segunda-feira, junho 03, 2019

Street Photo & Co.




Quem por aqi me acompanha sabe que sou dada a prazeres. E se escrever é um deles e não é pequeno, fotografar é outro e não é menor. Andar pelas ruas a fotografar é daqueles apelos a que, desde há muito, não resisto.

Por isso, em tempos, quando já tinha ganho o gostinho por este blog, resolvi ter um só para fotografias. Foi o meu marido que lhe deu o nome: Street Photo & Co. Gostei muito do nome.

Era coisa que fazia com gosto e e o meu marido, que geralmente acha alguma piada às minhas fotografias mas que, obviamente, tantas elas são que não tem pachorra para as ver, gostava de ver as que eu publicava, uma ou duas por dia.


E se tudo o que se me atravessa à frente é bom para ser fotografado, é por fotografar pessoas que mais me sinto atraída. Não imaginam quanto. O intuir que vai haver um movimento especial, o adivinhar quando é que a pessoa vai fazer o gesto pelo qual espero, o apanhar a melhor posição, a melhor exposição, tudo sem que a pessoa saiba, o agir furtivamente... isso é para mim um prazer. E não é que agir pela calada, em geral, seja a minha praia mas é que, se a pessoa que observo sabe que está alguém à espera do momento para a fotografar, perderá a naturalidade, desfigurará a espontaneidade do instante. E a magia reside, justamente, na captura do momento na sua mais pura essência.

Portanto, o acto de fotografar alguém na rua é sempre um acto de tocaia e, claro, comporta os seus riscos.


Uma vez, vi do outro lado da rua uns calmeirões com um físico extraordinário, uns verdadeiros apolos, a carregar um grande sofá. Nem lhes vi as caras pois iam encobertas pelo sofá que transportavam ao alto, ao ombro, creio. Fotografei-os, claro. Um bocado depois, eis que sou interpelada por um gigante, mulato, brasileiro. Ameaçador: 'Qu'é que cê tava fotografando? Dá isso pr'a cá!'. Furioso, tom agressivo. Nunca tal me tinha acontecido apesar do meu marido andar sempre a prevenir-me: 'Um dia ainda te tramas'. E eu digo que aí que, se alguém me disser alguma coisa, eu direi para se entenderem com ele, que é o meu agente, o meu bodygard e o meu lawyer. Pois nessa vez tenho ideia que ele resolveu armar-se nisso tudo ao mesmo tempo mas que eu, que temo os seus rompantes em situações destas, atalhei e disse que, se isso era questão, apagava a fotografia. E apaguei e o apolo lá se foi à vida dele. O meu marido disse que deviam ser trabalhadores ilegais, que não quereriam ser vistos, muito menos arriscarem aparecer nalguma rede social. Não sei. Mas a verdade é que nesse dia me assustei.


Outra vez foi um que me assustou muito, um homem muito magro, com um rosto marcado. Provavelmente, vendo-me a fotografar pessoas, veio ter comigo, colocou-se à minha frente, intimidante, uma voz grave, cava, e ordenou: 'Fotografe. Fotografe para ver o que é um homem desempregado, um homem sozinho'.  Assustei-me mesmo. Quis desviar-me mas ele não saíu da minha frente: 'Fotografe'. E eu fotografei. Ficou uma fotografia impressionante, devo dizê-lo.

Mas, apesar de tudo, sempre continuei a fotografar. Contudo, tirei do ar o Street Photo & Co. pois apesar de não ser ilegal fotografar e divulgar fotografias de pessoas na rua, nunca consegui saber exactamente os contornos legais da coisa. Claro que, se alguém se visse no blog e me escrevesse a dizer para retirar a fotografia, imediatamente o faria. Mas, seja como for, achei preferível não me arriscar. Claro que se ninguém fotografar ou filmar o que se passa nas ruas não haveria testemunhos deixados ao futuro mas, enfim, pelo menos por enquanto, tento não publicar pessoas de frente ou em primeiro plano e frequentemente opto por fotografar graffittis, árvores, montras, coisas.

[E pode ser que um dia, qualquer dia, volte a pôr no ar o meu bloguesinho de fotografias de que eu gostava tanto]


No sábado ao fim do dia, a modos que exautos, resolvemos dedicar o domingo ao descanso. Absoluto descanso, prometemo-nos um ao outro. Descontando as tarefas domésticas, claro, porque o domingo tem sempre obrigações a que não dá para escapar. Pensei dormir até às onze, no mínimo, e pedi que, sob pretexto algum, me acordasse. Mas a verdade é que acordei cedo e, quando me levantei, já ele estava na sala a ler. Portanto, estando o dia a começar e já ambos bem acordados, decidimos ir passear a pé. Eu estava com vontade de ir conhecer um sítio e ele não tinha nada contra e, de resto, é daqueles sítios onde sempre iremos de bom grado, agora e sempre. É daqueles lugares de Lisboa a que a nossa história está associada e isso, parecendo que não, parece que nos faz ainda gostar mais de por lá cirandar.

E era disso que hoje teria querido falar mas, entre o post para a Isabel e a minha vontade, meteu-se este post em que me apeteceu mostrar alguns graffittis, quer os dois primeiros feitos no outro dia no maravilhoso Ginjal quer os deste domingo, na zona do belo Príncipe Real.

E se não quero publicar fotografias de pesssoas (e se as fotografei, espantosas...) pois, então, que possa mostrar paredes. E se as há também com lindezas boas para serem mostradas.

Devo até dizer que, quando fotografei a que mostro abaixo, me ocorreu pregar uma partida à Luísa e enviar-lhe para o Pinta-Amores -- mas se calhar ela é atilada e não achava graça nenhuma à minha maluqueira e, portanto, cortei-me. Portanto, a banana maliciosa, aparentemente dada a amores pouco platónicos, fica aqui, que aqui estará bem, que já se sabe que este meu Um Jeito Manso não é lugar que se recomende.


E a ver se amanhã mostro o tal lugar que fui conhecer, um lugar com que sonhei, julgando um sonho impossível, e que, afinal, hoje encontrei, materializado, fresco, sóbrio, bem cheiroso, amplo, pleno de tentações: em suma, extraordinário.

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A todos desejo uma bela semana a começar já nesta segunda-feira.
Saúde, sorte, alegria, amor e cacau para os gastos.

6 comentários:

Luis disse...

A letra da lei diz:
Não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente.

Na prática quer dizer que podes tirar uma foto ao publico de um concerto se for uma foto geral de toda a gente.
Se fizeres um grande plano de uma ou duas pessoas, legalmente tens que pedir autorização, porque deixam de estar enquadradas no tal evento publico.

Um Jeito Manso disse...

Olá Luís,

Fico um pouco frustrada e, ao mesmo tempo, na dúvida: temos alguns fotógrafos que fazem fotografia de rua e, com isso, guardam o retrato das diferentes épocas. Gageiro, Cabrita. Por exemplo. Pediram autorização às pessoas? E os grandes do mundo, Cartier-Bresson, Doisneau ou, mais recentemente, Sebastião Salgado, pedem autorização? E pedem quando? Antes? Ou depois?

A sério que ainda não interiorizei bem o que é ou não permitido ou o que é ou não o legítimo testemunho de uma época.

Vivian Maier: tudo o que fez, e foi extraordinário, hoje seria tudo interdito? Por acaso ela não divulgou nada em vida. Mas, se quisesse e fosse nos dias de hoje, seria proibida?

Por acaso, gostava de ver isto discutido para ver se percebia bem quais as fronteiras.

E obrigada, Luís, pela explicação.

E uma boa terça-feira.

Anónimo disse...

Ninguém sabe bem, UJM.

Em todo o caso, se tira o retrato de pessoa identificável deve pedir o consentimento, prévio ou posterior. Se a pessoa não é identificável ou se está enquadrada num evento público então não precisa de consentimento. Isto acho que é o básico dos básicos.

Depois há a questão das finalidades artísticas, a qual nos conduz a um campo feito de tortuosos trilhos. O que é uma obra de arte? Será uma fotografia tirada por um artista? Será este o entendimento dominante. Mas quem é o artista? Aquele que assim é reconhecido pelo público? Pela imprensa? Pelos pares? Simplesmente aquele que realiza a obra com finalidade artística? E isso significa o quê? A vontade de criar algo mais do que a simples captação da realidade e com um fim que vai além da prática de uma atividade de lazer? Há quem diga que sim. Um sem-fim de problemas... Incluindo em sede de tributação a nível europeu: veja-se o recente caso Regards Photographique (C-145/18), em que o TJUE entendeu que o Fisco francês havia tentado "capturar, em termos administrativos, o incapturável" por ter determinado que só eram obras de arte as "fotografias que testemunhem uma intenção criativa manifesta por parte do seu autor", assim excluindo as fotografias de casamento. Note-se que, por estarmos perante pequenas tiragens, a distribuir por um círculo especificado de pessoas, as fotografias de casamento não seriam consideradas "fotografias massificadas", as quais ninguém debate que se encontrem excluídas do conceito de obra de arte para efeitos de importação.

Enfim, como diria o Justice Potter Stewart do Supreme Court dos EUA, "I’ll know it when I see it"(Jacobellis vs. Ohio, 1964).

Experimente tirar um retrato e escrever por baixo: "Isto não é um retrato." Remédio santo.

Abraço,
JV

Um Jeito Manso disse...

Olá JV,

As muitas lentes pelas quais se podem ver as coisas. Ler as palavras de uma mulher inteligente é sempre um gosto. E o tema é aliciante, pelo menos para mim. (Arte, comunicação, registo histórico, direitos e deveres associados, etc)

E essa de 'isto não é um retrato' é muito boa. É caminho que vou explorar.

Thanks, Lady of Laws&Arts

Um dia bom para si e um abraço.

luisa disse...

Só hoje vi este post, UJM, e aqui estou eu rindo com a brincadeira. É caso para dizer que isto é muita fruta para o pinta-amores... :))

Abraço.

Um Jeito Manso disse...

Olá Luísa,

Uff... ainda bem que não se zangou. Temia que tivesse visto e tivesse achado que eu não era mesmo boa da cabeça e que mais valia nem dar troco...

Essa de a bananinha ser muita fruta para o seu pinta-amores é boa!

A ver se um dia destes descubro um graffiti menos desnudado e mais platónico para poder oferecer para o seu fantástico repositório.

Abraço, Luísa.