quarta-feira, abril 24, 2019

Pecar em grande no Dia do Livro




Saí tarde à hora de almoço e, portanto, atrasada face à hora combinada. Ainda por cima, tinham-me chamado para o que seria suposto ser uma simples rapidinha pelo que nem tive pretexto para ir buscar o telemóvel. Só que, afinal, os preliminares nunca mais acabavam e o que se seguiu foi mais do que tântrico. Ou seja, não tive como avisar que ia chegar atrasada.

Ao fim de todo este tempo, ainda não ultrapassei isto: fico enervada quando estou atrasada. Detesto chegar atrasada. Das poucas coisas que verdadeiramente me enervam em profundidade é isto: estar agarrada numa reunião sabendo que vou chegar atrasada à seguinte ou estar agarrada, e sem escapatória, no trânsito sabendo que não vou conseguir chegar a horas. 


Portanto, cheguei atrasada. Quem por mim esperava, sem ter sido avisado, já se impacientava quando, chegada ao carro, avisei o óbvio: a hora combinada já era.

Tivémos, pois, que almoçar sem muitas delongas. Ele tinha horas para se ir embora. E eu também mas com uma pequena folga, coisa de uns dez minutos. Acontece que, quando ia no carro, tinha ouvido dizer que era Dia do Livro. 

Não ligo a esta coisa dos Dias de. Mas não ligo quando não me convém ou quando não estou nem aí. No caso vertente, pressenti logo que teria que abrir mais uma excepção. E pensei: deviam era fazer também o Dia dos Perfumes. Ou o Dia dos Brincos. Ou o Dia dos Gelados. A ver se não ligava a todos os Dias de, ai não que não.

E, assim sendo, quando ele se despediu a correr, perguntando-me se eu também não ia, respondi que, sendo Dia do Livro, teria que ir fazer as honras.


E é destas coisas que nem vale a pena tentar iludir: a gente sabe quando tem a predisposição no corpo. A gente quer, genuinamente, não ceder à tentação mas a gente sente, nessas alturas, que não é genuinamente coisa nenhuma, que a gente só está é à espera do pretexto e que, a bem dizer, nem é preciso pretexto nenhum, é mesmo só surgir a oportunidade.

Logo à entrada, a estante corrida, verso e reverso, de livros cheios de descontos, e descontos upa-upa. Pensei: cuidado, não vá já os teres. É que se é para pecar pois que o pecado venha com travo a coisa nova, a aventura e descoberta. Nada de coisa datada, coisa já por aí muito batida, coisa que talvez já tenha passado pelas minhas mãos. Não, se é para pecar pois que seja com coisinha a cheirar a novo, fora da zona de conforto, desconhecido, blind date.

Portanto, passei a zona dos déjà-vu e avancei resoluta para as novidades.


E aí foi a emoção inversa do stress-mau, aí foi aquele fremitozinho bom, tremurinha com cheirinho a desafio, com apelo irrecusável: pega-me, espreita-me, toma-me para ti.

Em situações assim nada a fazer, não me faço rogada, entrego-me ao prazer do desfrute. Peguei no primeiro, virei-o e revirei-o, abri-o e sondei as suas entranhas. Agradou-me. Teve que ser.

E assim foi, uma e outra e outra vez. Pensei: se é para pecar, se é para ceder à tentação, pois que a festa seja rija, sem pudor, sem arrependimento. Não com um que só um, em dias assim, é pouco. Dois. E que venha mais um que só dois é pouco.

Foram seis. 

Depois, quando vinha a sair, tive um rebate de consciência e, para me consolar, pensei: não são todos para mim. Um é para ele. O magala. Salvo seja, claro -- porque não é magala, é oficial do exército. O autor, bem entendido. Mas não é o autor que é presente meu para ele, é a obra. 


Mas os outros cinco são para mim -- embora, não sendo eu egoísta, tenha todo o prazer em partilhá-los. Um luxo. Depois, no carro, ia a pensar: não foi só por ser Dia do Livro, foi mas foi já coisa do 25 de Abril, para festejar a liberdade. E venham mais cinco. Venham mais cinco/ Duma assentada.

Quando cheguei aqui à sala com eles todos pelo braço, o meu marido olhou e riu-se: Deste-lhe! E eu já querendo ser perdoada mas, ainda, sem qualquer pudor pelo mal feito: Um é para ti. 

Depois peguei na máquina fotográfica e ele voltou a rir-se: Não me digas que vais fotografá-los... Claro que fui, orgia que é orgia tem que ficar registada. 


Com ínfimos excertos escolhidos completamente à toa (e ansiando pelo dia em que vou ter tempo para lê-los todos, de lisinho, na boazinha)

Presente para ele:

  • Que fazer contigo, pá? -- Carlos Vale Ferraz 

Longe das vistas e das censuras da família católica e dos colegas da Opus Dei, Maria del Tosario cortara os medos dos pecados e das más-línguas; benzia-se antes de abrir as pernas -- que se joda Rosario! -- e adradecia o prazer no final -- gracias, Jesús!

Presentes para mim:

  • Carne crua -- Rubem Fonseca
Um dia entrou no armazém uma moça muito linda, perfeita, seios pequenos, bunda durinha, pernas grossas, mas não muito. Seu Manoel a atendeu e u fiquei olhando, excitado; foi uma espécie de paixão à primeira vista. 
  • Dicionário sentimental do adultério -- Filipa Melo
Pense como um jogador de xadrez: com duas a três jogadas de avanço. Há quem diga que o adultério é uma forma de treinar não só o corpo mas também a existência.
  • Pedra de afiar livros e outras histórias de um livreiro -- Jaime Bulhosa
Vamos organizar no próximo mês uma grande festa de caridade. Contamos com as senhoras para nos levarem todos os objectos inúteis que tenham em casa: livros, vestuário, bugigangas e também, naturalmente, os maridos.
  • No impudor do olhar -- Octave Lothar
Assim a pele feminina, tapete mágico inesgotável, será acariciada, beliscada, mordida, fustigada, por forma a que se erga em voo pelo céu do desejo e nesse voo arraste quem quer que a ponha à prova, libertando os excessos e os prodígios nela represados.
  • Correio para mulheres -- Clarice Lispector
No entanto, quantos maridos poderiam evitar situações embaraçosas e desagradáveis se ouvissem mais os conselhos das esposas?Conselho é aquilo que não aceitamos porque desejamos experiência; e experiência é o que nos resta, depois de perdermos tudo o mais.

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Nota de culpa

Dadas as presentes circunstâncias -- o post foi longo e o anterior também um bocadinho e madruguei e a alvorada vai voltar a ser prematura e a noite de 24 vai ser longa -- não consigo manter-me acordada pelo tempo de que necessitaria para responder aos comentários. Por isso, aceitem as minhas desculpas. Mas saibam que os li e que gostei e que... (não posso dizer...) e que apenas não tenho bateria para mais conversa.

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E porque sim, apesar do calendário ainda estar em Abril: Maio maduro Maio. E que viva a Liberdade. Sempre e para sempre.


25 de Abril, forever in our hearts. 

(E não me perguntem porque é que escrevi isto desta maneira e, ainda por cima, em inglês, porque não faço a mínima)

7 comentários:

Image Work India disse...

Thank you so much for doing this and for your kind words about my work.Thanks For Sharing

Anónimo disse...

Também eu fui ontem ao alfarrabista. Comprei três, um deles uma bela edição do "essai" autobiográfico de Boris Pasternak, com pinturas originais. Edição de 84 exemplares. A 5€. Uma autêntica prenda.
Abraço
JV

Maria disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Maria disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Francisco de Sousa Rodrigues disse...

O 25 de abril é mesmo aquele dia que nos enche a alma.

Um rico Dia da Liberdade.

Isabel disse...

Não fui à livraria que não tive tempo.
Vou lá na sexta-feira. Quero ver se há esse da Clarice Lispector, que não conhecia.

Como compreendo os seus sentimentos em relação aos livros! São uma tentação!

Beijinhos e um bom feriado:))

Katherine M. King disse...

So awesome things guy . Liked and appreciate your well shared blog . Thank you .