domingo, setembro 30, 2018

Húbris
-- A casa da Santa Joana, o segredo de justiça, o coronel encenador e outras particularidades das mais finas instituições da Tugolândia


hú·bris  (grego húbris,- eos, excesso, ardor excessivo, impetuosidade, violência, ultraje)  -- 
Orgulho excessivo., arrogância, insolência, soberba

Húbris. Com a costumeira ironia assim foi denominado o caso do pretenso roubo de armas de Tancos.

Só que, espanto dos espantos, o primeiro acto desta farsa -- este de que agora se fala e que já colocou em prisão preventiva o Coronel Luís Vieira, Director da Polícia Judiciária Militar, e mais uns quantos -- não se refere ao roubo de armas mas ao seu aparecimento. Ninguém, neste caso, pode queixar-se de déjà-vu.

E, uma vez mais, apesar de estarmos no estertor do reinado da Santa Mana -- Joana de seu nome prório e Marques Vidal de nome da famíla -- mantêm-se bem vivos os traços dominantes que têm marcado os últimos anos da Justiça em Portugal: os envolvidos antes de serem culpados já o são. Sabemos nomes, percursos profissionais, onde nasceram, como são. Quando chamados a depor, sabemos o que dizem pois, acto contínuo, já os jornais e televisões o anunciam: confessou ter encenado, confessou arrependimento, confessou isto, aquilo e o outro. Mais: os jornais gabam-se, referindo o processo a que tiveram acesso.
Segredo de Justiça...? Está bem, está, isso também já era. Os secretos meandros onde se investiga parecem ser, afinal, os promíscuos quartos da Casa da Mana Joana, esse aparente albergue espanhol onde, pelos vistos, magistrados e demais pessoal convivem em feliz concubinato com jornalistas, 'fontes' e outro tipo de gente 'geralmente bem informada'.
E, segredo de justiça violado, sem delongas, logo nos aparece o usual enxame de avençados da pedrada, pagos a peso de outro para irem para a praça pública arrancar pedras da calçada e arremessá-las contra os que, justa ou injustamente, se vêem a contas com a justiça. É um festim. Políticos, personalidades públicas de toda e espécie e feitio, rogeiros, jornalistas, coronéis, sargentos, no activo ou na reserva, tudo minha gente salta para o palco e pimbas, pedrada que até ferve na cabeça dos suspeitos ou arguidos que, de imediato, vêem o seu bom nome enlameado talvez para toda a vida, 

Dito isto.

Ter milhares de pessoas a entreterem o tempo fazendo exercício e gerindo-se a si próprios para um just in case, facilmente pode degenerar num facilitismo e numa impune permissividade. Parece mais ou menos óbvio. Claro que tem que haver Forças Armadas e claro que as nossas, porque, felizmente, vivemos tempos de paz cá para as nossas bandas, têm tido meritórias acções na defesa das populações noutras mais perigosas paragens. Mas, tirando esses louváveis casos, o dia a dia daquela gente é, mais ou menos, o que acima disse. Dão aulas, fazem instrução, fazem treinos, fazem provas reais, outros fazem a comida, outras tratam das compras, outros das infraestruturas, outros dão formação. Não o digo com ironia ou buscando o efeito fácil. Um país deve ter forças armadas bem preparadas e isso está fora de questão. O que pode ser equacionado é a sua dimensão e a sua actividade.

Seja como for, face à natureza das suas funções em tempo de paz, há que ter em atenção que, subjacente à actividade diária, há um expectável dolce fare niente que pode conduzir a uma ociosidade e, paredes meias, à impunidade. Para prevenir actos indevidos, haverá que auditar de perto os comportamentos.

Como já referi no outro dia, o sentimento um pouco generalizado de que, por aquelas bandas, há muito quem 'coma por debaixo da mesa', assenta no conhecimento um pouco disseminado por entre os que lidam, enquanto fornecedores, com essa realidade. Quantas vezes se ouvia dizer: comem todos, é de alto abaixo. E isto referia-se aos que compravam comida, material de economato e fardamento, equipamentos electrónicos, equipamentos militares e equipamentos e serviços de toda a natureza.

E, de vez quando, lá vem o mesmo: as armas desaparecem dali (como das esquadras, como de camionetas em andamento) e nunca se dá por ela ou, se se dá, rapidamente o caso é esquecido. Desaparecem metralhadoras, pistolas, granadas, munições. Desaparecem sem deixar rasto. Mesmo que sejam quantidades que não podem ser levadas num bolso. 

Mas desta vez a coisa teve aparato, a lista de material roubado era digna de filme cómico, as notícias eram estapafúrdias. Falava-se num buraco na rede, falava-se em camião TIR. O Expresso, o grande badalo das fake news, explicou como tinha sido, tudo descrito ao pormenor. Balelas. Como tantas outras vezes com o Expresso, tudo balelas,

Contudo, desde o início, Vasco Lourenço  tinha uma outra teoria e não se eximiu a explicá-la: quem, indo sair de funções, tinha que deixar o inventário ao próximo, deve ter ficado perante uma inequação difícil de explicar -- as armas contabilizadas eram muito superiores às armas, de facto, existentes -- e, para se limpar,  provavelmente resolveu inventar que tinha havido um roubo.

Como o volume era de tal monta e como a repercussão mediática foi grande -- com o Marcelo, honra lhe seja feita, a andar em cima -- a investigação teve que ganhar forma. Só que a investigação provavelmente não ia mostrar coisa boa. Então, como as notícias divulgam, alguém teve a ideia brilhante de repescar as armas em falta (ou outras  -- que, pelos vistos, o ladrão ou receptador não tinha lá grande gestão de stocks) fazê-las levar para um pinhal e dizer que...  upsss, milagre, apareceram... Para transportar tanta caixa, era preciso meios de transporte e pronto, lá arregimentaram uns artistas, por sinal uns GNRs de Loulé e, por sinal, amigos do ladrão, que fizeram o favor  de as transportar e depois dizer que as tinham encontrado. Claro que volto a não perceber a inequação: tanto caixote que só podia caber num camião TIR cabe agora numa carrinha mercedes...? Não se percebe. Mas, na volta, também não é para perceber. O que parece é que, no meio de tantoa brincalhotice, levaram caixas a mais, provavelmente de subtrações anteriores.  E tudo articulado com a PJM que achou que esta era a oportunidade para brilhar, não deixando que fossem outros a descobrir a farsa ou, pior, a meter o bedelho e ainda descobrir outras ligações perigosas.

Falta de inteligência, parolice ou, lá está, excesso de confiança, húbris. No meio desta artolice, a rivalidade entre gangs: gnr, judiciária militar, judiciária civil, polícia. Tudo gente armada que se acha importante e dona do poder.

A ser isto verdade. Não nos esqueçamos: a ser isto verdade.

Um director de uma polícia judiciária preso é obra. Os jornais a dizerem que ele já confessou a encenação, a ser verdade, é obra, Mas estarmos a saber de tudo isto, sem contraditório, sem sabermos a versão deles, também é obra.

Portanto, por toda a esta rocambolesca macacada, acho que é mesmo caso para perguntarmos: quem nos guarda dos Guardas? Quem nos protege da Justiça?

2 comentários:

Janita disse...

Pasmada fico eu com a 'obra' que representa a UJM dar conta de tanta obra, que vai acontecendo, diariamente, por este pequenino rectângulo plantado à beira-mar. E, depois, no final de cada dia, vir dar-nos conta de tudo, tintim por tintim.
Pela parte que me toca, só tenho a agradecer-lhe o empenho com que se empenha nessa meritória tarefa. Nem preciso ouvir nem ler notícias. Venho aqui e fico a saber tudinho. Ainda por cima tudo muito bem escrito e descrito com humor.
Não admira que adormeça, de exaustão.

Obrigada e um forte abraço! :)

Um Jeito Manso disse...

Olá Janita, bom dia,

Sabe aquilo de que quem corre por gosta não cansa...? É que eu é que, pelo gosto de fazer as coisas à minha maneira, também me perco mais do que a conta. Tenho a mania de 'enfeitar' os textos com imagens e levo imenso tempo a seleccionar as que ali me parecem bem, gosto de ter uma música que venha a propósito ou, simplesmente, que seja boa de ouvir enquanto se lê o que escrevi e, já vê, também perco tempo ... e estar nisto lá para a uma ou mais da manhã já não é outra coisa senão pura maluquice.

Mas, enfim, os malucos não têm culpa de serem malucos, não é?

:)

Abraço, Janita!

E uma boa semana para si.