Sento-me à noite a esta mesa carregada de livros, uma luz apenas iluminando a pequena área livre onde consigo escrever. De vez em quando tento impor alguma ordem neste caos mas os meus livros têm vida própria, chegam-se a mim e eu, fraca, não os contrario.
Perto de mim, à minha direita, uma mulher sentada arranja o cabelo. Os braços que se elevam para ajeitar o cabelo ruivo são muito magros. Os seios não são muito pequenos nem muito grandes, são os seios redondos e ainda perfeitos de uma mulher jovem. Olha noutra direcção, absorta, arranjando o cabelo. Está nua mas dá ideia que isso não a perturba.
Estou habituada à sua presença, tão feminina. É uma companhia silenciosa.
Não sei como se chama. Poderia chamar-se Wally mas acho que não, Egon conheceu Wally apenas um ano depois.
Mulher sentada arranjando o cabelo Egon Schiele in heaven |
Há pouco mais de um século esta jovem sentou-se, magra e nua, em frente de um jovem pintor austríaco de 20 anos. Muitas vezes se terá cruzado com outras meninas, jovens adolescentes. Egon sempre gostou de pintar rapariguinhas, púberes recentes. Ou isso ou a si próprio. Provocador, ou nem isso, talvez sobretudo perturbado, inquieto, emocionalmente instável, muitos problemas arranjou devido à incomodidade que as suas pinturas provocavam.
Dizia-se que tinha um afecto incestuoso pela irmã quatro anos mais nova mas sabe-se lá. O pai, louco, morreu quando ele tinha 15 anos, depois de ter estado muito doente e tudo isso o afectou muito. Afectou-o também muito o facto de, em sua opinião, a mãe não ter feito um prolongado e pesaroso luto. A partir de então passou a odiar a mãe, achava que a mãe era desprovida de afecto e não lho desculpava.
A família era humilde e Egon, órfão de pai, acabou por ficar entregue aos cuidados de um tio que, felizmente, percebeu cedo que o jovem tinha uma queda para desenho e pintura e proporcionou-lhe estudos nesta área.
Aos 17 anos, Schiele conheceu Gustav Klimt que, interessado no seu trabalho, fez dele o seu "protegido", comprando-lhe trabalhos, apresentando-o a pessoas influentes, arranjando-lhe modelos.
Mas Egon era um rapaz complicado, precoce, arrebatado, e, insatisfeito com o conservadorismo académico da altura, abandonou os estudos e, juntamente com outros colegas que partilhavam a mesma insatisfação, criou o grupo Neukunstgruppe ("Grupo nova arte").
Liberto de baias, longe das regras académicas conservadoras, começou a explorar ainda mais a forma humana e, sobretudo, a sexualidade.
Duas raparigas deitadas |
Os seus trabalhos tornaram-se demasiado explícitos para a moral da época. Diziam que a sua pintura era grotesca, pornográfica, perturbada e não me admiro: por exemplo, era frequente pintar-se a si próprio num manifesto exagero fálico, em explícitas cenas de onanismo.
Com 21 anos conheceu Valerie Neuzil, Wally, antiga modelo e talvez amante de Klimt, uma rapariga com dezassete anos com quem começou a viver em Viena usando-a como modelo para alguns dos seus melhores trabalhos. Para fugirem à vida na cidade e às perseguições que imaginava (dado que era dado a fobias), mudaram-se para uma pequena cidade, terra natal da mãe. No entanto, o gosto que tinha em pintar modelos adolescentes da zona desagradava e muito à população. Compreende-se, uma terra pequena em que tudo se sabe … e em 1911!
Aborrecido, sentindo-se incompreendido, resolve mudar-se de novo, para uma localidade a 35km de Viena. Aí as suas práticas continuam e o seu estúdio torna-se num ponto de encontro de crianças delinquentes. Eram jovens maltratados, com fome, vadios. A guerra ainda não tinha deflagrado mas, tirando uma aristocracia abastada e uma recente burguesia boémia, a população vivia em condições depauperadas.
Egon gostava de retratar a decadência, a magreza, os ossos que rompem a pele, a miséria, a morte. As suas pinturas revelam sensualidade mas em corpos descarnados, quase parecendo antever o que iriam ser os corpos cadavéricos que povoariam os campos de concentração, uns anos mais tarde.
Mas a frequência da casa de Egon causa perplexidade e censura. Rapidamente se sabe que por ali passam jovens nus, que encenam poses sensuais, e tudo se comenta - não tarda que seja denunciado por práticas sexuais com uma menor. A polícia desloca-se ao estúdio e encontra muitas pinturas que considera pornográficas. Por causa de ter esses trabalhos num local frequentado por menores é preso durante três semanas. Na prisão, em condições miseráveis, ainda consegue pintar (12 quadros).
Aos 25 anos, Egon conhece então duas irmãs e fica noivo de uma delas, Edith, tencionando, no entanto, manter Wally como amante.
[Para sua surpresa, Wally não esteve para isso e abandonou-o para sempre (viria a ser enfermeira e acaba por morrer, bem mais tarde, na 2ª Grande Guerra)]
Egon casa-se com Edith pouco tempo depois, nesse mesmo ano.
Edith |
Em 1918, Schiele foi convidado a participar na 49º Exposição da Secessão em Viena. Teve 50 trabalhos aceites na exibição que foram expostos na sala principal. Fez também o poster para a exibição, o qual era inspirado na Última Ceia, com o seu retrato no lugar de Cristo. Sempre controverso.
Este acontecimento foi, no entanto, um tremendo sucesso tendo resultado na subida do valor económico dos trabalhos deste artista. Nesse ano fez várias outras exposições igualmente com sucesso.
A vida corre bem a Egon e até um bebé vem a caminho. Mas no outono desse mesmo ano a vida sofre uma tremenda reviravolta, a sorte abandona-os e Edith, grávida de seis meses, morre, uma das mais de vinte milhões de vítimas da gripe espanhola.
Uns anos antes, Egon tinha feito umas estranhas pinturas que, mais tarde, se revelariam premonitórias, como esta, assustadora:
Mulher grávida e a morte |
Não se deve desafiar o destino com coisas sérias, não se deve mesmo (parece que atrai, que horror).
Mas essa gripe era devoradora, contagiosa. Durante três dias a seguir à morte de Edith e do filho que transportava, Egon, doente, faz alguns retratos de Edith, os seus últimos trabalhos. Depois morre. Tinha apenas 28 anos.
Deixou-nos cerca de 250 pinturas e 2000 desenhos e actualmente as suas obras mais importantes encontram-se em museus de Viena e da Suíça assim como em importantes colecções particulares.
Fontes: Para escrever este texto sobre Egon Schiele (1890, 1918), pintor austríaco ligado ao movimento expressionista, consultei vários livros que tenho sobre a sua obra (dado o adiantado da hora, tenho preguiça de transcrever títulos, autores e editores mas, enfim, encontram-se à venda nas lojas da especialidade), a wikipedia e um interessante texto que encontrei na net da autoria de Helena Vasconcelos, intitulado 'A fome e o sexo'.
Nota: Dado que o Um Jeito Manso é um blogue de família, não quero correr o mesmo risco de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira que viram a sua exposição no espaço Arte Tranquilidade cancelada por poder ferir algumas sensibilidades e, assim sendo, as pinturas e gravuras que escolhi para ilustrar este pequeno texto foram previamente submetidas a aturada censura e, por isso mesmo, não demonstram cabalmente a variedade da pintura e dos desenhos de Egon Schiele.
2 comentários:
Obrigado pelas descrições deste artista, tão pouco comentado no meio. A principio o nome Egon sugere um certo egocentrismo o me parace que coincidentemente tangencia a vida deste artista, no entanto poucos viveram tão intensamente isso. Coincidência ou não muitos artistas que optam por uma expressaõ underground da propria vida morrem precocemente aos 28 anos...
Olá Virgílio,
Muito obrigada pela sua visita (vindo de tão longe...) e pelas suas palavras.
Gosto muito da obra de Egon Schiele e você tem razão, a vida dele misturou-se com a sua arte e tudo foi vivido nos limites.
E tem razão também quando diz que tantos artistas (incluindo da música) que vivem ao máximo, em excesso, acabam por morrer cedo, geralmente não chegam aos 30. Mas não falemos nisso, esperemos é que não aconteça muito mais vezes porque é pena que a sua obra seja interrompida tão precocemente.
Volte sempre!
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