domingo, outubro 28, 2018

Miaauuuuuuuuuuuuuuuuuu....




Não foi a primeira vez. Aliás, foi por causa do que aconteceu na primeira vez que passámos a ter o portão fechado à cheve. 

Nessa vez, estava um dia de muito calor. Estávamos na cozinha a almoçar, só os dois. Às tantas ouvimos uns ruídos, depois passos e, no instante em que olhámos um para o outro a tentar perceber o que se passava, já um homem corpulento, de espingarda na mão, afastava o reposteiro e assomava à porta. Apanhámos um susto. Levantámo-nos precipitadamente sem saber o que nos esperava. Mas o homem, percebendo que nos tinha assustado, pediu desculpa e perguntou se deixávamos que os cães bebessem água, e com ar aflito, disse que uma cadela já tinha morrido. E logo saíu.

Sem percebermos bem o que se estava a passar, fomos atrás dele. Saíu em direcção a uma carrinha, abriu as portas para soltar os cães mas eles mal se mexiam. O meu marido levou a mangueira, abriu a água, molhou os cães, deu-lhes de beber. Passado uns instantes estavam como novos. Mas o homem estava francamente enervado, talvez até mais enervado do que desolado. Explicou que depois da caça, tinha deixado os animais na carrinha enquanto tinha ido dar uma volta para explorar melhor o local, que depois tinha ido comer uma bucha, que nunca tinha pensado que o calor fosse tanto a ponto de um dos animais morrer.

No meio daquele culpabilização e desgosto dele não íamos dizer que podia ter tocado à campainha antes de entrar por ali como se nem tivesse que pedir licença pois imaginámos a aflição dele ao chegar ao carro e ver um dos animais já morto e os outros quase inconscientes.

Mas, independentemente da situação que talvez justificasse a invasão, os caçadores, tenho ideia, são um bocado assim: tendem a achar que é tudo deles. Foi também por causa dos caçadores que resolvemos vedar esta parte do terreno onde está a casa. Era frequente darmos com eles por aqui, eles e os cães, perseguindo os coelhos. Tinha pavor que os miúdos andassem por aí em dia de caça. O meu marido passava-se com eles, exaltava-se, dizia que tinham que respeitar a distância à cada, que estavam a pedir sarilhos. Lembro-me de um, furioso, se virar para e e lhe perguntar: 'Essa é boa, e ia deixar aqui os coelhos, não?'. Um perigo, gente assim. Eu mesma me peguei várias vezes com eles, ameaçando chamar a guarda.

Vedámos, então, esta parte do terreno mas volta e meia detectamos cartuchos e percebemos que estiveram cá dentro. Lá mais para o fundo, em baixo, ainda não há muito, o meu marido andou a reparar a vedação pois, em baixo, havia uma abertura, certamente para os cães poderem entrar.


Pois bem,  De novo. Só que, desta vez, como o portão está fechado, a pessoa tocou à campainha e o sino. Tão insistentemente que me assustei.

O meu marido andava lá para baixo. Eu estava ainda na cama. Com os dias que tenho tido, o que me vale são os dias do fim de semana em que posso dormir até mais tarde. Apressadamente, enfiei umas calças, vesti a blusa e fui à rua ver o que se passava. Por precaução, levei o telemóvel.

No portão, uma criatura grande, de sexo indefinido. Não percebi se era um homem com feições e corpo vagamente femininos, se uma mulher enorme, masculinizada. Estava com um daqueles fatos de tipo camuflado, boné, e segurava uma espingarda. E tinha uns quantos coelhos pendurados à cintura. Ao colo, um cão que gania.

Com ar preocupado, perguntou se eu tinha alguma coisa com que pudesse tratar a pata do cão que, pelos vistos, estava cortada. Vi sangue e uma ferida um bocado assustadora. Perguntei se não era melhor procurar um veterinário. Perguntou se sabia de algum ali perto. Não sabia. Abri o portão e fui buscar algodão, água oxigenada, betadine. 

Continuei sem perceber se era homem ou mulher. A voz era indefinida e desagradável. Pousou a espingarda, pôs o pé em cima do banco, deitou o cãozito na perna, segurando-o para que eu pudesse limpar e desinfectar o ferimento.

No momento em que me aproximei, tive uma visão aterradora. No meio dos coelhos pendurados à ilharga, outra coisa. Dei um salto. Apontei: 'Que é isso?!' e só me apetecia empurrar a criatura para bem longe. Respondeu com naturalidade: 'Um gato'.  Horrorizada, quase gritei: 'Que é um gato já eu vi. Mas matou um gato e trá-lo aí, como se fosse uma peça de caça?'. Respondeu: 'Que mal tem? Qual a diferença? Gato ou coelho, tudo igual, sabe tão bem um como outro.'

Passei-lhe o algodão com água oxigenada para a mão e quase empurrei a criatura do portão para fora. O cão cania. Fiquei com o chão cheio de sangue. Já do lado de fora, ainda me disse, com voz sarcástica: 'Obrigada, ouviu? Já percebi que não aprecia o pitéu. Mas se quiser um casaco de pele de gato, diga, que já lá tenho que chegue para um'.

Nesse instante, agoniada e aterrorizada com tanta perversidade, ouvi nitidamente um gemido que me deixou transida e que, não duvido, era um miar de gato.


5 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

A forma como certos caçadores tratam os cães é completamente ignóbil, olhe que esse das voltinhas e das buchinhas, se fosse comigo, tinha levado sermão e missa cantada.

É interessante contrastar a postura trauliteira e abusadora destes caçadores, com aquele caçador de veados francês que conheceu no Verão.

Tudo isto para meter genialmente mais um salpico de Halloween.

Um abraço e um bom domingo (acho que me esqueci de agradecer e desejar de volta na resposta ao outro comentário, sorry!)

AV disse...

Nunca deixo de me indignar com a forma como os animais são tratados no nosso país. E concordo inteiramente que diz muito do nosso grau de civilização.

Um Jeito Manso disse...

Francisco,

O caçador de veados era um cavalheiro. Estes que vejo atrás de coelhos se não são parecem uns trogloditas.

Um Jeito Manso disse...

Olá Ana de Vasconcellos,

Concordo consigo. A falta de cuidado e de respeito com que algumas pessoas tratam os animais revela desumanidade.

Abraço, Dona Ana.

AV disse...

Abraço, Dona UJM 😉😂