quarta-feira, junho 05, 2019

Não vou falar do Panteão dos Corações porque os escritores não precisam de túmulos de pedra, precisam é que leiam os seus livros.
Falo, sim, de uma bela livraria: a Livraria da Travessa.
E, de passagem, falo num certo Manual de Etiqueta





Agora que o nosso Marcelo lançou a sound bite do dia, permitindo que a consciência colectiva fosse a enterrar devidamente paramentada com um pensamento enternecedor e indulgente, passo à frente porque conversa de Panteões mesmo que venha enfeitada com corações não me apetece a propósito da Agustina.

Agustina é mais do que isso, é espírito vivo e terra e fogo, não é corpo morto em pedra fria. Agustina é mãe de palavras infinitas, não memória enclausurada em monumento. Acho eu. Marcelo não fez por mal, acredito, falou porque tem que falar sempre. Mesmo quando a hora seria de silêncio, até para respeitar o silêncio de Agustina, Marcelo quis fazer bola de efeito. Mas não é por mal, é apenas defeito que ainda não aprendeu a curar.


Sigo, pois, em frente. Enquanto houver estrada para andar eu vou continuar. De tantos e tantos livros de Agustina, só tenho uns muito poucos e desses ainda mais poucos li. E, no entanto, bato-me por ela onde quer que eu esteja. Bato-me, certa de que estou a bater-me por um nome maior das letras portuguesas -- mesmo que torçam o nariz achando que não, mesmo que achem coisa datada, escrita rebuscada com tiques de antanho, mesmo que achem que não passa de obra parada numa tela de Oliveira.

E, para meu pessoal conforto, terei palavras novas de Agustina para ler pela vida afora. 

Só desejo é que todas as televisões façam muitos programas sobre a sua obra. Digo sobre a obra e não apenas sobre a autora. Que se ouçam as palavras que escreveu, que quem ouça tenha vontade de ler mais, de ler muito. Isso é que desejo. Das pessoas que conheço poucas leram Agustina. Muito poucas. E isso é que me dá pena. Não sabemos amar quem honra de verdade a nossa língua nem quem tem a genialidade da escrita íntegra. 


No outro dia queixei-me aqui, e foi há pouco tempo, destas livrarias cheias de lixo em que a gente tem que garimpar muito primeiro que apareça livro que valha a pena. E o pior é que nem a gente sabe como procurar, só lixo à vista, na estante, na bancada, na prateleira, no topo. Desejei uma livraria que me ajudasse a aprender quais os livros bons, uma livraria despoluída e atraente por onde eu pudesse ser guiada até onde as palavras límpidas me aguardassem.

Pensei que estava a sonhar. O mundo perfeito não existe. Se calhar nunca existiu. Pode parecer que me iludo mas não, tenho os pés na terra.

Mas afinal essa livraria existe. Estive lá. Um lugar de serenidade e paz.


Não fui à Feira do Livro. Estava muito calor e, nos últimos anos, a barafunda, o barulho e a confusão incomodaram-me demais. Livraria boa pede recolhimento, não liturgia mas recolhimento, quase silêncio, se música, então, musiquinha boa, e pede frescor e pede uma quase média luz, algumas zonas de sombra, alguns recantos para alguma escrita que requeira algum recato.

A Livraria da Travessa tem isso. Situa-se num dos lugares especiais de Lisboa, o Príncipe Real, e é de uma sobriedade, de uma elegância, de uma largueza, de um bom gosto que dá vontade lá ir todos os dias.


E trouxe de lá alguns livros. Livros que sabia que existiam e nunca tinha visto à venda. Andava eu por um lado, o meu marido por outro, ambos à descoberta. Deles darei conta um dia destes. Livros que me enchem de alegria só por existirem e estarem aqui à minha beira, à minha espera. O meu marido já leu parte de um e gostou, diz que está bem escrito e que é um bom retrato de época.

Eu ainda não li nenhum mas agora peguei no Manual de Etiqueta do mesmo autor e estive a folhear para ver se poderia ser de utilidade para alguns dos que pacientemente me acompanham aí desse lado. E confirmo: da máxima utilidade.


Por facilidade transcrevo apenas dois conselhos e escolho-os apenas pela dimensão pois há casos em que, atestando que o tamanho importa, a minha escolha recai nos mais pequenos.

O hipismo

Para se fazer hipismo é necessário ter prática e ter também um cavalo ou uma égua. Quando um casal faz hipismo o cavalheiro vai do lado direito a dama do lado esquerdo. O cavalo vai sempre por baixo. (É uma velha tradição que fica bem respeitar).



O beijo-paixão

Este género de ósculo fica muito bem às senhoras tipo mulher fatal, de cabelos pretos e olhos verdes. A etiqueta exige para tal cerimónia o baton cor de sangue, fundas olheiras e pálpebras semicerradas de míope. Sendo este dever social considerado de grande cerimónia, jamais o cavalheiro o praticará com o chapéu na cabeça.


[O autor é o Vilhena e forçosamente a ele terei que aqui voltar um dia destes]



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É de um brasileiro esta bela livraria de Lisboa. 
Pelos vistos gosta da língua portuguesa e gosta de literatura e de livros -- e é isso que é preciso. 
Espero que tenha muito sucesso pois quero ir e ir e ir e voltar a ir a esta Livraria da Travessa.

13 comentários:

Anónimo disse...

O hipismo

Para se fazer hipismo é necessário ter prática e ter também um cavalo ou uma égua. Quando um casal faz hipismo o cavalheiro vai do lado direito a dama do lado esquerdo. O cavalo vai sempre por baixo. (É uma velha tradição que fica bem respeitar).

Bem observado!

Abraham Chevrolet disse...

A Nação curva-se perante o Génio de Agustina.
A cada um a sua devoção.
Em nenhum dos seus livros,e não são poucos,nem em qualquer outro escrito,sseminário ou conferência lhe vi criticar as ditaduras de Salazar e Caetano.Nem a fome que grassava pelo país, as faltas de Liberdade de pensamento,reunião e associação, as prisões arbitrárias,os Tribunais Plenários,a Guerra Colonial de 13 anos com milhares e milhares de mortos,a emigração incontrolável,etc.
Em que país vivia a ilustre escritora?
-Biras, biras, birinhas!...

P. disse...

O tema Hipismo já inspirou muitos outros antes de Vilhena, embora este com mais humor. Um humor que hoje vai rareando. É pena! Em tempos idos, no Séc. XV, D. Duarte (há por aí um outro D. Duarte, dito Pio, mas este nunca se interessou pelo tema do Hipismo, que se saiba) - o I - atirou-se empenhadamente ao assunto, ao escrever “A Arte de Bem Cavalgar Toda a Cela” (ou o «Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda a Cela»). Quer-me parecer, todavia, que a preocupação daquele ilustre filho de D. João I, de cognome o Eloquente, quando decidiu escrever aquela sua Obra, não estaria propriamente interessado em explicar aos seus súbditos leitores (enfim, aos que sabiam ler, que eram uma minoria, à época) as técnicas do Hipismo, mas sobretudo em tentar explicar como se cavalga, ou se deve proceder, para cavalgar toda e qualquer cela. É que, há celas que se comportam de forma diferente, se posicionam de forma igualmente diferente, reagem ao nosso cavalgar de forma diferente e, nesse sentido, haverá que ter, ou adquirir, os conhecimentos necessários com vista a que a cavalgada se faça sem percalços de maior. Montar um equídeo requer não só destreza e perícia, mas, também, alguma percepção do comportamento do cavalo, ou égua, que se vai cavalgar e nesse sentido de como irá reagir para com o cavaleiro, ou cavaleira, que terá sobre a sua cela. O Monarca Eloquente estaria mais preocupado com outros detalhes que não apenas a boa prática do Hipismo, como por exemplo a reacção de uma cela ao ser montada. Uma boa reacção, providenciaria um bom momento e uma bela cavalgada, já o oposto, uma má reacção, poderia trazer algumas frustrações e quem sabe até levar a que o cavaleiro, ou cavaleira, nunca mais tivessem vontade de voltar a cavalgar outras celas. Seria caso para se dizer que há mais vida para além de uma boa cela. Haverá mesmo? Não creio que D. Duarte, I e único, acreditasse nisso. Quando escreveu tão empenhadamente aquela sua Obra, que gentilmente nos legou e pode ser lida hoje por muitos mais leitores e leitoras (já que o número de analfabetos é claramente menor do que no seu Real tempo), aquele bem quisto monarca teria certamente querido deixar algumas sábias explicações para que qualquer dos seus súbditos e súbditas pudessem aprender como cavalgar toda a cela, com arte e sem complexos. Por conseguinte, a prática do Hipismo, se queremos retirar disso um momento bem passado, terá de estar associada à arte de saber cavalgar bem a cela que montamos naquele momento. E nisto a experiência, essa mãe da Vida, ajuda muito.
*Não sei é porque Diabo o único manuscrito completo de tão distinto e sábio livro se encontre em terras de França, na Biblioteca Nacional, em Paris.

Um Jeito Manso disse...

Olá Anónimo,

Ok. Sendo bem observado, a ver se não se esquece quando praticar... É que estas coisas às vezes parecem dados adquiridos e, na volta, não são.

Um Jeito Manso disse...

Oh Abraham...

Mas isso faz-se? Passa séculos sem dar um ar de sua graça e, quando aparece, é para mostrar o seu mau feitio...? Não acho bem.

E mais: se o facto de ela não se demarcar dp nefasto tempo da outra senhora (e bolas, ela também escreveu muito depois do 25, não escreveu apenas antes) não o demoveu de ler todos os seus livros (sim, porque se afirma isso com tanta certeza é porque o comprovou), é porque a qualidade da sua escrita se impôs sobre a sua não tomada de posição política.

Por isso, vá lá, deixe lá isso e confesse que gosta der os seus livros...

E faça o favor de não se ausentar por tão largos períodos, ouviu?

Um Jeito Manso disse...

Olá P. (Rufino?)

Os seus comentários, quando não está numa de desconversar politicamente ...:), trazem sempre ensinamentos engraçados. As coisas que sabe...

Por acaso, volta e meia uso a expressão 'a arte de bem cavalgar toda a cela' e nunca me tinha ocorrido pesquisar a sua origem.

É caso para dizer: uma coisa nova por dia nem sabes o bem que te fazia... e eu hoje já aprendi esta.

Thanks, P.

Isabel disse...

Livrarias, são as minhas lojas preferidas. Pode ser que um dia tenha oportunidade de entrar nessa.

Beijinhos:))

Anónimo disse...

Mas como raio se cavalga uma cela? Estando preso numa sela? Volta Agustina, que isto são os fãs - nem queiras saber dos outros...

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel,

Quando vier cá, tente ver se dá para ir ao Príncipe Real. Vai ver que vai gostar.

Beijinho!

Um Jeito Manso disse...

Olá Anónimo/Anónima bem selado/a,

Quer crer que, ao ler o seu comentário, fiquei a pensar 'mas que diabo de trocadilho é este....?'?

E às tantas pensei: 'Querem lá ver que o P. se enganou e escreveu 'cela?' E, ao passar os olhos à procura do comentário dele, dei com o meu... Fogo. Que mau... Acho que foi daqueles erros de simpatia... Mas, caraças, que mau, não tem desculpa.

Portanto, agora, não apenas estou a achar imensa graça ao seu comentário como acho que foi brando demais. E o drama é que não consigo chegar ali acima ao comentário e emendar. Portanto, só me resta aqui ficar, com orelhas de burro, à espera de quem aqui quiser vier gozar comigo.

Snif, snif.

P. disse...

Assiste toda a razão na crítica à Cela, pois devia ser...Sela. Um tipo põe-se a pensar em Camilo Castelo Branco que esteve numa Cela na Relação do Porto e depois dá no que dá.
A Arte de Cavalgar toda a ... Sela. Assim deve ser. A escrita num Blogue por vezes dá nestas desatenções - que não têm desculpa, todavia. Errar é humano, lá dizem!
Cavalguem-na bem, minhas senhoras e meus senhores e verão quão satisfeitos ficarão.
(também gosto de uma boa sela de borrego. Ou de borrega. Bem temperada e cozinhada é um bom pitéu!)

Paulo Batista disse...

Uhm, um escritor para ser escritor é grande se for ou um dos grandes neorealistas, ou um escritor ideologicamente engajado ou, vá, que pelo menos na sua vida pública para lá dos livros faça umas declarações engajadas ideologicamente.
A Agustina trata sobretudo das vidinhas das nossas elites, não tanto das vidinhas político ideológicas mas do seu carácter diria até psicológico. E é aí, nessas entranhas escondidos, que revela o mau "génio" das gentes que sustentaram os anos de ditadura em que ela viveu. Talvez percebendo melhor que ninguém a fatalidade de tal situação face ao caráter dominante de tais elites.
Digo eu, que não percebo lá grande coisa de.literatura, que sou gosto de muitos neorealistas ou de escritores ideologicamente engajados à esquerda e situo-me no quadrante ideologicamente da esquerda "liberal".

Paulo Batista disse...

Perdoem-me o péssimo português. A escrever no telemóvel, ao ritmo dos solavancos de um comboio suburbano e bastante cansado não é fácil.
Abraço