sábado, julho 04, 2020

Todos os seres humanos


Conta a minha mãe que se ia esvaindo em sofrimento e cansaço durante o tempo em que esteve cheia de dores e eu sem sair. Quando saí, não sabia de que cor era a minha pele nem de que cor era a pele da minha mãe ou a do meu pai. 

Foi já bem mais tarde que me apercebi que o cabelo da minha mãe era mais louro do que o das restantes mães ou vizinhas e conhecidas. Muito louro, levemente ondulado. Os seus olhos eram também mais azuis do que todos os outros que eu até então tinha visto. Em contrapartida, o cabelo do meu pai era muito preto, muito liso, e os seus olhos igualmente escuros.

A minha mãe tinha herdado os seus traços do pai que era muito alto, muito louro, com olhos muito azuis. O meu tio, irmão dela, herdou os traços da mãe, tinha cabelos escuros e olhos castanhos com alguns laivos de esverdeado. Do lado do meu pai,  também ele saíu à sua mãe enquanto o irmão saíu ao pai, parece que herdou os injustificáveis traços um pouco orientais do meu avô.

E eu acabei por ser uma mistura dos meus pais e a minha prima mais velha a mistura dos seus pais. Olhando para ambas, ninguém diria que temos alguma coisa em comum. Contudo, curiosamente a filha dela é parecida comigo, não apenas fisicamente como, ao que parece, na maneira de ser. 

Do lado dos meus primos do lado da minha mãe, fisicamente pouco temos em comum. O meu primo tem o dobro da minha altura e metade da minha largura. A minha prima talvez tenha uma maneira de ser parecida com a minha mas fisicamente não tem nada a ver. Sempre a achei interessante, desde pequena que sempre a achei diferente. Fisicamente e no sorriso, comparo-a à Julia Roberts. Contudo, ninguém percebe essa minha comparação. 

Calhou cada um de nós ser assim, sair assim. Não fomos tidos nem achados para sermos como somos nem para termos nascido onde nascemos. Se os nossos antecedentes fossem negros, tivessem traços índios ou quaisquer outros, também nós teríamos saído diferentes. E, provavelmente, teríamos tido oportunidades diferentes. E, se em vez de termos nascido numa cidade tranquila, em ambiente de paz, tivessemos nascido num local em guerra, pobre, inseguro, certamente toda a nossa vida teria sido bem diferente.

E, no entanto, também não teríamos sido tidos nem achados para tal.

Porque tudo isto é tão óbvio, tão la paliciano, custa a perceber como é possível haver gente tão burra que se ache no direito de tratar de maneira diferente os outros consoante a cor da sua pele, a sua raça, a sua condição.

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All Human Beings


Vídeo de Yulia Mahr

Declaration Readings: Eleanor Roosevelt, Kiki Layne, Hiba Sellaoui
"The opening words of the declaration, drafted in 1948, are “All human beings are are born free and equal in dignity and rights.” These inspiring words are a guiding principle for the whole declaration but, looking around at the world we have made in the decades since they were written, it is clear that we have forgotten them. The recent brutal events in the US, leading to the tragic deaths of George Floyd and Breonna Taylor, as well as countless other abuses around the world, are proof of that.  At such times it is easy to feel hopeless but, just as the problems of our world are of our own making, so the solutions can be. While the past is fixed, the future is yet unwritten, and the declaration sets out an uplifting vision of a better and fairer world that is within our reach if we choose it. VOICES is a musical space to reconnect with these inspiring principles and Yulia’s striking film depicts this inspiration in a beautiful way, while offering a glimpse into her full length film of our project to come”
Music video by Max Richter performing Richter: All Human Beings. © 2020 

1 comentário:

Anónimo disse...

Creio que subjacente a esta sua reflexão está a morte de George Floyd, e concordo inteiramente com o que escreve.
O que me deixa encanitado é a manipulação e a duplicidade de critérios que algumas almas bem pensantes aplicam a situações substancialmente iguais - estou a falar de Cédric Chouviat e de Igor Homenyuk.
O primeiro foi morto pela polícia em Paris, em Janeiro passado, na sequência de uma fiscalização de trânsito e, ao que parece, por causa da mesma técnica de imobilização aplicada a Floyd , o segundo foi morto nas instalações do SEF, no aeroporto de Lisboa, em Março, alegadamente na sequência de espancamento.
Ao contrário do que se passou no caso de George Floyd a Assembleia da República não aprovou nenhum voto de pesar pela morte de Chouviat nem de Homenyuk - e este morreu quando estava à guarda do Estado português! Ao contrário do que aconteceu com Floyd, as mortes de Chouviat e de Homenyuk não mereceram manifestações de rua de quaisquer organizações, nem discurso inflamados, nem histerismos dos media.
Qual a explicação para a diferença de tratamento? Eu diria que foi porque Floyd era afro-americano, Chouviat era francês (embora pela foto seja levado a crer que com origem argelina)e Homenyuk era na nacionalidade ucraniana e raça caucasiana.
Mas se eu tenho razão, então teremos aqui um racismo de sentido contrário ao gritado nos media e nas manifestações. É de facto lamentável que haja "gente tão burra que se ache no direito de tratar de maneira diferente os outros consoante a cor da sua pele, a sua raça, a sua condição."
MPDAguiar