Não é grande altura para se andar em locais mais frequentados. Contudo, creio que todos os cuidados estarão assegurados e obviamente irei votar. Votar é uma conquista civilizacional, um dever cívico. Isto ainda antes de ser um direito.
Este domingo, portanto, irei votar.
Li um texto e fiquei a sorrir.
Agora, vivendo praticamente em casa, essas frescuras vão-se esbatendo. Claro que me arranjo para as reuniões mas é sempre coisa mais aparente do que real, mais à superfície e muito concentrado no que se vê no ecrã. Poderia aqui fazer aquelo gestozinho irritante dos dedinhos a encolherem-se esticarem-se, fazendo aspazinhas palermas e, ao mesmo tempo, dizer: é o novo normal. Mas é coisa gasta, não o direi. O novo normal está a ser tão duradouro que qualquer dia fará esquecer o que era o velho normal.
Quanto às canetas também tenho uma coisa. Gostava muito de canetas. Era presente que recebia sempre com agrado. Tenho canetas muito bonitas. O prazer com que as recebia, as experimentava... Lindas. Uma, talvez das primeiras canetas boas que recebi, soube há algum tempo que é agora disputado objecto de colecção. Eram lindas as canetas, eram lindas as caixas em que vinham. Por vezes, as caixas ocupavam muito espaço e vinham com manuais que nem eram manuais, eram verdadeiros livros. Contavam a história, contavam o amor com que eram feitas. Ficava sempre com pena de deitar fora as caixas, os livros. E depois, lá está, por causa daquele meu lado que, na prática, é anti-glamour, ficava com receio de as estragar se as usasse dentro da carteira, ficava com receio de as perder e, no final das contas, tudo sopesado, deixava-as ficar bem guardadinhas, inúteis. Quando agora nos mudámos, foi com agrado que, ao abrir as portinhas interiores da escrivaninha, as voltei e rever. E agora, nesta casa, ali continuam arrumadas, bonitas, elegantes, quase virgens. Portanto, amanhã provavelmente usarei uma bic normal.
Quanto ao meu dia de sábado foi, uma vez mais, daqueles dias que se esvaem sem história. Fomos fazer a nossa caminhada e vimos uns homens a trabalharem no arranjo de uma vedação e de um portão. Estavam encostados uns aos outros, concentrados nas mesmas peças -- e sem máscara. Ontem tínhamos visto, num dos programas de culinária com que agora nos entretemos, fazer uma feijoada. Lembrámo-nos que há séculos não comemos nada assim, feijoada, rancho, sopa da pedra. Então, sabendo da existência de um pequeno talho que também vende alguns legumes e fruta, pensámos esticar a caminhada higiénica até lá, a ver se tinham repolho e entrecosto. Tínhamos ideia de ser um estabelecimento pequeno, aberto para a rua. Contudo, ao chegar lá, reparei que o homem estava sem máscara. Fiquei à porta. Perguntei se tinha repolho. Não tinha. Desisti do entrecosto. Mas ele continuou a mexer nas carnes, sem máscara, completamente à vontade. Portanto, não percebo. Numa situação como a que atravessamos, pelos vistos há ainda quem não esteja a perceber a gravidade da situação.
Interrompeu para dizer que tinha morrido o vizinho da ponta da rua, um que estava mal, em internamento domiciliário. Era esperado. No prazo de menos de um ano, é a quarta pessoa que morre naquela pequena rua de meia dúzia de moradias. Nenhum com covid, nenhum de morte inesperada. Qualquer deles era idoso, qualquer deles não estava famoso. Mas parece que, de repente, todas as fragilidades se tornam fatalidades. A nenhum deles faltaram os cuidados. Simplesmente, nestes estranhos tempos, a linha do tempo tem estado a encurtar-se. Não sei explicar. Talvez alguma coisa, antes, os fizesse agarrar à vida e, agora, nada os agarra. No entanto, em qualquer dos casos, estou em crer que nem se aperceberam de covides ou pandemias que os deixassem deprimidos, com pouca vontade de viver -- já estavam noutra. Não é isso, deve ser outra coisa qualquer. E não foram os únicos. Uma ou duas ruas mais acima, morreu uma outra idosa. Isto que eu saiba. Uma coisa estranha. Uma ceifa que um dia a história ou a ciência hão-de explicar.
Mas não falámos disto tudo na videoconferência, só que ele tinha morrido. E a conversa seguiu naquela animação do costume. Aliás acho que os meninos, entretidos a fazerem maluquices uns para os outros, nem deram por isso. Uns rebolando-se no chão, outros fazendo cambalhotas no sofá. Estas videoconferências com todos são um desatino, não se percebe nada, não param sossegados, falam ao mesmo tempo, uma barafunda. Adorei vê-los. Tão lindos. Só me apetece voltar a abraçá-los, a beijá-los, a puxá-los para o meu colo quando estou sentada. Quando será que poderei fazê-lo?
De tarde, dormitei enquanto vi qualquer coisa de que não me lembro na televisão, talvez um filme, não sei bem. Depois fui apanhar uma laranja, passear um pouco, apanhar camélias caídas. Depois reentrei, trabalhei. O meu marido toda a tarde recebeu telefonemas. Parte da equipa está contagiada ou de quarentena. Tenta desencantar quem possa ir compor a equipa, telefona, recebe telefonemas. Um sufoco. Felizmente, a seguir jogou o seu sporting e, quando isso acontece, todos os problemas do mundo desaparecem. Eu fiz o jantar, depois voltei a falar com os meus ao telefone. E depois jantámos.
E assim o tempo vai passando.
E custa-me habituar a esta falta de ritmo.
Daqui a nada vou votar, perfumada, sem batom, com uma bic.
Espero que a abstenção não seja perigosamente alta, espero que o resultado seja claro e bom para a democracia.
____________________________________________________________
Pinturas de Noronha da Costa ao som de Rita Payés & Elisabeth Roma interpretando Melodia Sentimental. O excerto obviamente não tem nada a ver com o post mas esse era, de facto, o objectivo: é parte de Otherwise de Acidentes de Hélia Correia, livro do qual também é o poema H.H. 23/3/15 do qual extraí o título deste post que, espero eu, também não tenha nada a ver com nada.
____________________________________
Desejo-vos um feliz dia de domingo
Sem comentários:
Enviar um comentário