quarta-feira, outubro 05, 2022

Sombra e luz

 


Saímos depois do trabalho, já não era nada cedo. No caminho, ele apontou para o céu e disse: 'patos'. Olhei. Um bando em formação. Um V perfeito. Mais atrás, uma linha perpendicular em relação ao eixo central do V, perfeita. Voavam numa elegante geometria. Ocorreu-me que ver uma coisa assim justifica que estejamos vivos. E senti-me feliz.

Quando estávamos quase a chegar, o meu marido perguntou se eu tinha trazido o computador. Não, não tinha trazido. Antes de sairmos, ele tinha dito que a mala do computador estava aberta, com fios a sair, e que não se arriscava a levá-la para o carro, que a levasse eu. Quando passei por lá, fechei-a. Estava no meio das outras coisas que eram para trazer. Ele é que costuma levar as coisas para o carro. Eu fico a fechar as janelas, ver se as luzes estão desligadas, e, no fim, fecho a porta e ligo o alarme. 

Portanto, ele não trouxe pois tinha dito que não trazia e não pensou mais nisso e eu não trouxe pois pensava que o problema era a mala estar aberta e, como a fechei, nem pensei mais nisso.

Já anoitecera quando demos por ela. Como hoje tinha reuniões e muita coisa para despachar, tivemos que voltar atrás. Passou-me a felicidade que me tinha chegado do céu. Fiquei furiosa. Discutimos durante um bocado e depois ele calou-se e eu calei-me também.

Chegámos já passava das dez e meia da noite. Arrumámos as coisas, ele tomou banho. Jantámos tarde e felizmente tinha trazido restos pelo que foi apenas aquecer. Quando aqui cheguei à sala, já me tinha passado a arrelia. Aliás, já nem me lembrava de tal coisa. Tenho isto. Dão-me fúrias mas passam-me quase instantaneamente.

Hoje trabalhámos todo o dia, ambos. Cada um no seu sítio. O cão anda entre um e outro e, pelo meio, ladra quando ouve algum carro a passar na estrada. Felizmente só passa um de muito quando em quando pelo que, na maior parte do tempo, é o silêncio e o canto dos pássaros.

Quando fui andar lá em baixo, vi que que na quinta que num dos extremos fica pegada a um dos extremos da nossa estava um carro mas, como o meu sentido de observação para carros é nulo, fiquei na dúvida se era o mesmo de sempre. Perguntei ao meu marido. Disse que sim, claro, há anos que têm aquele carro.

A minha dúvida veio do facto de, na última vez que cá estivemos, os vizinhos terem cá vindo despedir-se de nós. Claro que não puderam entrar pois a fera de guarda fica possessa quando alguém que não conhece se abeira de nós. Falámos, pois, eles na estrada, do lado de fora do portão, nós no lado de dentro e o cabeludo aos saltos, no meio, a ladrar. Ao princípio mal ouvíamos o que nos diziam. Depois o urso percebeu que era gente de bem e acalmou-se. Os vizinhos vinham despedir-se. Venderam a quinta, quiseram contar-nos, desejar-nos saúde, felicidades.

É um casal muito diferente de nós. Têm o terreno muito limpo, sem uma ervinha, as árvores muito bem tratadas, árvores de fruta, e, entre elas, apenas terra. O nosso tem alecrim, rosmaninho, madressilva. E há pinheiros, cedros, aroeiras, azinheiras, oliveiras selvagens, eucaliptos. E pássaros que não acabam e, agora, esquilos. Eu, se houver sol, ando meio vestida, cabelo apanhado, caminho por caminhar, faço fotografias. A vizinha não poderia ser mais o meu oposto. Anda sempre arranjada, geralmente sempre da mesma maneira, muitas vezes anda ao pé do marido e já a vi a cavar, muito aplicada. O marido dela também é o oposto do meu. Anda sempre a trabalhar. Tem um pequeno tractor e lavra a terra, anda com serra eléctrica e não há um pé de flor fora do sítio nem um ramo por desbastar. O meu marido também trabalha mas é a cortar mato ou a desbastar árvores.

Uma vez queixaram-se do filho, que não ligava a isto e que nunca cá vinha nem nunca trazia as filhas. De facto, vejo-os sempre só aos dois e não me lembro de lá ver mais carros ou o barulho de crianças. Percebi que tinham pena. Também moram em Lisboa mas, ao contrário de nós, que gostamos de cá estar só por estar ou que cá temos, com alguma frequência, companhia e o barulho alegre de crianças, parecia que eles vinham para manter o terreno limpo. Nós também andamos ocupados mas não no mesmo registo. 

Então, ali no portão, disseram que já não iam para novos, que manter o terreno limpo e as árvores tratadas é coisa que dá muito trabalho e que, por isso, tinham resolvido que era melhor desfazerem-se. Nunca se sentiram emocionalmente ligados à terra e à casa e o facto do filho e das netas sempre se terem mantido desligados desmotivaram-nos. 

Ainda me lembro do meu pai olhar para o terreno dos vizinhos como um exemplo que, com pena dele, nós não seguíamos. Sempre tentei explicar-lhe que eu queria uma casa no campo não para me tornar agricultora mas para ter uma parcela de natureza na qual me pudesse sentir livre, que não queria transformar o campo num terreno arado mas, pelo contrário, queria ter um bosque com sombras e sol e pássaros e lagartixas e cogumelos a rebentar do chão e musgo a atapetar a terra quando vem o tempo da chuva.

Mas fiquei a pensar, com alguma apreensão, se algum dia, mais tarde, também sentiremos que vir para cá é ter um trabalho que já não poderemos suportar. Se isso acontecer, que seja daqui por muito tempo. Para já o que me interessa é o agora e agora é um prazer muito grande estar aqui. O outono em toda a força, folhas e folhas e folhas. Este dia feriado vou ter muito que varrer. Vou também aproveitar para fazer uma máquina de roupa e para fazer uma limpeza em casa. Mas trouxe um livro que também quero poder ler e espero ainda poder sentar-me ao sol, sem fazer nada. E hoje ao fim do dia fomos ao supermercado à vila mais próxima e trouxe carnes e legumes e enchidos para fazer um cozido que, quase aposto, vai espalhar um cheirinho bom, saído pela chaminé, até lá fora.

E está tudo certo. 

Shadow and light 

Life consists of polarities – light and dark, good and evil, sweet and bitter. We are no different.  All of us have a shadow side.  And it is this shadow or dark side that allows us to gain a sense of perspective, by allowing us to truly appreciate the light side of life.  The more we acknowledge what we don’t like, the easier it is to see our gifts and strengths.  It makes us a whole human being.  

"There was a man who was so disturbed by his own shadow that he was determined to lose it for good. So he got up and ran. But his shadow kept up with him, and so he ran faster and faster until the exertion took its toll and he dropped. If he had simply stepped into the shade, sat down and stayed still [meditated], his shadow would have vanished." -Chuang Tzu, The Way 


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Um dia bom
Saúde. Serenidade. Luz. Paz.

E viva a República.

1 comentário:

Janita disse...

Gostei imenso de ler este 'desabafo' da UJM em mais uma das descrições do quotidiano da sua vida... Contudo, confesso com toda a sinceridade haver dois pontos que lamento e com os quais discordo em absoluto.

1º- Deixar que esse canito a que chama 'fera', não por ser feroz e malvado, mas por estar a ser excessivamente mimado e ser-lhe permitida a intromissão na vida social dos donos, ou 'pais', se quiser - já que é tratado (e mal educado) como se fora um filho tardio ao qual tudo se permite.

Falar com alguém da sua vizinhança, que teve a amabilidade de se ir despedir, deixando-os fora da porta como se fossem vendedores de enciclopédias, só porque o canito não parava de ladrar, quase impedindo o diálogo? Francamente! Então não seria preferível, ante a hostilidade canina, um de vós ir fechá-lo em casa, facultando assim a entrada aos vizinhos que tão sozinhos viviam?

2º- E não menos importante: Porque razão o seu marido tem sempre de ser o primeiro a calar-se quando discutem? Ai, ai, ai...nem quero pensar que Mr. UJM é uma pessoa submissa aos arroubos irados da sua cara-metade. Não gostei! Seria preferível ter apenas referido que ambos se calaram e deram por terminada aquela discussão estéril.

E pronto. Falei e disse! :)

Bom feriado e um abraço.
( se ainda o quiser aceitar. Se não, olhe, vai para o seu marido...🤭 )