segunda-feira, outubro 29, 2018

Jair é massa, inda bem que ganhou ele
Papo entre Irís e Duca que também votaram em Bolsonaro




Irís sobe, sacola ao ombro, nails em pink com estrelinhas douradas. Diz à amiga que a acompanha que o ónibus vai cada vez mais cheio. A amiga sorri e diz: 'Cada gringo mais lindo que o outro'. Irís olha, apreciadora, e diz que sim, que dá gosto ver.

Duca abre a bolsa, tira o espelho pequeno, tira o lápis azul e ajeita a sombra que a deixa com um olhar cor de céu. Morena de dar gosto mas com cabelo tingido de louro, gosta de sombrear a pálpebra com um céu limpo. Traz boné de feltro vermelho a puxar ao tom do lábio e toda ela se sente gostosa.

Irís faz o mesmo, tira o espelhinho e o gloss da sacola, reforça o pink dos lábios. Olham uma para a outra com ar aprovador. Bonitas, produzidas. Se têm canseira lá dentro, por fora não se nota é nada. As más línguas diriam que são duas piriguetes de se lhes tirar o chapéu e elas não estariam nem aí.

Depois da beleza posta em ordem, Duca comenta: 'Morreu o caçula de Pedrinho. Sabia? Mataram ele.' Tom indiferente. Íris também tem indiferença na voz: 'Foi, não foi? Minha tia já tinha me contado. O meu primo no outro dia escapou por pouco, sabia? Tiraram tudo. Bateram nele, ficou de dar dó. Fez selfie e me mandou. De dar dó, amiga, todo amassado'. Depois encolheram os ombros. Assunto banal.

Duca lembrou: 'Não perguntei. Tá contente lá na loja nova, Iry?'. Íris voltou a encolher os ombros. 'Muita sujeira, muita desarrumação. Primeiro que fique limpo... nem queira saber. Mas a grana é boa. Dá pra mandar para Lindinha se vestir, para Tiquinho ter livro pra escola. E ainda sobra. É bom. Na loja à noite, nos advogados logo pla manhã, na pizzaria ao almoço. Dá pra tirar uma boa grana. Ainda ontem fui na Primark e me aviei, nem queira saber, olhe este top veio de lá, não é lindo?'

Duca diz: 'Lindo, mesmo. Olha, nem sei como não te vi lá. Também fui ontem, tá com coisas lindas de morrer, a nova colecção tá de mais, a gente se tenta mesmo, não é, não?'.

E sorriem, felizes.

Duca continuou: 'Já mandei minha mãe vir. E pode trazer meu mano piqueno. Arranjo trabalho pra ela, escola pró caçula e casa pra todos. Aqui é bom. Tá ficando caro, a turistada faz subir o preço da casa, mas a gente se vira, né? Tenho medo que um dia alguma bandidagem leve algum deles lá. Não descanso enquanto não tiverem cá comigo. Mas me desdobro, amiga, me desdobro. Chego à noite toda derreada, nem sabe. Mas vale a pena.'

Íris não diz nada. Sabe que Duca trabalha nas limpezas de manhã mas faz programa à tarde e à noite. Também ela já foi sondada pra fazer. Mas não quer. Acha que não ia conseguir. Tem medo de ser maltratada, de encontrar cliente bruto que faça doer, que não seja lavado, que tenha mão pesada, com pouco carinho. Sente admiração por Duca. Sempre foi corajosa, sabe se fazer valer, saberá se defender se for preciso. 

Duca sabe que Íris sabe mas não fala disso, falar pra quê?, nada pra dizer, melhor assim. Cada uma vira como se pode. E, depois, tanta coisa pra trás -- bem pior antes, lá longe, em casa, tanta necessidade, tanta maldade, tanta coisa má que nem é bom lembrar. 

Duca desvia, pois, a conversa: 'Olha, Íry, que diz da vitória de Bolsó?'. Íris diz: 'Não sei dizer nada, não, amiga. Não sei nada de política, não. Votei nele porque não é político. E li no Face coisas dos outros, muita malandragem a dos outros, não sei te dizer o quê que não ligo pra isso, só digo o que ouço. Sei é que Jair diz que é de família, que com ele malandragem não tá é com nada, que vai acabar com bandidagem. Ele é massa, viu?'

Duca confirma: 'Também eu, amiga, também escolhi ele. É massa mesmo. Lá na igreja apoiam ele, diz que é do bem, diz que vai pra lá pra defender o povo da bandidagem, que com ele bandido vai é na bala. O pastor lá diz que Jair tem o voto de deus. A ver se é desta, né amiga?, que a gente vai ter alguém do bem pra olhar pra nós, né mesmo?'.

Íris diz que sim, que tá contente. Depois pensa, mas não diz nada, que o broder mais velho de Duca é gay e que Jair diz que não quer nada com bicha. Melhor nem lembrar isso pra Duca -- pra quê preocupar ela, coitada? -- até porque Jair tem tanto bandido, comuna e negão para dar conta que deve deixar bicha pró fim.


""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""""" 

A história que acabei de escrever poderia muito bem ser mais uma das historinhas do halloween que tenho vindo a escrever (a saber: a da advogada, a do olho e a do gato). Mas não. Esta é de terror a sério. 

6 comentários:

CCF disse...

Descreveu mesmo muito bem a realidade de grande parte do povo brasileiro, a minha costela de lá agradece a sua clareza e esta história. Posso fazer o link para o meu blogue?
~CC~

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Sabe que mais, essas duas não me vendiam um carro novo. Realmente só é manipulável quem se identifica com a manipulação, a incultura não justifica tudo. Há um quê de paranoia e sobranceria que leva esse pessoal a dar crédito a figuras deploráveis que lhes falem aos "recalcamentos".

Um abraço e uma bela semana.


Um Jeito Manso disse...

Claro, ~CC~, à vontade. E obrigada pelas suas palavras.

Um Jeito Manso disse...

Olá Francisco,

Neste caso não creio que duas raparigas como as que tentei retratar tenham carros para vender... A única fonte de informação que têm é o que se propaga pelas redes sociais.

Quando chego muito cedo ao escritório, já estão de saída. Vêm dos subúrbios de madrugada, trabalham bastante.

Votam como se viu. Acreditam em tudo o que se lhes diz. São um alvo fácil. O voto de pessoas assim vale o mesmo que o voto de pessoas informadas.

A democracia está a travessar desafios complicados.

Abraço, Francisco. Dias felizes para si.

Um Jeito Manso disse...

Caro P.

Não publiquei o seu comentário mas agradeço-o. Já fui ver e gostei do que vi. E tanto que saltou directo para a minha galeria de 'frescos e bons'.

Muito obrigada.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Informação que vai ao encontro do que pensam e do que sentem, provavelmente nem votariam se fosse outro. Felizmente há pessoas pouco informadas que não vão nestes logros, pois a saúde emocional e afetiva é outra.

Mas, lá esta, em democracia os votos são todos iguais e longe de nós se assim não fosse.

Obrigado e também para a UJM. Um abraço!