terça-feira, fevereiro 01, 2022

O passeio de domingo, a reconstituição da vida do Pina.
E os homens que vivem em barcos.

 



De domingo para segunda deitei-me tardíssimo para acompanhar os resultados, as reacções e os exercícios acrobáticos dos jornalistas de stand up e dos avençados a metro. Ainda por cima acordei muito mais cedo do que tinha previsto com o urso a atirar-se à maluca contra a porta do quarto. 

De manhã -- ou melhor, praticamente de madrugada -- o meu marido vai dar uma volta com ele. Mal entra em casa, o meu marido diz que ele corre e tenta abrir a porta do quarto. Deve querer saber se lá estou dentro. A porta fica encostada e, como o chão, que é de madeira, faz atrito, só com força se consegue empurrar. A porta não pode ficar aberta senão ele entra e, num salto, vai para cima da cama. Vindo da rua, não se pode dizer que venha com as patas muito limpas. Portanto, fica a porta encostada. Não fica fechada pois faz-me impressão, receio não ouvir alguma coisa que deva ser ouvida. Mas a verdade é que acordo sobressaltada com os encontrões que dá na porta. 

De manhã pensei que, com sorte, talvez pudesse passar pelas brasas logo a seguir ao almoço. Estava mesmo a precisar. Afinal apeteceu-me tentar recompor o livro que, no outro dia, a fera tentou devorar. Dezenas de bocadinhos de folhas. Com uma paciência chinesa pus-me a tentar encontrar, nas folhas esburacadas, o espaço para cada bocadinho. Por bizarro que possa parecer, gosto de fazer coisas assim. É tal e qual como fazer um puzzle. E eu não tenho paciência para fazer puzzles pois não tenho paciência para fazer coisas que não servem para nada. Neste caso, como o objectivo não era lúdico mas muito objectivo, tentar conseguir ler as folhas despedaçadas, tive paciência. 

Tenho esta coisa muito arreigada em mim: não desperdiçar tempo com coisas que não servem para nada. Claro que escrever aqui, a bem dizer, também não serve para nada. Mas, enfim, tenho esperança que sirva para fazer companhia a quem me lê, enquanto me lê. Enfim, não interessa. Gosto de escrever, seja ou não útil. Acho que é a única excepção. Isso ou fotografar. 

Bem, mas pus-me a tentar reconstituir as folhas. E quase consegui. Subsistiram alguns buracos em algumas páginas. Concluí que não apenas o pequeno monstro felpudo rasgou várias folhas como deve ter comido parte delas. É que apanhei cada bocadinho que encontrei na relva, não sobrou nada. Portanto, deve ter devorado, literalmente, parte da biografia do Pina.

O que é curioso é que, enquanto estive nesta actividade, ele esteve deitado ao meu lado, com o queixo em terra, como quando está expectante ou a fazer-se de morto a ver se passa despercebido. Ora costuma andar de roda de mim, pôr as patas em cima da mesa para ver o que estou a fazer, a tentar mexer naquilo em que estou a mexer. Desta vez nem pó. Cá para mim, lembrou-se que aquele livro já foi motivo de desentendimento sério entre nós e nem se arriscou a puxar assunto...

Portanto, como de seguida tive que me ir aprimorar para uma reunião, não consegui descansar. Resultado: agora estou que não posso. Daqui a nada tenho que ir dormir.

Ontem não contei como foi o dia mas posso contar agora. Em casa do meu filho, um após outro, foram todos ficando com covid. Os cinco. Sintomas variáveis mas, felizmente, pouco graves. Estão confinados há para aí umas duas semanas. Por isso, no domingo, depois de termos ido votar, só estivemos com o bando da minha filha. Almoçámos no jardim e depois fomos passear. Ela andava há algum tempo a querer ir passear para ali -- o que teve que ser muito regateado com os filhos, em especial com o mais velho que queria treinar defesas na praia.

A tarde estava boa, amena, uma luz suave, um ambiente muito agradável. É muito bom passear com o tempo assim, o mar tão bonito, a vista tão longa e delicada, todos tranquilos. O ursinho felpudo fica feliz com a família, salta e brinca e corre e derrete-se com eles. 

Faz tanta falta a chuva. Assustam-me as secas. Nem quero pensar que vamos ter falta de água antes de se ter descoberto como dessalinizar as águas do mar em larga escala e a baixo custo ou como forçar a formação de nuvens. Mas, se me abstrair dessa preocupação, é tão bom o tempo assim...

........

E, nesta dança de dia após dia, o primeiro mês do ano já se foi. Anda rápido, o tempo. De manhã, quando estava a tomar o pequeno almoço, abri a porta e abeirei-me do jardim. Estava uma rola a passear na relva. Tentei manter o silêncio mas não devo ter conseguido pois ela deu uma corridinha, depois bateu as asas com força e voou. São bonitas, um platinado quase branco. Mas ariscas. Nunca me deixam chegar perto, muito menos tocar-lhes.

Quando estava a ter a reunião da tarde, tentando resolver uns problemas recorrentes e tentando anular a hostilidade de alguns contra uns outros, reparei que, lá fora, de entre a ramagem da trepadeira ao pé da janela, estava a soltar-se uma outra rola. Fiquei com pena de não a ter visto senão quando voou. 

Há um lado transitório e efémero em tudo isto, na passagem do tempo, no voo de um pássaro, nas brincadeiras de um cachorro que, não tarde, será adulto, na ternura dos meninos que, não tarda, estão grandes e independentes, em mim que talvez perca a vontade de aqui escrever fora de horas. Ainda se ao menos estivesse a escrever num caderno, em papel, se estivesse a compor um livro. Um livro sempre tenta contrariar a efemeridade disto tudo. Agora assim, a soltar palavras ao vento, palavras mais ariscas que as rolas do jardim, fico com o quê? 

Vou mas é dormir que esta conversa já não está com nada.


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Mas, antes de me mandarem bugiar, não querem ver este vídeo que aqui tenho?

É interessante e, de certa forma, tocante. Fala de quem prefere viver à margem da sociedade, abdicando de conforto e segurança, para poder sentir todos os dias o gosto da liberdade. São pessoas que vivem em barquinhos mas sabem que um dia alguém não tolerará a perturbação na harmonia do status quo e acabará com a sua forma de viver.

Living Rent-Free Next to Millionaires

For decades, the “anchor-outs” have enjoyed living in rent-free boat homes in the Bay Area. Their boats, anchored just north of the Golden Gate Bridge, float illegally in the sightline of one of the country’s wealthiest zip codes. But now, as enforcement ramps up, their way of life could be coming to an end.


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Peço muita desculpa mas não vou conseguir responder aos vossos comentários. 
Estou já mais para lá do que para cá.
Sorry.

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As fotografias foram feitas neste domingo e estão aqui na companhia de Yo-Yo Ma - Bach: Cello Suite No. 3 in C Major, Bourrée I and II

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Desejo-vos um dia feliz e luminoso.
Boa sorte. Bola para a frente. Para a frente é que é caminho.

4 comentários:

Paula disse...

Escrever aqui serve-nos para muito! Espero que nunca não deixe de o fazer.
Tão tocantes e divertidas as descrições que faz da intereções com o pequeno, em futuro grande, bicho, tão bonita a relação que já construiram!

Pôr do Sol disse...

Permito-me fazer tambem minhas as palavras de Unknown.

Bons passeios, bom descanso bons dias

Um Jeito Manso disse...

Olá Desconhecido,

Muito obrigada. Muito simpático.

Muitas vezes penso que deve ser uma seca eu estar sempre a falar de um cachorrinho que é engraçado para quem vive com ele, não para quem não o conhece.

Por isso, fico contente ao pensar que, se calhar, através das palavras, quem sabe?, o meu ursinho peludo fica a também fazer parte da vida de quem me lê.

Dias felizes!

Um Jeito Manso disse...

Olá Pôr do Sol,

Espero que esteja tudo bem consigo e com os seus. Muito obrigada. Um dia após o outro. Dando valor às pequenas caminhadas ao fim do dia ou à hora de almoço, dando valor às brincadeiras com os meninos e com o cãozinho, dando valor aos momentos em família, dando valor às pequenas coisas de todos os dias... e escrevendo sobre esses mesmos pequenos nadas.

Agradeço o carinho.

Dias felizes, Sol Nascente.