sexta-feira, março 15, 2013

Eu e o encarnado vibrante de Rothko, que é um sangue de onde nasce a luz. E, com os meus muito sinceros agradecimentos ao Leitor que mo recomendou, Morton Feldman: The Rothko Chapel




Deixo de olhar em volta, deixo de ouvir o que me circunda. Procuro o silêncio, procuro-o no meu interior. Não fecho os olhos mas é como se os fechasse e olhasse o sangue que corre dentro de mim. Sinto o ar que procurou refúgio no meu corpo, ouço a minha respiração.

Ao ver sob o meu olhar que respira o sangue quente que corre em mim como um rio suave, é o meu corpo na sua pureza que eu sinto mas é, também, como se sentisse os corpos de todos, os corpos incorruptos de todas as pessoas boas, das pessoas que perfumam o ar com a sua existência e com a sua luz. Respiro.

Respiro devagar. Sinto a minha respiração e vejo, vejo mergulhando o meu olhar dentro de mim. As fronteiras entre mim e o que me é exterior esbatem-se.

A cor entra no meu corpo imaterial e mistura-se com o meu sangue e a doçura quente está em mim e está fora de mim e eu quero dormir para sonhar ou quero voar para dentro da luz que sai do encarnado carmim, cor de carne viva. Deixo que as minhas asas se soltem, deixo que os meus cabelos voem, deixo que o meu corpo se aninhe num ventre imaginado, talvez seja o meu próprio ventre. E, a seguir, recolho-me, recolho-me em mim, dentro de mim, e voo até ao cimo duma árvore inventada, recolho-me fora de mim.




E vejo o sangue que brota em golfadas e ele é, agora, fogo e vejo a luz que se desdobra como um imaculado, muito puro novelo, e sinto como são macias as sombras que se escondem do sangue iluminado, sinto o silêncio que os envolve como um sopro, como uma melodia que viesse de dentro da terra, do lugar onde ela é feita de chamas enlouquecidas, de uma massa quente de mênstruo doce, de férteis placentas, de paixões infinitas.

E depois.

E depois as palavras começam a caminhar sozinhas, andam e voam à minha volta, palavras sem nome, sem razão, palavras com carne, palavras com música, ou palavras mudas, das quais a música se ausentou, palavras sem cor, silenciosas, murmúrios, preces. E os anjos abstractos levantam-se de dentro da terra, rompem as telas, atravessam o encarnado de sangue, e, em coro, um coro silencioso, sublime, começam a cantar os sons mais densos, mais puros, a luz mais coada, mais ardente.

E um arrepio de emoção, de entrega, percorre o meu corpo imaterial, sem idade, sem fronteiras, e lágrimas de agradecimento rompem o meu olhar que se perdeu em deslumbramento.

Será isto rezar? Procurar a pureza mais pura? Procurar o silêncio, a essência, o princípio de tudo, o momento original, a inocência? A bondade mais leve, o voo mais livre, o sorriso mais verdadeiro? Será?



Morton Feldman, The Rothko Chapel


[La fin de "Rothko Chapel" pour alto, choeur, célesta et percussions, avec sa mélodie d'inspiration hébraïque, composée par Morton Feldman à l'âge de 15 ans - transcrição do texto que acompanha o vídeo]


*

Se ainda vos apetecer continuar comigo, venham, vamos até ao meu Ginjal e Lisboa, a love affair. Levada pela maravilhosa toada de Manuel Gusmão busco refúgio nos braços de alguém que dança em volta de uma árvore, mesmo para me atrair. A música é um exemplo de virtuosismo a dois. Mischa Maisky e Martha Argerich interpretam Grieg. Uma maravilha.

*

E, depois disto, só posso desejar-vos, meus Caros Leitores, um dia cheio de paz. 
Ela está dentro de vós.

7 comentários:

Bartolomeu disse...

Este texto, revela-se a mais bela elegia tecida até hoje ao meu "Glorioso" S.L.B.
(irra, Bartolomeu, que monumental manifestação de boçalidade, de carroceirismo!)
;)))
Gostei, minha amiga UJM. Gostei imenso, desta viágem espiritual através do sangue, esse elemento purificador que desde os princípios dos tempos (refiro-me em plural, porque me parece que existiram múltiplos princícios de múltiplos tempos, aliás, a hexistência humana, parece-me ser uma cadeia ininterrupta de princípios que nunca chegam a concluir-se) desde que o Homem ganhou consciência da espiritualidade que o envolve, foi sempre oferecido nas aras, como oferenda aos deuses; a mais sublime de todas.

JOAQUIM CASTILHO disse...

Olá UJM!

EXCELENTE!Incrível a beleza e a profundidade do texto que conseguiu "tirar" dos quadros luminosos de Rothko e da música de Feldman.

Não consigo dizer mais do que: Gostei muito....e muitíssimo!

um abraço

jrd disse...

Muito bom!
Deixo apenas um comentário breve, para saber que estive aqui no UJM

http://bonstemposhein-jrd.blogspot.pt/2008/07/hamburgo-e-rothko.html

Abraço

Um Jeito Manso disse...

Olá Bartolomeu,

Cá por casa somos mais para o verde. Eu é por simpatia porque não consigo ligar muito ao assunto mas, apesar disso, encanto-me com os encarnados de Rothko.

Mas já me fartei de rir com essa da boçalidade e do carroceirismo de um benfiquista encartado que, perante um texto todo virado para a emoção, vai e diz que é uma elegia ao Glorioso... :)))))

Mas, depois de me rir a bom rir, parei e li com muito agrado as palavras que se seguiram. Gostei muito. Muito obrigada!

Um Jeito Manso disse...

Olá Joaquim,

Ontem, quando ouvi a música que recomendou, quando ouvi vendo as pinturas de Rothko, senti-me tão emocionada... Depois foi voltar a pôr a música no início e escrever enquanto ouvia, palavras à solta. Penso que deu para perceber o quanto gostei. Agradeço-lhe muito... muitíssimo!

Um Jeito Manso disse...

Olá jrd,

Bom vê-lo e bom trazer-me notícias de andanças suas que mostram que também gosta de Rothko. Afinidades electivas, não é?

Um abraço, jrd, e muito obrigada.

Maria Eduardo disse...

Também passei por aqui e gostei imenso do que vi e li. Mais uma vez a magia dos seus dedos transportaram-nos nesta visita guiada pelos quadros de Rothko, ao som de Morton Feldman, com imensa beleza e subtileza. Obrigada
Um beijinho.

p.s. Hoje foi "o dia mundial do sono"! ...BOM SONO, BOA VIDA!