilo que sabia: para servir o chefe, para organizar o trabalho dele. Chorava enquanto falava, mas quase como se não houvesse ali emoção, como se tolhida pela angústia e pelo desalento. Tive muita pena. Ela olhava, com uma tristeza difícil de descrever, as suas estantes tão arrumadas e dizia que não sabia quem ia zelar pelo arquivo e que, de repente, ninguém queria saber de nada daquilo, como se anos de vida profissional vividas com tanto zelo afinal não valessem nada. Disse-me que não conseguia dormir, que só lhe apetecia chorar.

Falei com o meu colega. Estava preocupado. Também ele estava a viver tempos difíceis. E vê-la assim deixava-o ainda mais prostrado. Com a maneira de ser dela, não a via a poder fazer outra coisa na vida senão ser secretária daquela forma dedicada, quase obsessiva. Queria que ela ficasse na empresa. Se fosse para o desemprego, não arranjaria nada.

O meu colega, começou a aparecer menos, alguns dos gabinetes foram ficando vazios e, logo de seguida, ocupados por outros serviços. Ela continuava lá, a olhar para a parede ou para o computador. Todos os dias eu passava por lá, tentava animá-la. Estava amorfa, frequentemente com olhos de sono. Andava a tomar ansiolíticos. 

Até que um dia, a vi a arrumar gavetas. Disse-me que já tinha acertado as contas. Ia para o desemprego e ia receber o subsídio todo de uma vez e porque ia explorar um quiosque, vender revistas. Estava desencantada, com ar cansado. Eu nem queria acreditar. Disse-me que já não aguentava mais estar ali. Eu olhava para ela sem perceber como poderia ela lidar com clientes, ter expediente para saber o que encomendar, como gerir as compras e vendas de uma pequena papelaria. Só pensei que ia desgraçar-se, gastar o dinheiro todo num investimento que não podia dar certo. Não queria desanimá-la. Derrotada já ela estava. Mas também me custava não alertar para os riscos daquela ilusão que, à partida, já era apresentada por ela com ar desiludido.


E lá se foi. Não se despediu de ninguém. Quando por lá passei estava o lugar dela vazio. Nunca mais soube dela. Quando perguntava se alguém sabia dela, ninguém sabia. Acabei por me esquecer.


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Só ontem, e já passaram tantos anos, voltei a lembrar-me dela. Foi ao fim do dia, quando fui fazer a minha caminhada, ao passar por um pequeno café, vazio, todo pintado de cor de rosa, duas ou três mesas com toalhas cor de rosa. Ao fundo, um pequeno balcão que também me pareceu vazio e atrás dele uma senhora com o cabelo apanhado e com um avental cor de rosa. Olhei e senti um aperto no peito.

Era para ter falado nisto ontem, para dizer que tomara que o cafezinho dê certo, que a senhora tenha sorte. E que aquela minha colega de que não consigo lembrar-me o nome também tenha tido sorte. Mas meteu-se aquilo do Prémio Camões para o Chico e quis aqui deixar-lhe o meu agradecimento e os meus parabéns. E, por isso, esta conversa ficou para hoje.

E é mesmo só isto que eu hoje tenho para dizer.


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[As fotografias são de Tamara Dean]

9 comentários:

Anónimo disse...

É assim o Capitalismo. Não há lugar a sentimentos, onde as pessoas não contam, apenas as margens de lucro. Querem lá saber se um seu funcionário vai para o desemprego e como irá sobreviver (sobretudo se tiver mais de 45 anos). Não é situação que tire o sono aos Administradores e Accionistas. Para os defensores do Neoliberalismo, se os ouvirmos com atenção, não existem pessoas nos planos que traçam e ideias que propõem. Só existem números. Para um Neoliberal, um país é uma folha de Excel. Ainda outro dia, ao ouvir – por acaso, já que não perco tempo com semelhante criatura – Ricardo Arroja, do “Iniciativa Liberal”, numa conversa em que nada de concreto e substancial consegue dizer (típico deste tipo de gente) fiquei com essa impressão. Se o ouvirem com atenção, não fala em pessoas, apenas em números, quantificações, percentagens, e outras tantas abstracções imbecis. Mas, há quem o oiça (0,1%? Oxalá!). Mas, atenção, o PSD e o CDS não são muito diferentes.

Anónimo disse...

É, tanta fragilidade, São sinal de alerta!

Nesta situação que factores endógenos ou traumas de vida motivaram este perfecionismo exacerbado?

Na crueza actual é só mais uma vitima!

Corvo Negro disse...

Um texto repleto de humanismo que me tocou bem cá bem no fundo porque também vivi uma experiência próxima da que relata.
Infelizmente a maioria dos nossos empresários apenas miram o objectivo do lucro rápido e preferencialmente fácil, forçando os gestores das empresas de que são proprietários, ou accionistas maioritários, a tomar decisões que, na maior parte das situações, são imorais e humilhantes para qualquer ser humano. Os empregados (que apelidam pomposamente de colaboradores), que são quem verdadeiramente gera a riqueza das empresas, estão reduzidos a meros números descartáveis, registados algures numa base de dados como um custo e não como um importante activo, termo este que apenas colocam nos relatórios e balanços sociais por obrigação legal. Pura hipocrisia de um capitalismo selvagem a que os "Steve Bannons" do Planeta nos condenaram.
Abraço - AV.

Um Jeito Manso disse...

Olá Primeiro Anónimo,

É mais ou menos como diz. a questão é que as empresas enfrentam concorrência interna e externa. Se as empresas não são competitivas, os clientes vão comprar noutro lado. E se uma empresa não tem clientes, acaba por fechar. E aí é bem pior.

Por isso, é preciso que se as empresas se mantenham competitivas. E isso é um processo por vezes doloroso. Ou o sector está em expansão ou é uma luta constante.

Por isso, esta é uma história que tem vários lados.

Neste caso em concreto, a empresa tentou que ela não se fosse embora pois toda a gente percebia que a vida lhe poderia correr mal. Mas ela não suportou a situação. aliás, conheci mais pessoas assim. Passam pelas maiores angústias. Mas, acredite, em empresas idóneas (ie, não aquelas empresas com patrões à antiga que querem lucros à custa de baixos salários), não gostam nem um bocadinho destes processos de ajustamento.

Mas, sabe, já assisti de perto, a fecho completo de empresas e aí é ainda mais dramático. Por razões económicas, ambientais, regulatórias, etc, não havia volta a dar. Uma dor.

Abraço.

Um Jeito Manso disse...

Olá Segundo Anónimo,

Percebo a sua observação. Só sei que sempre a conheci assim, silenciosa, sempre séria, sempre eficiente, sempre disponível.

Não sabia nada da vida dela. Ninguém sabia.

Há pessoas assim. Presumo que para elas a felicidade é poderem pôr em prática esta sua maneira de ser mas, do que se lhes pode observar, não é bem felicidade. é como se tivessem uma missão. Não sei explicar. É como se a sua vida fosse isso e tivesse que ser levada muito a sério.

é a vida. Cheia de diversidade.

Um abraço.

Um Jeito Manso disse...

Olá Corvo,

Já mais ou menos comentei na resposta ao 1º Anónimo. Penso que nem é responsabilidade de cada gestor individual pois cada um tenta ter lucros para sobreviver, para poder investir e manter-se actual. A questão é a concorrência. Os consumidores logicamente querem sempre ter produtos ou serviços mais baratos e as empresas, para poderem sobreviver, têm que estar sempre a ver como estão face aos concorrentes. E os bancos, porque o acesso ao crédito cada vez é mais difícil (e ainda bem), também só emprstam dinheiro a empresas que dão mostras de o poder pagar de volta. Se a empresa está financeiramente pouco sólida, ou não recebem financiamento ou recebem-no a taxas mais altas, que vão custar mais caras à empresa. Acredite: é uma luta.

E, claro, no meio desta luta, há vítimas. Geralmente são inocentes.

E o drama é que ese ainda é o melhor regime conhecido (refiro-me a haver concorrência, regulação ambiental, obrigatoriedade de considerar os direitos sociais dos trabalhadores, etc)

Abraço, Corvo negro.

AV disse...

A vida das organizações faz vítimas. Na maioria das vezes, são pessoas sérias e dedicadas, mas que não encaixam nos novos tempos, por razões diversas que muitas vezes não têm nada a ver com a qualidade do seu trabalho, nem com a qualidade dos que ficam ou que ingressam. Espero que a decisão arriscada da pessoa que descreve com tanta empatia tenha tido um desfecho feliz.

Um Jeito Manso disse...

Olá Ana,

Mas sabe que não consigo mesmo lembrar-me do nome dela? Uma sensação arreliadora. E o pior é que mudei de empresa, perdi o contacto com quem poderia lebrar-se dela. Mas, mesmo logo a seguir a ela ter saído, já ninguém se lembrava dela nem ninguém ficou com qualquer contacto dela. Não é tão estranho? Quase como se a pessoa não tivesse existido.

Tomara que tenha conseguido dar-se bem na sua nova vida. Mas, sabe, tenho tantas dúvidas...

Há pessoas que parece que não encontram nunca o seu caminho. Mas estou a escrever isto e a pensar que acho que ela era feliz quando era secretária, à maneira dela. Uma felicidade nada exuberante, silenciosa, nada exigente.

Abraço, Ana.

AV disse...

Olá UMJ,
Um dia, de repente, o nome vai reentrar na sua memória. Gostei muito deste post seu, pela forma como se sente a situação e a pessoa. Acho que há felicidades assim, quietas e silenciosas.
Um abraço.