terça-feira, abril 26, 2016

O granel do Portinho da Arrábida e umas dicas para a Drª Maria das Dores Meira
- a bem do usufruto de um lugar muito belo


Agora que já falei da reportagem da TVI sobre as Clandestinas e recordei algumas memórias pessoais de antes do 25 de Abril, memórias já muito esbatidas, estou a ver uma reportagem na RTP sobre o Zeca Afonso. Durante um ano, em circunstâncias que agora não vêm ao caso, via-o com frequência. Ele, adulto, frequentava uma casa que eu, miúda, também frequentava, embora, obviamente, por motivos diferentes. Ele entrava, espreitava, fazia sinal a uma das pessoas de que ficava à espera noutra sala.

Também conhecia a filha dele, era mais velha que eu, mas conhecia mal, falava pouco com ela. Aliás acho que, se falava, não falava sobre o pai. Acho que percebíamos que era melhor não querermos saber muito.

Agora estou a ouvi-lo a cantar. Que música extraordinária a dele. Devo ter todos os seus discos. O meu marido, que tem uma memória anormal, deve saber de cor todas as suas canções. Tantas vezes as ouvi, tantas, tantas, mas cabeça de alho-chocho, nunca decoro as letras.

Vou escolher uma para aqui ouvir enquanto escrevo sobre um passeio que dei por terras que o Zeca Afonso também conheceu bem. E Sebastião da Gama também, ainda melhor.



Se tiver tempo, conto sobre todo o passeio mas, para já, vou falar de um aspecto muito pouco positivo.

Fui agora à procura na internet e, se bem leio, entre 1 de Julho e 31 de Agosto está interdito o trânsito entre o Edifício dos Pilotos e o Portinho da Arrábida. Presumo que seja uma tentativa de evitar o caos que por ali tende a haver. Contudo, se me permitem, não creio que a solução seja satisfatória.

Hoje, ao passar por lá e ao ver um semáforo cá em cima, naquela estrada, disse: 'Olha, ainda bem que finalmente resolveram dar solução a isto. Ainda me lembro dos suplícios que por aqui passei quando era pequena'.

Não sabia o que nos esperava.


Os meus pais e tios e amigos sempre adoraram a Arrábida. Aliás, já o contei, as cinzas de dois deles foram recentemente espalhadas por lá. A Arrábida sempre foi, na minha família, lugar de afeição, de passeio e de lazer.

Quando eu era pequena e a ideia era ir para a praia, o meu pai, que sempre foi muito disciplinado, para evitar barafundas de carros e para conseguir lugar de estacionamento, de preferência à sombra, queria sair de casa muito cedo. A esta distância não me lembro a que horas seria, provavelmente antes das oito. Eu odiava. Desde pequena que sou noctívaga. Mesmo com dez, onze, doze anos, nas férias então é que eu adormecia tardíssimo, ficava a ler até tarde, até de madrugada. Levantar-me tão cedo para ir para a praia parecia-me uma violência e um disparate. Mas nessa altura tinha lá eu voto na matéria? Umas vezes íamos para a Figueirinha, outras para Galapos, Galapinhos, Praia dos Coelhos ou, a preferida, o Portinho. Havia lá um restaurante mesmo em cima da água onde se comia um belo salmonete ou robalo ou sargo. Mais tarde, já eu casada, haveria um barco a motor que ficava ancorado no Portinho e aí os problemas eram de outra natureza (penso que já o contei: o barco era usado pelos irmãos e primos que gostavam de fazer cavalinhos sobre as ondas, fazer piões, ir a abrir entre a Arrábida e a Tróia e eu tinha um medo que não se imagina, temia que fossemos borda fora ou que o barco se virasse e nos passasse por cima; quando resolveram desfazer-se da porcaria do barco respirei de alívio).


Mas volto a quando ia com os meus pais para o Portinho da Arrábida. Pôr lá o carro era um calvário. Então, só para lá íamos durante a semana e cedíssimo. Mesmo assim, volta e meia, víamo-nos envolvidos num perfeito calvário. Íamos a descer e vinha um carro a subir, por vezes até um autocarro. Então não cabiam os dois. Portanto, a única solução era o meu pai ir de marcha atrás por ali acima, quase roçando nas paredes, quase roçando nos outros. A minha mãe gemia, aflita, arfava - sempre foi muito dada a aflições nestes apertos. O meu pai, que já estava enervado com a situação, provavelmente também aflito a ver que ia estragar o carro ou ficar para ali entalado, ainda mais enervado ficava com os gemidos e ai-ais da minha mãe -- mandava-a calar, mas ela não consegui conter-se. Eu ia no banco de trás, também aflita, a ver que a coisa ia correr mal, e o meu pai já furioso com os que faziam coisas pouco inteligentes ou sem respeitarem os outros, com a minha mãe que não se calava, só com gemidos, comigo que não me tinha despachado a horas, furioso por, uma vez mais, se ver metido naqueles apertos.


Por fim, a muito custo, a coisa lá se desensarilhava e lá deixávamos o carro cá muito para cima, ao pé da Estalagem, e eles já zangados um com o outro, a minha mãe a dizer que, para aquilo, mais valia não se ir à praia, o meu pai a dizer que, se fizéssemos como ele dizia, não acontecia aquilo. Provavelmente queria ir para a praia às sete da manhã. Mas quando chegávamos à praia esqueciamo-nos de tudo, aproveitávamos aquela água tão cristalina, aquelas cores tão limpas, a areia tão intacta, tudo tão bom. O que eu nadava, senhores, o que eu nadava, que liberdade, que frescura tão boa.


E, então, dizia eu hoje, que felizmente, com aquilo dos semáforos, já não havia o risco de irmos a descer e virem outros a subir. Ah pois não.

O semáforo abriu e lá fomos, descontraidamente. Quando chegámos quase cá abaixo, para nossa estupefacção, esperava-nos o granel do costume. Já não conseguíamos passar para baixo e, para cima, vinham outros. Tudo encravado. Os carros quase encostados, sem espaço para manobras, sem escapatória. O horror de antes, de volta.

O meu marido já enervado e, claro, 'porque é que ainda vou na tua conversa? isto de, num dia feriado, com bom tempo, te vires enfiar no Portinho...!' e eu, 'vieste porque quiseste, se não querias, porque é que vieste?'. Ou seja, a deitarmos cá para fora os nervos que uma situação destas desencadeia.

Claro que as fotografias não têm nada a ver com o momento aqui relatado porque, durante aquele período de aflição nem me ocorreu tirar fotografias


Depois, num exercício de escapismo, deteve-se quase encostado a um muro, pareceu-me ver o símbolo de lugar para deficientes, nem sei bem, sei que era um lugar curto e estava lá uma mota e o carro a apitar por todos os lados, os sensores histéricos com tanta proximidade.

E nisto deu em querer fazer ali a inversão para se enfiar na fila que tentava subir de volta. Eu quase implorava que não o fizesse, que não cabia, que era impossível, que ia dar cabo do carro, que ia riscar os outros carros, que nos íamos meter em trabalhos e ele furioso, que me calasse, se queria ficar ali e eu furiosa 'mas quê? até ao fim dos tempos?' e ele, sem sentido de humor, a preparar-se para encolher o carro e atravessar-se no meio daquela confusão.

Estão a ver bem: é mesmo um cão


E então um senhor simpático que ali estava resolveu solidarizar-se com ele, e começou a ajudar a manobra. Tivemos que recolher os retrovisores e eu em transe, pára, pára, não cabes, ai, pára (estava, claro, a referir-me ao carro e à manobra) e os outros carros, provavelmente com medo, a encolherem-se também, a fazerem a marcha atrás possível, não mais de 10 ou 15 cm, e o senhor simpático a indicar 'chega para aqui', 'chega para acolá', 'um jeitinho para ali', 'agora para lá' e os outros carros também um jeitinho para aqui e outro para lá e eu numa aflição, pára, vais bater, pára. Mas ele parecia possuído, não me deu ouvidos, se pudesse içava as asas do carro e saía dali a voar, tal a ânsia em que parecia estar para se ver livre daquilo. Depois uma senhora que estava a pé pôs-se também a ajudar, daqui pode, uns centímetros, e o senhor, daqui também, uns centímetros.

Até que passou sem bater. Até senti que tinha ganho o dia. Caraças.

E depois lá fomos, pára-arranca, pára-arranca, por ali acima, por aquela estrada íngreme e estreita. E lugar para estacionar, lá em cima, viste-o. E também já só queríamos ver-nos livres daquele castigo.


Claro que com isto já passava das duas da tarde, já com fome. Acabámos por comer um belo peixinho grelhado em Setúbal mas, bolas, que coisa aquilo lá no Portinho, nunca mais, caraças.

E vínhamos a pensar como é possível que, décadas depois, os problemas nos acessos ao Portinho subsistam daquela maneira. Penso que a esta hora, os carros que iam para baixo, à nossa frente, ainda devem estar para lá, ensarilhados uns nos outros, um mar de carros caoticamente encostados uns aos outros, uns a quererem entrar, outros a quererem sair e sem espaço para se mexerem.

Entretanto, liguei à minha mãe para saber se estavam bem e relatei-lhe a ocorrência ao que ela respondeu: 'É parque natural, não se pode mexer em nada'.

Balelas. Um Parque Natural é para ser usufruído com qualidade, não para ser vivido desta forma agranelada.


O meu marido então sugeriu que deveria haver um detector/contador de viaturas junto aos semáforos. Sabendo-se que apenas cabe lá em baixo um determinado número de carros, apenas poderia descer o número de carros equivalente aos que de lá saíssem depois do parque estar lotado.

Parece-me uma solução simples e eficaz.

Mas acho que, para além disso, faz sentido que se faça, cá em cima, um grande parque de estacionamento, com boas condições, espaçoso (e com casas de banho). Claro que teria que haver alguma intervenção no local mas e daí?. De resto, os arquitectos servem para isso mesmo, para encontrar soluções engenhosas e que respeitem as limitações. E, sobretudo, penso que mal ao Parque Natural da Arrábida faz aquele consumo de combustível, aquele granel de carros, aquela confusão, aquela falta de condições.

Por isso, na esperança de que isto chegue aos ouvidos da Presidente da Câmara de Setúbal, aqui lhe deixo estas duas dicas (a do detector/contador de viaturas e a do parque de estacionamento). A Arrábida merece ser melhor conhecida, melhor vivida e, para o conseguir, não deveremos ter que sofrer agruras e um ataque de nervos nem arriscarmo-nos a sair de lá com o carro todo espatifado.


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As fotografias foram feitas esta segunda-feira e tentam mostrar a beleza superlativa da Arrábida (as praias incluindo a do Portinho, a Pedra da Anicha, o Convento, a vista da Tróia, o mar azul a perder de vista)

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E caso tenham agora aterrado aqui e ainda não tenham lido o que escrevi sobre as Mulheres Clandestinas, queiram, por favor, aceitar o meu convite e descer até lá: uma bela reportagem da TVI e uma boa entrevista da Judite Sousa.

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2 comentários:

P. disse...

Partilho consigo o mesmo gosto pela beleza da Arrábida e sobretudo o Portinho e das praias que refere. Aquilo é bastante idílico, sem dúvida. Uma das coisas que mais me atrai naquelas praias é a ausência, ou quase, de ondas, visto o que eu gosto, sobretudo, na praia é de nadar. É nisso que retiro o principal prazer de ir a uma praia. Daí, evitar praias com ondas. Como não me dou bem com estas águas frias em quase toda a nossa costa, a única forma de gozar uma ida a uma praia é a de poder nadar. Deste modo, não havendo ondas e o mar for calmo, lá vou para dentro de água. E ali fico. Gosto particularmente de nadar mariposa e “crawl”. Ora, tal só é possível, sem ter de engolir água salgada, com um mar sereno, livre de ondas. Já do ponto de vista paisagístico, gosto bastante de ver e ouvir as ondas e mesmo de ver um mar revolto, como tantas vezes sucede no Guincho, por exemplo. Mas, uma coisa é ver e apreciar o mar no seu vigor e outra gozar uma ida à praia, como eu gosto. Fui à Arrábida inúmeras vezes, embora hoje menos, por ser distante de onde resido, de ter de atravessar a Ponte 25 de Abril (um sarilho de trânsito, que detesto) e por causa da tal dificuldade para estacionar. Por mim, na praia, depois de uns dois ou três banhos, o tempo de praia acabou e vou-me embora. Detesto ficar por ali sentado na areia e menos ainda deitado. Só mesmo para fazer tempo para novo banho. Mas, quando lá vou, acabo também por comer um peixinho grelhado (e se for um salmonete, pelo-me!).
As suas fotos, uma vez mais, são de encantar!
Também ouvi esse programa sobre o Zeca Afonso de que tenho igualmente uns tantos discos dele. Tenho uma enorme admiração pelas canções e música dele. E dele como pessoa! Um grande senhor da Música Portuguesa e como activista político.
P.Rufino

Um Jeito Manso disse...

Olá P. Rufino,

Nem tão cedo volto a arriscar-me a ir ao Portinho. Aliás, mesmo que quisesse, o meu marido ia recusar-se. Não imagina o caos que ali estava armado. Mas aquilo é tão bonito...

Os meus pais sabiam de uns caminhos pelo meio da serra para podermos ir para a praia sem termos que ir pelo acesso rodoviário ao Portinho mas eu já não me lembro.

É uma pena que não se arranje maneira de tornar acessível um lugar tão bonito.

Muito nadei eu na Arrábida, muito, muito. Para nadar não há como o mar chão. Mas, para ver, também prefiro o mar revolto.

Temos um paí smuito bonito!


PS: Vi hoje a neta de Salgueiro Maia e também a filha que vive no exterior. Ao fim de tantos anos, Salgueira Maio é respeitado pelos poderes políticos e congrega a atenção dos jornalistas. Já não era sem tempo.

Uma boa quarta-feira, P.Rufino.