A secretária do director era uma pessoa intrinsecamente neutra. Nunca tinha opinião e nem valia a pena que tentassem tirar-lhe nabos da púcara: dizia que não sabia, que não tinha lido nem ouvido nada. As outras juntavam-se na copa e riam-se e comentavam tudo mas ela, por isso mesmo, evitava lá ir, especialmente se percebia que as outras lá estavam. Na melhor hipótese dizia-se dela que não dava confiança a ninguém e, na maior parte, dizia-se que era o cão de guarda do chefe. Creio que ela nunca suspeitou destes comentários pois parecia viver fechada no seu mundo.
Aquele meu ex-colega sempre foi muito alegre e informal e bem disposto e tentava contagiá-la quer na forma como falava com ela quer na forma como queria que ela organizasse o trabalho. Mas ela era irremediavelmente formal. Colocava cada papel num separador de pastas de despacho, coisa antiga, e levava-lhe como se vivesse no século passado. Separava-lhe os documentos todos em pastas, tudo com um cerimonial a que já ninguém estava habituado. Parecia ignorar as possibilidades da informática. Contudo aprendia tudo num instante e, mesmo no computador, a organização das suas pastas eram exemplar.
Era mais ou menos da minha idade mas sempre a vi como pessoa velha. Não me lembro que tivesse rugas ou cabelos brancos e sempre a vi bem arranjada. Mas tudo nela era convencional, antigo, coisa de outra era. Estou a tentar lembrar-me dela e só me ocorre que parecia estar sempre vestida de igual, de uma cor indefinida, de saias e blusa mas tudo fora de moda, como se vivesse na província, décadas atrás. Tenho ideia que andava geralmente em tons de castanho, com o cabelo também sempre igual, da mesma cor, nem mais curto nem mais comprido. E até pode ser que houvesse cambientes mas é assim que a minha memória a guardou.
A certa altura, o meu colega começou a andar preocupado. O novo accionista estava a impôr algumas mexidas e na área dele, em concreto, queria que se passasse grande parte do trabalho para outsourcing o que implicaria mandar embora várias pessoas do departamento. E ele falava, com muita preocupação, de alguns jovens licenciados em quem vinha apostando e de quem, provavelmente, teria que abrir mão. Os jovens nem supunham que o seu destino estava a ser discutido com a maior frieza. Faziam-se contas, equacionavam-se vantagens e desvantagens. O meu colega batia-se como um leão e eu e outros colegas estávamos ao seu lado. Tudo se fez para combater a estúpida moda de externalizar os serviços. Substituía-se mão de obra especializada, gente motivada e dedicada, por serviços que se compravam, serviços esses prestados por outros jovens mal pagos, desmotivados, sem qualquer 'amor à camisola'.
Mas a sentença estava traçada.
Aquela direcção foi reduzida a quase nada e o meu colega foi incentivado a sair ficando ligado à empresa através de uma avença.
Tudo muito triste.
Aquela direcção foi reduzida a quase nada e o meu colega foi incentivado a sair ficando ligado à empresa através de uma avença.
Tudo muito triste.
No meio disto, ninguém se lembrou dela. Um dia, ia eu a passar no corredor ao pé do espaço dela, uma espécie de antecâmara do gabinete do meu colega, e vi-a com a cabeça entre as mãos. Senti como que um choque. Nem por um momento me tinha lembrado dela. E agora gostaria de a referir pelo nome e não consigo ter nem ideia de qual fosse. Parei, perguntei-lhe o que se passava. Disse-me o óbvio: tinha sido convidada a ir-se embora. Contou-me que o meu colega lhe tinha dito que não era obrigada a aceitar sair, que ficasse. Mas ela tinha medo de ficar sem nada que fazer ou de ser mandada para outro serviço onde se sentisse recebida por favor, onde não conhecesse o trabalho. Lembro-me que dizia: 'Ainda me põem a lançar facturas'. E eu dizia-a que isso não tinha mal nenhum. Ela dizia, voz quase estrangulada, que não sabia nada de contabilidade. Eu dizia que para lançar facturas não é preciso ser-se contabilista e que a ensinariam. Mas ela reagia como se qualquer dessas perspectivas fosse um pesadelo. Tentei convencê-la: que não estivesse assim, que, para onde fosse, a fariam sentir integrada. Mas ela não queria sequer equacionar essa possibilidade. Nunca tinha conseguido enturmar-se, nunca tinha estabelecido laços de amizade com ninguém. Vivia para trabalhar naquilo que sabia: para servir o chefe, para organizar o trabalho dele. Chorava enquanto falava, mas quase como se não houvesse ali emoção, como se tolhida pela angústia e pelo desalento. Tive muita pena. Ela olhava, com uma tristeza difícil de descrever, as suas estantes tão arrumadas e dizia que não sabia quem ia zelar pelo arquivo e que, de repente, ninguém queria saber de nada daquilo, como se anos de vida profissional vividas com tanto zelo afinal não valessem nada. Disse-me que não conseguia dormir, que só lhe apetecia chorar.
Falei com o meu colega. Estava preocupado. Também ele estava a viver tempos difíceis. E vê-la assim deixava-o ainda mais prostrado. Com a maneira de ser dela, não a via a poder fazer outra coisa na vida senão ser secretária daquela forma dedicada, quase obsessiva. Queria que ela ficasse na empresa. Se fosse para o desemprego, não arranjaria nada.
O meu colega, começou a aparecer menos, alguns dos gabinetes foram ficando vazios e, logo de seguida, ocupados por outros serviços. Ela continuava lá, a olhar para a parede ou para o computador. Todos os dias eu passava por lá, tentava animá-la. Estava amorfa, frequentemente com olhos de sono. Andava a tomar ansiolíticos.
Falei com o meu colega. Estava preocupado. Também ele estava a viver tempos difíceis. E vê-la assim deixava-o ainda mais prostrado. Com a maneira de ser dela, não a via a poder fazer outra coisa na vida senão ser secretária daquela forma dedicada, quase obsessiva. Queria que ela ficasse na empresa. Se fosse para o desemprego, não arranjaria nada.
O meu colega, começou a aparecer menos, alguns dos gabinetes foram ficando vazios e, logo de seguida, ocupados por outros serviços. Ela continuava lá, a olhar para a parede ou para o computador. Todos os dias eu passava por lá, tentava animá-la. Estava amorfa, frequentemente com olhos de sono. Andava a tomar ansiolíticos.
Até que um dia, a vi a arrumar gavetas. Disse-me que já tinha acertado as contas. Ia para o desemprego e ia receber o subsídio todo de uma vez e porque ia explorar um quiosque, vender revistas. Estava desencantada, com ar cansado. Eu nem queria acreditar. Disse-me que já não aguentava mais estar ali. Eu olhava para ela sem perceber como poderia ela lidar com clientes, ter expediente para saber o que encomendar, como gerir as compras e vendas de uma pequena papelaria. Só pensei que ia desgraçar-se, gastar o dinheiro todo num investimento que não podia dar certo. Não queria desanimá-la. Derrotada já ela estava. Mas também me custava não alertar para os riscos daquela ilusão que, à partida, já era apresentada por ela com ar desiludido.
E lá se foi. Não se despediu de ninguém. Quando por lá passei estava o lugar dela vazio. Nunca mais soube dela. Quando perguntava se alguém sabia dela, ninguém sabia. Acabei por me esquecer.
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Era para ter falado nisto ontem, para dizer que tomara que o cafezinho dê certo, que a senhora tenha sorte. E que aquela minha colega de que não consigo lembrar-me o nome também tenha tido sorte. Mas meteu-se aquilo do Prémio Camões para o Chico e quis aqui deixar-lhe o meu agradecimento e os meus parabéns. E, por isso, esta conversa ficou para hoje.
E é mesmo só isto que eu hoje tenho para dizer.
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[As fotografias são de Tamara Dean]
9 comentários:
É assim o Capitalismo. Não há lugar a sentimentos, onde as pessoas não contam, apenas as margens de lucro. Querem lá saber se um seu funcionário vai para o desemprego e como irá sobreviver (sobretudo se tiver mais de 45 anos). Não é situação que tire o sono aos Administradores e Accionistas. Para os defensores do Neoliberalismo, se os ouvirmos com atenção, não existem pessoas nos planos que traçam e ideias que propõem. Só existem números. Para um Neoliberal, um país é uma folha de Excel. Ainda outro dia, ao ouvir – por acaso, já que não perco tempo com semelhante criatura – Ricardo Arroja, do “Iniciativa Liberal”, numa conversa em que nada de concreto e substancial consegue dizer (típico deste tipo de gente) fiquei com essa impressão. Se o ouvirem com atenção, não fala em pessoas, apenas em números, quantificações, percentagens, e outras tantas abstracções imbecis. Mas, há quem o oiça (0,1%? Oxalá!). Mas, atenção, o PSD e o CDS não são muito diferentes.
É, tanta fragilidade, São sinal de alerta!
Nesta situação que factores endógenos ou traumas de vida motivaram este perfecionismo exacerbado?
Na crueza actual é só mais uma vitima!
Um texto repleto de humanismo que me tocou bem cá bem no fundo porque também vivi uma experiência próxima da que relata.
Infelizmente a maioria dos nossos empresários apenas miram o objectivo do lucro rápido e preferencialmente fácil, forçando os gestores das empresas de que são proprietários, ou accionistas maioritários, a tomar decisões que, na maior parte das situações, são imorais e humilhantes para qualquer ser humano. Os empregados (que apelidam pomposamente de colaboradores), que são quem verdadeiramente gera a riqueza das empresas, estão reduzidos a meros números descartáveis, registados algures numa base de dados como um custo e não como um importante activo, termo este que apenas colocam nos relatórios e balanços sociais por obrigação legal. Pura hipocrisia de um capitalismo selvagem a que os "Steve Bannons" do Planeta nos condenaram.
Abraço - AV.
Olá Primeiro Anónimo,
É mais ou menos como diz. a questão é que as empresas enfrentam concorrência interna e externa. Se as empresas não são competitivas, os clientes vão comprar noutro lado. E se uma empresa não tem clientes, acaba por fechar. E aí é bem pior.
Por isso, é preciso que se as empresas se mantenham competitivas. E isso é um processo por vezes doloroso. Ou o sector está em expansão ou é uma luta constante.
Por isso, esta é uma história que tem vários lados.
Neste caso em concreto, a empresa tentou que ela não se fosse embora pois toda a gente percebia que a vida lhe poderia correr mal. Mas ela não suportou a situação. aliás, conheci mais pessoas assim. Passam pelas maiores angústias. Mas, acredite, em empresas idóneas (ie, não aquelas empresas com patrões à antiga que querem lucros à custa de baixos salários), não gostam nem um bocadinho destes processos de ajustamento.
Mas, sabe, já assisti de perto, a fecho completo de empresas e aí é ainda mais dramático. Por razões económicas, ambientais, regulatórias, etc, não havia volta a dar. Uma dor.
Abraço.
Olá Segundo Anónimo,
Percebo a sua observação. Só sei que sempre a conheci assim, silenciosa, sempre séria, sempre eficiente, sempre disponível.
Não sabia nada da vida dela. Ninguém sabia.
Há pessoas assim. Presumo que para elas a felicidade é poderem pôr em prática esta sua maneira de ser mas, do que se lhes pode observar, não é bem felicidade. é como se tivessem uma missão. Não sei explicar. É como se a sua vida fosse isso e tivesse que ser levada muito a sério.
é a vida. Cheia de diversidade.
Um abraço.
Olá Corvo,
Já mais ou menos comentei na resposta ao 1º Anónimo. Penso que nem é responsabilidade de cada gestor individual pois cada um tenta ter lucros para sobreviver, para poder investir e manter-se actual. A questão é a concorrência. Os consumidores logicamente querem sempre ter produtos ou serviços mais baratos e as empresas, para poderem sobreviver, têm que estar sempre a ver como estão face aos concorrentes. E os bancos, porque o acesso ao crédito cada vez é mais difícil (e ainda bem), também só emprstam dinheiro a empresas que dão mostras de o poder pagar de volta. Se a empresa está financeiramente pouco sólida, ou não recebem financiamento ou recebem-no a taxas mais altas, que vão custar mais caras à empresa. Acredite: é uma luta.
E, claro, no meio desta luta, há vítimas. Geralmente são inocentes.
E o drama é que ese ainda é o melhor regime conhecido (refiro-me a haver concorrência, regulação ambiental, obrigatoriedade de considerar os direitos sociais dos trabalhadores, etc)
Abraço, Corvo negro.
A vida das organizações faz vítimas. Na maioria das vezes, são pessoas sérias e dedicadas, mas que não encaixam nos novos tempos, por razões diversas que muitas vezes não têm nada a ver com a qualidade do seu trabalho, nem com a qualidade dos que ficam ou que ingressam. Espero que a decisão arriscada da pessoa que descreve com tanta empatia tenha tido um desfecho feliz.
Olá Ana,
Mas sabe que não consigo mesmo lembrar-me do nome dela? Uma sensação arreliadora. E o pior é que mudei de empresa, perdi o contacto com quem poderia lebrar-se dela. Mas, mesmo logo a seguir a ela ter saído, já ninguém se lembrava dela nem ninguém ficou com qualquer contacto dela. Não é tão estranho? Quase como se a pessoa não tivesse existido.
Tomara que tenha conseguido dar-se bem na sua nova vida. Mas, sabe, tenho tantas dúvidas...
Há pessoas que parece que não encontram nunca o seu caminho. Mas estou a escrever isto e a pensar que acho que ela era feliz quando era secretária, à maneira dela. Uma felicidade nada exuberante, silenciosa, nada exigente.
Abraço, Ana.
Olá UMJ,
Um dia, de repente, o nome vai reentrar na sua memória. Gostei muito deste post seu, pela forma como se sente a situação e a pessoa. Acho que há felicidades assim, quietas e silenciosas.
Um abraço.
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