sábado, setembro 24, 2022

Joe Biden 'perdido no palco'. Caso para chacota?

[E memória do meu pai].

 

Um vídeo com Biden supostamente perdido no palco, aparentemente sem saber bem para onde ir, tornou-se viral. E não houve gente medíocre e com reservas mentais quanto aos democratas dos Estados Unidos que não saísse à cena  a dizer que estamos bem entregues ou que Biden não bate bem da bola.

Biden Completely Lost on Stage During Global Fund Speech

Claro que não conheço o boletim clínico de Joe Biden nem as circunstâncias em que aquilo aconteceu.

O que sei é que olho para aquelas imagens e não apenas não consigo tirar conclusões como, sobretudo, não consigo gozar.

Por uns momentos, vendo aquele excerto, descontextualizado, lembrei-me do meu pai.

Quem por aqui me tem acompanhado lembrar-se-á que o meu pai, que entretanto morreu há pouco mais de dois anos, teve cerca de doze anos antes um AVC extenso e grave que o deixou muito debilitado. Depois de muita fisioterapia recuperou o andar e esteve durante muitos anos autónomo a nível da movimentação (embora com algum acompanhamento), a nível de se alimentar e de tratar da própria higiene. Falava, estava lúcido, tinha boa memória. Para o fim, talvez dois anos antes de morrer, depois de ter partido uma perna e de ter sido operado, aí, sim, entrou em declínio acentuado e tornou-se quase totalmente dependente.

Mas, antes desse terrível AVC, teve pelo menos quatro AITs. Eram coisa ligeira, em especial dois deles, nem ninguém percebeu que eram um aviso para levar muito a sério. Apenas depois, pelos exames que fez noutras alturas, se percebeu, pelas pequenas marcas que deixaram no cérebro, que tinham ocorrido. Os outros dois últimos já foram mais evidentes mas, em qualquer dos casos, eram coisas momentâneas e das quais recuperava completamente, fazendo uma vida normal. Mas, de vez em quando, percebíamos, por pequenos sinais, que havia ali qualquer coisa que não estava absolutamente bem. Contudo, só as valorizámos depois do AVC.

O meu pai sempre teve uma saúde robusta, era muito activo, fazia caminhadas, praticou desporto até tarde, tinha orgulho nos seus hábitos saudáveis e na sua vida tão cheia de energia. Não era hipertenso, não tinha colesterol alto, não era gordo e, fisicamente, parecia mais novo que era.

Contudo, era um bocado stressado, tendia a dormir mal e de vez em quando tinha arritmias. Como fazia uma alimentação saudável e achava que tinha controlo sobre o seu corpo e, além disso, era avesso a medicamentos, geralmente não seguia a medicação devida. 

E foi isso que o tramou. Mas só o percebemos tarde demais, quando teve o AVC.

O primeiro AIT foi assim: estava em casa e, ao ir no corredor, fraquejou momentaneamente, como se lhe tivesse faltado a força nas pernas. Agarrou-se ao fecho de uma porta, equilibrou-se. Durou uma fracção de segundo. Mas ele achou estranho, a minha mãe achou estranho. Mas ficou bom, continuou a sua vida activa, normal. Não pensou mais nisso.

Outra vez, no verão, estavam a passar férias in heaven com os meus filhos. Quando lá estavam, ele fartava-se de trabalhar: aplicava verniz protector nas portadas de madeira, montava rede protectora para as janelas com armação de madeira para não entrarem bichos, regava, etc. Um dia, ao almoço, por uma ou duas vezes, ao levar a comida à boca, parecia que não acertava bem com o garfo. Nem ele percebeu o que se passava nem a minha mãe o percebeu. Pensou que estava com os braços e as mãos cansadas, ou que tinha estado tempo demais ao sol. Ficou bom, não ligou. Mas, quando lhes liguei, a minha mãe referiu isso. Mas aquilo tinha durado uma fracção de segundo, tinha ficado logo bem. 

Entre uma e outra coisa, podiam passar anos de vida normal. Iam de férias para o Algarve, iam de férias para as Beiras, passeavam, iam ao cinema, tudo tranquilo. 

Até que uma vez foi pior. De manhã, ao acordar parecia que as palavras não lhe saíam bem. Mas tinha dormido mal, pensou que precisava era de dormir. Mas, em vez disso, foi andar para a rua, a ver se espertava. Um vizinho disse à minha mãe que achava que ele não estava muito equilibrado, que parecia hesitante no andar. A minha mãe estava a estranhar aquilo e disse-lhe que era melhor irem ao hospital. Zangou-se, estava bem. Mas a minha mãe não achou que ele estivesse absolutamente normal. Falou com o meu tio, irmão dele. Ele foi vê-lo e também achou que alguma coisa não estava completamente bem. Ligou à minha prima, que é médica, e ela disse que era melhor levá-lo ao hospital. Aí foi detectado o AIT e foi nessa altura que se percebeu que já lá havia umas marcas de pequenos AITs anteriores. Passou a noite lá, por precaução. Fui buscá-lo do dia seguinte. Saiu pelo seu pé, vinha normalíssimo, a achar que tínhamos exagerado nos cuidados. 

Nos tempos seguintes esteve óptimo e ninguém pensava mais em tal coisa. Supostamente estaria medicado embora houvesse sempre divergências entre ele e a minha mãe, ela que achava que ele deveria seguir a medicação à risca e ele que achava que ele é que sabia e que ela não tinha nada que andar com aquelas conversas.

Nessa altura, a nossa boxer ficava lá durante a semana e ele ia passear com ela para o campo ou para a praia, fazia móveis em madeira, ia às compras, era activo e estava saudável. Nem mais nos lembrámos do AIT. Até ao seguinte.

O último poderia ter tido consequências graves. Tinha ido ao shopping com a minha mãe e, no parque de estacionamento, tinha ficado com o pé na embraiagem e não o conseguia levantar. Apanharam um susto. Se o carro estivesse em movimento, o que poderia acontecer... Aí perceberam nitidamente que a perna tinha ficado momentaneamente sem acção. Foi também apenas uma fracção de segundo. Dali seguiram, com ele a conduzir, para o hospital. Outro AIT, claro. 

Dessa vez, houve uma sequela, por sinal muito bizarra: esqueceu-se dos números. Não os reconhecia e, claro, não sabia fazer contas. No dia seguinte foi para casa, fresco, a andar e falar normalmente. Mas aquilo dos números era muito estranho. A minha mãe ensinou-o e ele rapidamente recuperou o conhecimento. Nessa semana, na sexta à tarde, quando lá fui buscar a cadela, já ele estava a resolver raízes quadradas à mão, números imensos cujas raízes quadradas resolvia na maior das calmas. Ficou bom de novo. 

E mais uns anos passaram até que veio aquele terrível AVC.

Esteve muito tempo no hospital e voltou para casa com meio lado do corpo morto, com meio campo visual perdido, com dificuldade na fala. 

Veio a recuperar a mobilidade e a fala. O campo visual perdido é que não teve volta. Mas uma outra coisa apareceu comprometida: a orientação espacial de proximidade. E isso era muito estranho. Se lhe perguntássemos como se ia de casa até um sítio qualquer na cidade ou noutra, ele descrevia as ruas, o percurso todo, ao pormenor, sabia onde se poderia estacionar na proximidade, tudo. Mas quando saía da sala, por exemplo para ir à casa de banho, parecia ficar perdido, não sabia se era para a esquerda ou para a direita, hesitava. Mesmo quando se levantava da cama, via a porta do roupeiro e ficava na dúvida se a porta do quarto era ali ou se era noutro sítio. Era muito estranho. Vacilava, ficava perdido (e muito infeliz).

Nessa altura, descia as escadas sozinho, andava no jardim, ia à rua, tudo bem, e arranjou truques para se orientar. Mas uma vez, vinha da rua, talvez encandeado ou talvez simplesmente desorientado, entrou na sala cuja porta é perto da entrada e deu uma volta à chave, tirando-a da porta e colocando-a numa estante. Pensava que estava a fechar a porta da rua e a pôr a chave num móvel chaveiro que há parede. Quando a minha mãe percebeu o que se tinha passado, começou a dizer-lhe para abrir a porta. Mas, como não percebeu o que tinha acontecido, pensou que, inadvertidamente, se tinha fechado em casa deixando a minha mãe na rua. Então, dizia à minha mãe para dar a volta à casa e tentar entrar pela outra porta. A minha mãe, aflita, dizia que ele se tinha fechado na sala. Como via mal, como a sala estava com a janela fechada e às escuras e como ele estava completamente desorientado, foi o cabo dos trabalhos. Teve que se chamar uma pessoa que, não sei como, conseguiu entrar pela janela. Ele estava muito nervoso pois, nestes momentos, sentia-se diminuído e até envergonhado por dar trabalho e pela situação a que tinha chegado.

Não faço ideia do que se passou com Joe Biden no dia que o vídeo mostra. Pode ter sido apenas cansaço, exaustão. Não sei.

O que sei é que acho que não devemos gozar com quem passa por situações assim. As pessoas podem estar bem, fazer a sua vida normal, estar lúcidas, na plena posse das suas capacidades e, no entanto, momentaneamente, passaram por um qualquer estado de perturbação. Pode acontecer com os nossos pais, pode acontecer connosco. Somos todos feitos de matéria frágil. 

2 comentários:

Carla A. disse...

Bom dia UJM,

Sinto cada vez mais falta de humanidade, empatia, tolerância e respeito pelo outro, neste mosso Mundo cada vez mais estranho e diferente, o período COVID foi difícil mas a partir dai foi sempre a descer, não quero pensar para onde caminhamos, mas penso muita vezes no que vamos deixar aos nossos filhos, netos, que destino será o NOSSO...

Uma boa semana com Paz e Esperança.
Carla Almeida

Um Jeito Manso disse...

Olá Carla,

Também penso isso. Cultiva-se a maldade, a maledicência. Cultiva-se a hipocrisia. O caminho está aberto para o populismo.

Também me sinto preocupada com o futuro. Tantos anos de desenvolvimento para agora assistirmos a tantas provas de barbárie, de falta de tolerância e de bondade.

Triste o descaminho que o mundo parece estar a levar.

Mas, sim, concordo: haja esperança.

Dias felizes, Carla.