quarta-feira, dezembro 29, 2021

Casas, casinhas, trabalhos, presépios, luzinhas

 




Fomos caminhar no início da noite. A temperatura agradável. Muita humidade mas sem chuva. Soube-me muito bem.

De tarde tive uma daquelas reuniões. 

Isto das reuniões por teams ou zoom tem muitas coisas boas mas tem uma coisa que, ao fim deste tempo, já me cansa. Estou sempre a dar de caras comigo. Vejo que a blusa não me assenta tão bem como gostaria, vejo o cabelo e fico sem saber se o hei-de cortar, apanhar ou deixar para lá, vejo-me com cara de poucos amigos. Podia fingir que não estou a ver-me. Claro que sim. Mas já me conheço de ginjeira. Não preciso de olhar para mim para me ver. Uma seca. 

A reunião estava a impacientar-me. Há pessoas que não atam nem desatam. Forcei-me a estar calada. Imponho-me contenção. Admito que sabem o que andam a fazer. 
Do lado de fora da janela, no pequeno pátio junto à porta, a pequena fera peluda sentou-se depois de estar a olhar para dentro, provavelmente tentando descobrir-me atrás do monitor. 
Ouvi os argumentos, as desculpas, ouvi as generalizações do costume que só servem para empatar e nunca para resolver. A noite começou a cair. De vez em quando intervinha mas discretamente. 

Até que comecei a falar sem me impedir de dizer o que queria. Falei e vi que estavam todos muito sérios a ouvir-me. Quando acabei ficaram calados. Durante uns segundos ninguém disse nada. Pensei que o que vinha a calhar era que a pequena fera enchesse o espaço que tinha sido ocupado pelo vazio com um prolongado uivo.
[E abro aqui um parêntesis. Hoje, tinha-se ligado experimentalmente um alarme parcial. Esquecido disso, às tantas o meu marido foi lá. Aquilo desatou a apitar feroz, aguda e ensurdecedoramente. Como não sabia o que estava a passar-se, apanhei um valente susto. Eu e o little teddy bear. Ao meu lado, ladrou, ladrou, andou de um lado para o outro sem sair de pé de mim. E, então, fez uma coisa extraordinária. Uivou. Mas uns uivos a sério. Parecia um lobo. Parecia que um lobo tinha encarnado nele. Em quase treze anos nunca a nossa doce cãzinha tinha uivado. Passava-se com cavalos ou com gatos, ladrava e eriçava-se e corria como se estivesse possuída. Mas uivar nunca uivou. Este foi de tal ordem que o meu marido, que estava longe, ouviu. Não sei qual foi a dele. No fim, quando o meu marido apareceu e a coisa se esclareceu, o lobo felpudo dava ao rabo e olhava para nós como se estivesse a sorrir e a pedir o nosso reconhecimento. Disse-lhe: menino lindo, tomou muito bem conta da casa. E fiz-lhe festinhas.]
Quando a reunião acabou, tive que fazer uns telefonemas. Sentia-me livre. Fiz um chá. Estava mesmo a apetecer-me um chá. Mas quando o meu marido me perguntou se queria ir dar uma volta nem pensei duas vezes. Sair. Caminhar. Já era de noite e foi ficando cada vez mais de noite. Por volta das sete já é de noite. Perto das oito é mesmo noite cerrada. Sem chover, as decorações de Natal ganham outra graça. Grande parte das casas tem os interiores à vista. Grandes vidraças e, lá dentro, árvores de Natal a piscar, paredes iluminadas, pessoas sentadas à mesa, alguém sentado em frente a um computador, pessoas a circular na cozinha. De noite, as casas iluminadas parecem cenários de filmes que somos convidados a ver. Há qualquer coisa de íntimo numa casa iluminada, vista de fora. Acho engraçado que aqui as pessoas não se importem que vejam as suas casas por dentro. 

Os meus novos vizinhos do lado também tem a casa cheia de decorações de Natal. Hoje, ao sairmos, reparei que uma das crianças estava sentada a uma mesa, escrevendo. E, à sua volta, luzinhas a piscar. Achei enternecedor. Também pensei que iam estar dias a retirar todas as aquelas decorações e iluminações; mas depois eliminei esse pensamento pois o meu sentido prático tem pouco de natalício.

Há pouco, quando aqui me sentei, estive a ler mais um pouco de 'Para quê tudo isto?'. As casas, as ausências, os afectos, as palavras. 

Tenho que ter mais tempo para poder ler mais devagar, para poder ficar parada entre as palavras. Sentar-me a ler, os olhos pousados nos silêncios. No domingo estava sentada a ler, no piso de cima, na sala grande dos livros. E vi uma rola a esvoaçar junto à janela. Batia as asas e não saía do mesmo lugar. Foram segundos. Mas foi uma visão maravilhosa. 

Quando estou a ler ali, no cadeirão junto à janela, o lobo felpudo deita-se aos meus pés e dormita. Se sente algum movimento lá fora, soergue-se mas, como percebe que dali não virá mal ao mundo, volta a dormitar. Nesses momentos é um companheiro tranquilo. Respeita o acto da leitura. 

Estar em casa é bom. Dantes pouco estava em casa. Saía cedo, regressava tarde. Agora posso usufruir da minha casa. 

Na pequena estante com portinhas de vidro que tenho à minha frente, a que tem a televisão em cima e que foi feita pelo meu pai depois de se ter reformado, há um pequeno presépio. Gosto de presépios. Há ali aquela convergência de ternura a que sempre se assiste quando as pessoas se reúnem para conhecer uma criança acabada de nascer. Não havia iluminações de Natal na gruta. Agora quase só há iluminações e pais natais. Acho que os presépios caíram em desuso. A bem dizer acho que pouca gente relaciona o Natal com o nascimento do menino Jesus. Mas não faz mal. Parece que, na realidade, nem nasceu a 25 de Dezembro e, de resto, já foi há tanto tempo que já pouca gente se lembra dele. Quantos meninos já nasceram -- em grutas ou em barcaças, os pais foragidos -- depois dele? A boa acção agora não é rezar a esse longínquo menino Jesus: a boa acção seria acolher nos nossos países tantos meninos de pais foragidos quantos pudéssemos. 


_________________________________________________________________

Desenhos e pinturas de Candido Portinari ao som de Catrina Davies que interpreta Where did all the flowers go?

_________________________________________________________________

E talvez não venha a propósito mas apetece-me partilhar o vídeo em que Catrina Davies fala da pequena casinha em que se sente livre e feliz


_____________________

Desejo-vos um dia feliz. 
É de aproveitar que o safado do 2021 está quase a dar de frosques.
Saúde. Alegria. E força nisso.

2 comentários:

José Duarte disse...


Olá, UJM, boa noite. A fera peluda pode ter uivado para manifestar ansiedade ou desconforto em relação ao som do alarme. Mais provavelmente, tê-lo-á feito para advertir/ameaçar aquilo que terá interpretado como "inimigo nas proximidades" (reacção muito comum aos lobos dos quais descende). De qualquer modo, agiu em defesa do território da família, da qual (já) faz parte. Por isso, foram muito apropriados e importantes os elogios e os carinhos de compensação pelo seu desempenho. Ele percebe. E gosta. E não esquecerá. Desejo-vos a todos (incluindo a fera) um 2022 pelo menos tão bom como o que pretendo para mim.

Um Jeito Manso disse...

Olá José Duarte,

Concordo muito com o que escreveu. Pela reacção dele quando acabou de ladrar e uivar, percebi que o tinha feito 'por bem' e que queria receber o nosso reconhecimento.

Sabe que começo a percebê-lo melhor com a sua ajuda?

Já o controlo melhor, ele começa a estar mais calmo e obediente e começa a ser notória uma forte ligação entre nós.

Este cão é muito diferente da nossa querida boxer. Ela era obediente, meiga, uma lady. Este é mais bruto, mais intuitivo, mais 'animal'. Mas é também uma ternura. E vê-se que se dispõe a 'guardar-nos'.

Agradeço imenso as suas observações. São ajudas preciosas.

E agradeço os seus votos, tao simpáticos e generosos.

Para si também, José Duarte, desejo um feliz 2022. Tudo de bom para si e para os seus.