sexta-feira, novembro 20, 2020

Uma criatura em decomposição

 

Um colega meu, ao princípio, dizia que, quando eu tomava alguém de ponta, coitada dessa pessoa. Agora já não diz o mesmo porque, em relação às poucas pessoas a quem ele achava que eu não podia ver nem pintada, também ele está na mesma, acabou a dar-me razão.

Só para dar um exemplo. Havia um que eu dizia que era uma lesma traiçoeira e ele gozava, dizia que lá estava eu a ser mazinha. Uma vez, numa daquelas coisas maravilhosas que dá pelo nome de avaliação 360º, esse meu colega teve uma avaliação desgraçada pois um dos colegas que o tinha avaliado lhe tinha dado 1 a tudo numa escala de 1 a 5. As avaliações são anónimas mas a pontuação dele foi tão má que ele, coitado, fez tudo para perceber quem o tinha apunhalado pelas costas. Com espanto, descobriu que tinha sido a 'lesma traiçoeira', por sinal um que ele tinha por seu amigo. Quando antes ele ainda achava que eu é que embirrava com o outro, se eu dizia alguma coisa em seu desabono, ele passava o indicador sobre o pulso da outra mão e eu já sabia que ele estava a dizer-me que aquilo era para mim uma questão de pele, não racional. 

Essa dita lesma era beijoqueira. Mal me via, vinha direito a mim. Eu tentava evitar, fazendo um aceno de mão que era mais um adeusinho que um olazinho. Mas nada o demovia: 'Dê cá um beijinho'. Toda eu me encolhia. Tinha a boca sempre gelada o que me deixava na cara a sensação de estar babada. Tinha que me conter para não passar logo as costas da mão para limpar a baba. Por isso, a partir de certa altura passei a referir-me a ele por lesma babosa. o meu colega, volta e meia, quando via o outro, avisava-me logo: cuidado, vem aí a lesma babosa. E toda eu me encolhia, antecipando a horrível sensação de ficar com uma gosma fria colada à cara. No entanto, aqui entre nós, acho que não me babava, apenas tinha os lábios nojentamente gelados.

Outra vez, foi admitido um alemão para um cargo relevante. Toda a gente se derretia com a eficiência e o charme do dito cujo. Era, de facto, uma simpatia. Tratava-me pela inicial do meu nome, era divertido, dizia piadas com muita graça. Mas eu, vá lá saber-se porquê, achava que era um embuste. Na volta é aquele sexto sentido coisa que sempre irritou os meus colegas quadradamente racionais. Tudo o que o alemão dizia, e com que segurança o dizia, me soava a banha da cobra. Mas ele era um animal de palco, as suas apresentações punham o resto da malta a rir, a beber-lhe a prosa. Era convincente. Conseguia usar palavras dúbias. Quando, em privado, eu o confrontava com as suas mentiras, ele demonstrava-me que não tinha mentido, tinha apenas dito aquilo que nós queríamos ouvir. Eu passava-me. Ele dizia que havia ali pessoas que não lhe perdoariam se ele falasse verdade. E dizia-o como se falasse com o coração nas mãos. Era hábil. Fazia o que queria. Correu mundo, ficou nos melhores hotéis, viveu à grande e à francesa, tudo à conta. Às tantas, ocorreu-me que aquela formação dele parecia feita à medida para a função. O meu colega bonzinho dizia que lá estava eu de embirração, que não tinha motivo, que o alemão era topo de gama, presa de head hunter internacional, coisa fina, bife do lombo. E, a julgar pelas excelentes condições, devia mesmo ser bife do lombo. Resolvi ver os cursos daquela universidade. Não tinha nem nunca tinha tido aquele curso, coisa nenhuma. Tinha inventado um curso universitário. Contei ao meu colega. Disse que era melhor eu ficar calada, que quem acabaria mal vista seria eu. Fiquei. Tempo depois veio a descobrir-se que trabalhar não era com ele, as viagens eram mesmo só passeio e rica vida. Veio a saber-se também que a formação dele era outra, nada a ver. No seu último dia lá, veio ter comigo, despediu-se, e com ar malicioso, disse-me: vou trabalhar na minha área... E riu. Sabia que eu desconfiava. Era, na realidade, um oportunista e um tratante de primeira.

E esta conversa vem a despropósito do que aconteceu esta quinta-feira a uma execrável criatura. O meu colega bonzinho, se aqui estivesse, talvez agora passasse o dedo pelo pulso oposto a dizer-me que o problema não estava na execrável criatura mas na brotoeja que, volta e meia, brotava da minha pele. Mas não. Talvez haja quem, perante o estado de decomposição em que a fétida criatura se encontra, o desculpe, pensando que já foi uma pessoa em condições. Pois. Mas não vem ao caso. Não é disso que estou a falar. Estou a falar do presente. Da falta de moral, da falta de escrúpulos, da falta de tino, do cliente que representa e da forma como o representa. Fétido. 

Pois bem. Numa daquelas sessões macacas em que tudo parece uma comédia de quinta categoria, mais concretamente uma conferência de imprensa em que defende que as eleições foram uma fraude, uma fraude na qual participaram a China, Cuba e Venezuela, acusação da qual, como sempre, não apresentou qualquer evidência, Rudy Giuliani, advogado de Donald Trump, desatou a suar a bom suar, a transpiração cobrindo-lhe a testa, a cara. Até aqui, nada de mais. O que teve de extraordinário é que a tinta do cabelo começou a escorrer-lhe pela cara. De cada lado, um escuro fio escorrente, uma coisa meio estranha. Claro que era tinta do cabelo. Mas parecia que lhe estava a sair um sangue negro, prutefacto, neurónios dissolvidos em sangue estragado.

Depois daquela cena ordinária, a mão dentro das calças, deitado numa cama de hotel e apanhado em flagrante pelo Borat, agora isto. Há qualquer coisa de fim de linha nesta desonrosa derrota de Trump, a avançar para os tribunais com queixas absurdas e a ser acompanhado por um advogado decrépito, ordinário e a escorrer tinta escura pela cara 'abaixo'. Chega a ser triste. O meu colega bonzinho estaria a dizer: embirra com ele, não lhe perdoa nada. Mas não é uma questão de embirrar, é que isto é mesmo deprimente. Mau demais para ser verdade. O advogado do presidente dos EUA ainda em funções não pode ser isto.

Sweaty Rudy Giuliani suffers hair malfunction in latest bizarre press conference

Rudy Giuliani appears to sweat hair dye as he makes election claims without evidence


Rudy Giuliani borat 2 scene everyone needs to see


Como é que tudo isto vai acabar?

Mal, só pode. 

Já vi chamar a atenção para esta cena do maravilho filme Morte em Veneza mas, embora a situação da tinta a escorrer seja a mesma, a envolvência é outra. E até custa associar a ideia de um filme tão belo a um espectáculo tão deprimente. Mas, enfim, de facto, a ambos a tinta do cabelo escolhe-lhes pela cara parecendo sangue negro a sair-lhes da cabeça. Não é bonito de ver.


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Voltando a Giuliani, tal como a Trump, seria bom que poupassem ao mundo a indignidade do seu comportamento, das suas atitudes. É que é preciso saber retirar-se, preservar a dignidade.


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E que seja um dia feliz!

3 comentários:

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Isto de ter olho para topar os outros requer boa capacidade de fazer orelhas mocas a quem vê com as lentes da superficialidade e confunde uma qualquer sobremesa instantânea com doçaria conventual.

Um rico dia.

Lucy disse...

...então mas a empresa tem um cargo que permite levá.la direita?! O "bom" alemão aproveitou

Estevão disse...

E o Giuliani que não conhece o Olex ..

https://www.youtube.com/watch?v=Ii9IFUtGLAA