terça-feira, julho 23, 2024

A relatividade dos pesadelos

 

Tinha a ideia antiga de visitar a Tailândia, adentrar-me por florestas, descobrir antigos monumentos quase devorados pela natureza, maravilhar-me com tudo o que encontrasse por lá. 

Combinei com um grupo de amigos. O meu marido não estava receptivo. Países com culturas muito diferentes da nossa e em que os tipos de exigências que, para nós são essenciais mas que para os locais pouca relevância têm, não lhe dão confiança. 

Contudo, os nossos amigos ajudaram-me a convencê-lo. Lá fomos.

Os amigos, habituados a viajar por destinos longínquos, marcaram tudo e, por isso, nem nos ocorreu pedir detalhes. Confiámos.

Contudo, quando lá chegámos, constatei que os quartos não tinham casa de banho privativa. Ora, para mim, isso é uma definitiva bandeira encarnada. Por isso, fiquei incomodada e com vontade de arrepiar caminho. Mas, claro, tarde demais.

À noite, aflita, não houve remédio: tive que me pôr na fila para as casas de banho junto à entrada do hotel. Uma fila enorme. As pessoas que, entretanto, saíam da casa de banho vinham com ar enojado, a dizerem que aquelas instalações não estavam em condições. Mas não aparecia ninguém a limpar. Eu não conseguia conceber ir usar uma casa de banho suja mas não estava a ver alternativa. Uma terrível sensação de nojo.

Mais tarde, fui até à praia. O meu marido não quis ir, disse que aquelas praias não prestavam para nada, e ficou a ler no quarto. Fui na mesma. Quando lá estava com alguns dos amigos, vimos pessoas a chegar à beira de água como se viessem a nadar de longe, vestidas. Perguntei aos que estavam comigo se seriam migrantes. Disseram-me que sim, que era normal, que não me afligisse, que apareceria alguém a ajudar. Fui a correr, parecia que aquelas pessoas precisavam de ajuda e não consegui ignorá-lo. E uma senhora, em particular, pareceu-me muito mal e tive a maior dificuldade em puxá-la, ajudá-la.

E foi isto que contei aos meus netos, ao almoço, enquanto estávamos, por mero acaso, a comer comida tailandesa. Um deles está quase a fazer anos e, antes, tínhamos ido com ele para escolher roupa a seu gosto. Depois, para o almoço, foi ele que sugeriu que trouxéssemos comida tailandesa para casa, para todos.

Ora, ao acordar, eu tinha contado ao meu marido o pesadelo que tinha tido, que me tinha feito acordar algumas vezes. Então, ao almoço, a propósito da coincidência de estarmos a comer comida tailandesa, ele disse-me: 'Conta-lhes o teu pesadelo desta noite.'

Contei. Quando acabei, todos a comermos noodles com carne ou com camarões, eu com tofu, etc, olharam para mim e perguntaram: 'Mais nada...? Foi só isso?'

'Foi. Não foi horrível?'. Eles olhavam-me com alguma condescendência: 'Não...' 

E cada um disse: 'Os meus pesadelos são muito piores...', ou  'Eu sonho que tenho um monstro debaixo da minha cama, pronto para me atacar'. Outro: 'Também, sonho que vou ser atacado...' O meu marido disse: 'Isso é dos jogos e das séries que veem'. Concordaram mas isso não tirava a intensidade do susto que apanhavam.

E eu que estava ainda incomodada com o meu horrível pesadelo pensei -- uma vez mais, pensei -- que é tudo relativo. 

Tive muita vontade de lhes dizer que deixassem a parte das casas de banho, que tanto me tinha incomodado, mas que pensassem como é horrível os migrantes que vão em procura de uma vida melhor, arriscando a própria vida, e como é horrível isso já ser tão normal que já ninguém presta atenção. Mas os miúdos, contentes a comerem os seus noodles com ingredientes e molhos à escolha e para quem os pesadelos piores são os dos monstros que temem que se escondam nos seus quartos, estariam receptivos a um tema destes? 

Por não me parecer ser o momento adequado, passei adiante. Mas fiquei na dúvida.

Aliás, tenho cada vez mais dúvidas. O mundo é um daqueles espaços topológicos sem forma, sem contornos, em que as leis que os regem são voláteis. Um espaço assim é apelativo em termos ficcionais mas um pesadelo em termos reais.

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Entretanto, agora estou a ver televisão enquanto escrevo. Kamala Harris está em campo (e que diferença faz a sua genica...) e, por todos os motivos, desejo, muito sinceramente, que seja a próxima presidente dos Estados Unidos. Acredito que será. Há muitos americanos que são broncos até à quinta casa. Mas há muitos mais que o não são.

2 comentários:

Anónimo disse...

Minha cara UJM, eu em questão o da natureza, não troco o Gerês e as Astúrias por nada, aliás adoro o norte de Portugal e a Galiza Espanta.
Quanto às eleições nos Estados Unidos ,não vai ser a Kamala a escolhida pelos democratas,mas sim o sobrinho do Kennedy... porquê? Quem entende um pouco de geopolítica chega a esta conclusão. Atenção é uma opinião minha

ccastanho disse...

Bom, entre o Gerês e as Asturias, aposto de caras nas Asturias. Os Picos da Europa são um enlevo. O medo em descer ou subir aquelas montanhas, é igual ao prazer, ao deleite, na contemplação.

Anónimo. Kamala, sempre! Por todas as razões que se prendem com democracia.