domingo, novembro 15, 2020

Um dia in heaven com cogumelos, fetos, caruma molhada... e um gato espião, silencioso.

 




Não posso dizer que seja um silêncio absoluto. Não é. Há sempre pássaros a cantarem. O que acontece é que, ao contrário dos pássaros que se passeiam pelo jardim da outra casa, grandes, arrojados, com cantos despudorados e salientes, estes aqui são discretos, inocentes, suaves pipilares, cânticos airosos, breves, brincadeiras de uns para outros. 

Como o dia esteve chuvoso e não frio, os odores evolam-se da terra e são odores quentes, húmidos, íntimos. Passear por aqui é como andar por entre verdejantes veredas no paraíso. O solo está coberto de caruma macia, molhada, ou por sumptuoso musgo, aveludado, muito verde. 

Destoam e, por isso, sobressaem as piracantas que estão ao rubro: as bagas são cor de fogo ou tingidas de carmim. Os medronhos estão encarnados por fora e amarelos, sumarentos e doces no interior. As laranjas começam a ficar maduras. Estão pesadas, com uma cor cheia de sol e perfume.

As folhas que ainda resistem nas videiras estão cor do fogo de outubro mas são já uma escassa amostra. As que estão no chão, tal como as dos plátanos, estão molhadas, brilham naquele estertor inocente que precede o seu fim. Há muita beleza em todos estes ciclos que, ano após ano, marcam o inexorável avançar do tempo.

E, uma vez mais, há cogumelos por todo o lado. De vários tipos, tamanhos, cores e feitios, eles rebentam da terra, aparecem de sob as pedras, encravam-se por entre os troncos das árvores. Surpreendem-me pela profusão e diversidade. Acho-os daqueles milagres que me fazem ter vontade de me ajoelhar e abençoar a fertilidade milagrosa da terra. Não sei se há um significado nisto. Na minha ignorância penso que este fenómeno só pode ser explicado pela total ausência de poluição. Ou, então, pelo profundo amor que a terra sente que temos por ela, agradecendo e demonstrando a sua retribuição desta forma exuberante.

E voltei a sentir-me observada e, uma vez mais, era um gato silencioso. Deixa-se estar a olhar para mim.

Filmei. O vídeo ficou impossível, movimentos agitados em excesso. Estou a tentar carregá-lo mas talvez não consiga incorporá-lo. Aproximo-me e ele não se mexe. Quando estou quase junto, ele levanta-se, dá meia volta, avança dois passos e volta a sentar-se. Estive perto, nunca tão perto antes. Começa a aceitar-me sem muitos receios. Sabe, melhor que os outros, que sou de confiança: tento sempre compreender.

Por causa do recolher obrigatório, teremos que sair cedo. Ainda tentaremos ver parte da família. Esta situação deixa-me vergada de saudades. Estava a jantar e a pensar que haveria de fazer um empadão de puré de batata com carne picada estufada em tomate no interior e que cobriria com pão ralado e levaria ao forno para 'quando eles lá forem'. O meu marido perguntou: 'quando?' e eu fiquei sem saber, triste. Quando poderei voltar a tê-los a todos à volta da mesma mesa, todos a falar, a rir, a contar histórias, a provar e repetir os petiscos?

Os senhores das mudanças, três vigorosos e bem dispostos brasileiros, vieram cá hoje buscar a mesa de ping-pong que ficará melhor lá, na garagem, que é muito grande e tem janelas e um grande portão. Penso: vão gostar de fazer torneios, jogar a pares. Mas quando? É certo que o tempo corre mas quando nos veremos verdadeiramente livres deste corona de uma figa, para não termos que estar de máscara, para nos podermos abraçar à vontade?

No outro dia, lá em casa, a minha menininha experimentou uma tiara, travessões com laços, um gancho com esvoaçantes penas e etéreos tules. Adorou. Mas estava de máscara, eu de máscara, as janelas da casa abertas, o frio a entrar. Não tem grande jeito, isto. Não nos vemos inteiros, nada é confortável ou lógico. Mas, claro, não pode ser de outra maneira pois somos responsáveis. Mas não é agradável.


Mas, enfim, não vale a pena carpir. O que vale é resistir, aproveitar o contacto com a natureza, aproveitar o lado bom do recolhimento.

E estava aqui a fazer tempo a ver se o vídeo acabava de ser carregado mas, com a internet móvel e pedal, é para esquecer. Também não deve estar capaz de ser visto. Tenho que aprender a segurar na câmara com mais vagar e maior firmeza para não se sentir a oscilação e para, quando a desloco, não ser uma almareaçãoo.

Fico-me, pois, por aqui.

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E queiram descer, caso vos apeteça ver uma bela paródia em volta de Biden e Trump.

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Um bom domingo!

3 comentários:

Prosperine disse...

este texto faz-me lembrar a música de Don Henley, The Boys of Summer:

"But I can see you
Your briwn skin shining in the sun
You got your hairs combed back
And your sunglasses on (...)

Bom domingo :-)

Um Jeito Manso disse...

Olá Prosperine,

Pois não conhecia... nem sequer o Don Henley... Será imperdoável da minha parte...?

E curiosa associação de ideias...

Sabe que aquele meu pedacinho de terra, o meu paraíso na terra, tem infinitos encantos em qualquer estação do ano? Não consigo dizer qual prefiro. Gosto sempre.

Uma boa semana, Prosperine.

Prosperine disse...

Acho que as ideias ainda são "piores" do que as conversas: se umas são como as cerejas, diria que as ideias são como as romãs...

O meu Paraíso também. É lindo no Verão, inóspito no Inverno, mas tão repousante! Deixo o som, que considero ter uma batida que se consegue ouvir durante as quatro estações, mesmo não sendo Vivaldi ;-)

https://www.youtube.com/watch?v=lueKyutWBE8

(I can "see", ou, neste caso, "feel you" e essa PAZ!)