quinta-feira, outubro 12, 2017

Os 31 crimes de Sócrates e a cegueira cúmplice de Brunhilde


No carro, no regresso, ouvimos. Noticiam que a acusação saíu antes de tempo. Ouvimos os jornalistas dizerem que Marcelo diz que fica contente quando a justiça acelera. A acefalia dos jornalistas. Um processo que se arrastou durante anos, furando prazos e desrespeitando a dignidade devida a qualquer pessoa, é agora referido como tendo sido mais lesto que o expectável. Se lhes puserem um papel à frente a dizer que a terra ficou quadrada e que a lua anda aos saltos eles vão lê-lo aos microfones sem pestanejar.

Depois ouvimos desfiar a lista de acusações, os crimes descritos com minúcia. E usam exactamente esta palavra: crimes. Muitos crimes. Dir-se-ia que o processo deu um salto quântico e se passou da fase da investigação para o resultado do julgamento.

Agora, já em casa, ouvindo a televisão, dou conta que o festim está ao rubro. De vez em quando, os crimes, as corrupções, os esquemas de lavagem de dinheiro e de fuga ao fisco são precedidos da palavra 'alegados'. Mas, na maior parte da conversa, para eles, os factos estão provados, dispensa-se o pró-forma do uso das palavras cautelares: alegado, alegada. Para quê esses cuidados se toda a gente já está farta de saber que ele é culpado? Saltem-se pois os passos intermédios e avance-se para o júbilo pela conclusão do processo. Recursos? Ah, sim, sim... Para quê?, alguém ainda tem dúvidas? 

Ouço. Ouvi José Gomes Ferreira, o vingador, feliz por terem sido dado por provados crimes que ele tanto denunciou. Sorri. Ganhou. Sócrates foi condenado, apodrecerá na prisão. 


Ouço Sara Antunes Oliveira, uma menina com ar castigador, que mal disfarça o estar notoriamente radiante por ter feito parte do júri de acusação e estar ali para relatar os factos. Crimes. Lavagens, Esquemas. Tudo provado. Os implicados negam. Não interessa, o que dizem não convence. Culpado. Nunca se viu nada assim. Um antigo Primeiro-Ministro apanhado num gigantesco esquema de corrupção. Sócrates é culpado. Ponto final. 


Mistura-se má gestão, esquemas e facilitismos, interesses cruzados e aparecem os antes elogiados e condecorados Zeinal Bava, Granadeiro, Ricardo Salgado  e, no meio, entre suposições e alegadas convicções, Sócrates. Um longo enredo em que vários anos de sabidos e consabidos compadrios foram apanhados pela rede dos investigadores e misturados com alegadas corrupções activas e passivas -- e agora, ao longo de milhares de páginas, alguém tentará perceber porque é que algumas delas coisas vêm ao caso ou se não vêm de todo, ou se há mosquitos e tubarões tudo misturado no mesmo saco, porque é que vaidosos e ladrões são avaliados pela mesma bitola.


Sei que este não é o tempo para raciocínios com princípio, meio e fim. Sei que devo esquecer-me do que aprendi quando estudei Lógica e esquecer-me tudo o que sei do método científico que exige que qualquer hipótese seja posta à prova antes de, sobre ela, se poder concluir que está certa ou errada. Sei que este é o tempo do facebook, do não querer destoar da manada, dos julgamentos sumários na praça pública. Sei que, se disser que não posso concluir que uma pessoa é culpada antes de os tribunais o terem provado, vai ser lido como uma prova de facciosismo.

Sei que, de repente, meio mundo esquece os mais elementares valores de um estado de direito, decretando a pena mesmo antes dos julgamentos. Sei disso. Sei muito bem.

Mas, ainda assim, digo o que acho.

E volto a dizer: se Sócrates for culpado, pois que seja condenado. Ficarei desiludida, desgostada, entristecida e não por razões pessoais mas apenas porque foi um Primeiro-Ministro que apoiei, em especial no seu primeiro governo. No segundo acho que já não geriu tão bem a situação mas reconheço as árduas condições em que se encontrava, cercado por todo o lado, e com a esquerda unida à direita para o derrubar (abrindo dessa forma a porta a um dos mais sinistros períodos da nossa história -- e disso eu não me esqueço)-

Mas, santa paciência, até ao dia em que se conheça a sentença definitiva sobre o caso, continuo a achar aquilo que acho em relação a qualquer pessoa: que Sócrates é inocente até prova em contrário. Acredito e defendo os valores da democracia e da liberdade e não abdico do respeito pelos pilares mais basilares do Estado de Direito em que quero acreditar que vivo.

Tenho estado a ler um livro de que já aqui falei. Uma vida alemã. É um livro que leio com um peso no peito. Para aliviar, intercalo com O grilo na varanda. Depois volto a Brunhilde Pomsel. Este livro deveria ser de leitura obrigatória. Não é literatura, é apenas um testemunho de quem viveu o nazismo por dentro e dele não se apercebeu. Ou, tendo-se apercebido um pouco, o desvalorizou. Ou, não o tendo desvalorizado completamente, achou que não poderia fazer nada. Até ao fim, acreditou nas histórias que a propaganda divulgava. Os alemães eram corajosos e valentes e os outros eram maus. Os alemães não perdiam, os alemães venceriam. Os judeus iam para o campo, iam viver melhor. Os judeus iam para campos de concentração para fugirem a perseguições, ali estariam protegidos. Mesmo perante o que agora classificaremos como 'evidências', os alemães não viam. Não sabiam. A manipulação colectiva acontece. Brunhilde trabalhava no Ministério da Propaganda. Conhecia Goebbels. 

Gente sorridente,
amigos dos seus amigos,
bons pais de família
(e, no entanto, tão perigosos)
Era um homem reservado, tranquilo. Um dia ela viu-o a discursar e não o reconheceu. Era um homem possuído que levou uma multidão ao enraivecimento colectivo. Brunhilde ficou incomodada. Percebeu que nunca se sabe do que as pessoas são capazes. 

Nada disto tem nada a ver com Sócrates. 

Não somos alemães, não há nazis entre nós. Somos inteligentes, prescientes, não nos deixamos manipular. Pois. 

E, no entanto, não nos importamos nada com o que se passa: a destruição moral de alguém que ainda não foi sequer julgado. E, no entanto, damos como provado tudo o que os jornalistas e comentadores desfiam como crimes. E até já nos esquecemos dos prazos sucessivamente ultrapassados e talvez até aplaudamos por terem condenado Sócrates (note-se: condenado e não acusado) de forma tão rápida.

Somos gente perigosa. 

E, para já, isso é a única que, com os dados de que disponho, posso concluir.

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E queiram descer até ao tempo das gaivotas,
um tempo bem mais aprazível do que este de que acabei de falar.

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