Música, por favor
Erik Satie -Trois Gymnopédies
Ouve-se uma música suave, quase intangível de tão suave.
O quarto é amplo, a janela vai até ao chão, abre para uma varanda de onde se vê o mar ao longe; mais perto, grandes árvores de um verde escuro, talvez cedros.
Dos lados da grande janela, dois pesados cortinados num estampado abstracto e harmonioso que varia entre o cinza, o azul. Numa das paredes, na que está pintada num antracite brilhante, um grande espelho ao alto em talha dourada, vai quase até ao chão, enorme, belíssimo. Na outra parede, pintada de um cinzento quase branco tal como as outras, uma grande consola, um busto negro, um grande espelho (mais um). E a luz entra naquele quarto magnífico e reflecte-se nos grandes espelhos e o ar fresco das árvores e do mar ao longe entra, também, e mistura-se com os cheiros florais que vêm dos roupeiros, da roupa de cama.
Numa das paredes não há nada a não ser um quadro, inesperado ali.
Bela Silva - A Terra dos Beijos |
Os tons e os motivos da pintura introduzem ali uma alegria e uma modernidade inesperadas. Quem habita este espaço?
O vestido é de tecido pesado e brilha em verde e azul, escamas esmeralda, nuances de um tom de mar profundo e o vestido tomba ao longo do corpo, cai junto ao chão. Os brincos têm uma esmeralda e realçam a profundidade da cor dos olhos. O vestido não tem costas nem mangas e, no pulso, descai uma pulseira pesada, ouro e esmeraldas. Mais nenhuma jóia, seria demais.
O espelho mostra uma mulher que se olha de lado, de frente, de costas. Ajeita o cabelo que desce quase até aos ombros, apanha-o ao de leve, avalia a melhor forma de o reter, e vigia, no espelho a imagem da mulher que a olha. Depois, não contente, solta-o de novo, despenteia-se, melhor assim, enfia os dedos no cabelo, agita-o, alisa-o ao de leve.
Calça os sapatos. Altos, bem altos, verdes, escuros, um veludo subtil e umas leves pedras azuis em volta. Com um ligeiro movimento da perna afasta ligeiramente o vestido, quer que o sapato apenas espreite, está bem, dá uns passos, olha-se de lado, de costas, ajeita o cabelo, ensaia o andar. Voluptuosa. Talvez demais.
Anda de novo, mais discreta, olha agora de lado, um olhar discreto. Avança para o espelho, meneia as ancas mas, apenas, ao de leve. O olhar basta, não é necessário que as ancas introduzam distracção. Mas depois pensa melhor e decide que sim, o andar será lento, as ancas marcarão o ritmo, uma gata andando com cuidada precisão.
Chega-se ao espelho. Passa uma sombra escura nas pálpebras, depois uma sombra clara junto à sobrancelha, depois o eye liner, depois as pestanas tornam-se mais espessas, e o olhar ganha mistério, mais mistério. A seguir olha a boca. Pega num baton, hesita na cor, talvez um rosa quente, talvez uma cor de morango brilhante, olha o baton, olha, no espelho, a boca, avalia, hesita, opta pelo morango doce e vermelho, mais quente. Fecha e reabre os lábios, sorri, olha-se e sorri, e é malícia que assoma ao rosto, gosta, ensaia de novo, sorri do sorriso.
Afasta-se do espelho, vê-se de longe, está bem, gosta.
Depois, um sobressalto. Como podia esquecer-se de uma coisa tão importante? Imperdoável. Era como se fosse nua, que horror, que esquecimento. Pega, então, no frasco Chanel e um leve sopro húmido chega-lhe ao pescoço, afasta o cabelo, agora é a nuca, um pouco, basta pouco. Depois atrás das orelhas, um leve segredo molhado, nada mais que isso.
Debruça-se um pouco e umas gotas tocam o colo, lá bem em baixo, na nervura dos seios. Uma intuição apenas, nada de definido, uma subtil alusão, Chanel em doses fatais, breves, apenas para entendedores.
Afasta-se. Agora sim. Agora está pronta.
Veste então um pequeno casaco de pedras escuras. Depois o despirá mas agora, para entrar, será assim, um casaquinho sobre o belo e pesado vestido. A sedução apenas adivinhada.
Ensaia o olhar. Depois tem uma ideia. Fotografa-se a si própria. Olha a fotografia. Gosta.
Cate Blanchett para a Harper's Bazaar por Alexi Lubomirski |
Quando menos
se aguarda
Vence-se da flor
o vício
O fogo da palavra
E desobedecendo
tudo torna ao início
Sorri, ah o fogo das palavras... e o olhar é quente como as palavras que desobedecem desde o início. Sorri, pois, ao espelho e o sorriso começa no olhar e pousa, malicioso, nos lábios.
Antes de sair, olha para trás, de novo, olha-se ao espelho, de frente, de lado, do outro lado, de costas e espreita sobre o ombro, roda, de frente outra vez, de alto a baixo, depois apenas o olhar, ah o olhar que confirma a perigosidade. Ajeita o vestido.
Sorri. Avança para a porta, avança para ganhar.
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[O poema chama-se Início e é de Maria Teresa Horta.
E, por poesia, não deixem de ir de passeio até ao meu Ginjal, que hoje temos uma valsa de Ravel para iluminar um torpor especial]
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E, meus Caros, tenham uma bela quarta feira!
13 comentários:
Jeitinho amiga:
Gostei do quarto, do vestido, da forma subtil de pôr o Chanel. Nenhum bom perfume deve ser usado doutra forma. Não deve agredir, deve pressentir-se. Tudo isto, com Satie em fundo, faz-me fazer uma pergunta: "E depois?"
Resultou? Ela conseguiu o que queria?
Beijinhos
Mary
Cara UJM:
Que hoje nos apresenta Bela e chega sedutora e manipuladora, de esmeralda vestida.
Que obriga a descobrir! E como gosto de me obrigar a estas obrigações.
De Bela Siva conheço a sua intervenção na estação de metro de Alvalade e pouco mais …
Mas que outra tela poderia acompanhar esta femme fatal senão A Terra dos Beijos…. A mulher e os animais, o jogo de sedução que estimula a imaginação do bicho homem tímido e inocente, cego e perplexo. Aquele que mal ela ergue as pálpebras se sobressalta, fica confuso e perturbado … e o seu perfume … Ela não é apenas ela, é também o seu odor. E ele a desejar farejá-la para se impregnar da sua perfumada futilidade.
E eu fico aqui, ao crepúsculo, a ouvir Erik Satie ansiosa por saber quem será o bicho tímido que irá cair na teia da perigosa sedutora que usa Chanel.
Um abraço da
Leanor formosa e segura
Começaria, já que o tema é uma mulher (segurante bela) e tendo por pano de fundo poesia, por recordar uma frase de um poeta que muito aprecio (e não sou muito dado a ler poesia da mesma forma que leio prosa, longe disso, humildemente confesso), Vinicius de Morais. Ele teve um frase que nunca esqueci, que era: “As feias que me perdoem, mas beleza é fundamental!”. Pois...
Que belo texto, este do seu Post, referindo uma mulher que sabe o que é seduzir - de forma requintada. A preparação em tudo. Em todos os detalhes. Cabelo, baton, no pisar (ou andar), o pormenor dos sapatos e a forma como se perfuma, aquele cuidado das pequenas gotas na nervura dos seios, uma delícia! E Chanel, um gosto de quem sabe. Qual o homem que resistiria a uma mulher destas? The man, the prey. Também somos. Sobretudo sob nessas circunstâncias. E ainda bem. Nada tenho quanto a essa (suposta) inversão de papeis. Os tempos hoje são outros. Incluíndo neste papel de seduzir.
E por falar em perfume, ocorreu-me a uma famosa e belíssima cortesã, “fille de joie”, dos tempos Victorianos, Nelly Foeler, muito solcitada entre outras razões por causa do seu delicioso perfume que costumava usar. O seu pequeno lenço de assoar e a sua almofada de dormir eram verdadeiros tesouros, em virtude do perfume que usava.
Uma mulher que sabe como seduzir é uma grande Mulher!
Na Antiguidade Clássica, ficou célebre a chegada de Cleopatra a Tarsus, na sua extraordinária Barca Real, para se encontrar com Marco António, que a convocara. A bela rainha egípcio-ptolomaica preparou ao pormenor aquele encontro (incluindo a forma como se perfumara), com vista a criar o maior impacto possível em Antonius. E, como se sabe, conseguiu.
Mais um Post a reter! Bom apetito para o jantar!
P.Rufino
As minhas desculpas por não ter mencionado Bela Silva! Uma grande artista! E com humor. Que volte a este Blogue!
P.Rufino
Mary, minha amiga Mary,
Hoje vou ser mais lacónica nas respostas aos comentários para ver se consigo escrever ainda qualquer coisa nos textos. Ando a deitar-me tardíssimo e ando cheia de trabalho, estou aqui cansadíssima. O que vale é que daqui a nada começo a espertar, senão ainda me deixo dormir em cima do computador.
Tenho andado o dia todo com esta mulher na cabeça mas só me ocorrem coisas politicamente incorrectas.
A ver vamos se hoje vai sair alguma continuação da história e se sai bem comportada.
Lá cheirosa e bem vestida é ela. Quanto ao resto ainda não sei bem.
Beijinhos, Mary - e lá está a minha amiga a desafiar-me para eu continuar...
Leanor, formosa, segura e curiosa,
A minha amiga Leanor é outra... Tal como a Mary, a Leanor puxa por mim.
Quem garante que a coisa não ficou por ali...?
Ontem, vá lá saber eu porquê, apresentou-se-me aquela femme fatale e acabou assim. Ontem pensei que tinha acabado. Mas hoje andei às voltas com ela. Como disse à Mary só me ocorrem coisas que me levam à auto-censura.
Não sei o que vai acontecer. Depois de responder aos comentários, vou para o Ginjal, para a minha empreitada ali Depois quando aqui chegar logo vejo.
Mas que aquela é cá das minhas, lá isso...
E, com as suas palavras, ainda mais me sinto 'picada' para continuar.
Caro P. Rufino,
O meu Caro é expert em sedução? Mestrou-se, pós-graduou-se e doutorou-se em sedução? Faz workshops? Como é que conhece tanta sedutora?
Já pensou em escrever um livro?
Há tema mais interessante? Eu gostava de escrever, gostava de estudar a vida destas mulheres mas não as conheço. Agora, o meu Caro, conhece-as todas, fico espantada.
Quanto a ser bela, bem, é subjectivo não é? Mas, enfim, imagino-a com uma certa graça e, sobretudo, com estilo e segurança, capaz de atrair as atenções masculinas com relativa facilidade.
Mas basta que uma mulher tenha graça e seja sedutora para qualquer homem ficar rendido? Não têm os homens capacidade de escolha? 'Caem' assim com tanta facilidade?
E isto é dos tempos que correm, como dia? Claro que não, como os casos históricos que tem citado o comprovam.
Mulheres sedutoras sempre as houve. Homens 'fáceis', que se deixam seduzir sem sequer dar luta, também.
Mas vamos ver se a história vai prosseguir e qual o rumo dos acontecimentos. Estou tentada a umas belas chicuelinas mas vamos ver se saem ou como é que saem.
Uma vez mais, os meus agradecimentos. Os seus comentários fornecem-me sempre bons motivos para prosseguir.
A SENHORA CHANEL
...desfila como se a rua fosse a passerelle...
alguns metros à frente um descapotável branco
e alguém impaciente
tudo parece perfeito
com um pequeno toque
a porta se abre
a música escolhida
desejada
preferida...
tudo parece perfeito
senta-se num trocar de pernas
majestoso
imprudente
uma mão suave
toca a sua devagar
tudo parece perfeito
um ligeiro e fugidio olhar
a malícia
de um pé que se põe a jeito
e o carro desliza
numa avenida de palmeiras alinhadas
tudo parece perfeito
e agora o mar
que apenas se adivinha
na redondilha da rebentação
a lua cheia
curiosa vive a emoção
o céu em festa cintilando
então
a senhora chanel
passa os braços ao redor
e despenteia carinhosamente
aquele cabelo curto
escuro
e perfumado
O MESMO CHANEL
na voz no olhar no peito...
Ambas murmuram " querida"
e
"espantosamente"
tudo parece perfeito...
Erinha, minha amiga...! Por quem é...!?!
Já me fartei agora de rir, ainda estou agora a rir.
Fui até ao fim ao engano, ainda pensei que fosse um cavalheiro de cabelinho curto, que tivesse posto Chanel, quiçá o Allure no peito... Mas, afinal, havia era outra... Que malandrecas aquelas duas, pézinho, mãozinha atrevida, muito bem...!
O que eu ainda estou a rir (porque não me tinha ocorrido esta possibilidade).
Erinha, este é de antologia (guarde, guarde para não se esquecer deste quando publicar o seu livro).
Um beijinho e venham mais!
Também eu ainda não parei de rir, até já me dói a barriga.
Veja se descansa, OK?
Não se cuide não...
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(Ah, estas letras de identificação são um tormento)
Ai Erinha, que são quase 2 outra vez e agora é que acabei o texto de hoje...
E amanhã vou ter que me levantar cedíssimo porque, ainda por cima, há greve de tudo e tenho que levar pessoas de boleia...
Credo, que sono!
Um beijinho e fico à espera de mais um poema destes, à maneira!
Estimada “UJM”,
Já me ri consigo! Sabe, do que vou lendo ao longo da vida, vou retendo inconscientemente algumas “excentricidades” que me chamaram à atenção e por vezes sucede que, ao ler um determinado texto, ou ouvir determinada história, isso vem-me à memória. Quem sabe se não seria interessante conhecer alguma daquelas mulheres, podendo recuar no tempo. Não desdenharia, pelo menos com alguma delas!
Quanto à sedução é um tema tão complexo que dava para vários livros. Mas não escritos por mim. Não passo de um modesto comentador de Blogue!
E pode continuar-se a seduzir quem já se seduziu antes. Ou seja, duas pessoas que vivem juntos há anos e que continuam a gostar (muito) um do outro, podem continuar a surpreender-se um ao o outro. Acho isso bonito. Quando se gosta verdadeiramente de alguém, esses pequenos gestos, atitudes, fazem, sempre, sentido. Pelo menos é assim que penso.
Cá vou seguir, nos Post seguintes, o resto da história desta mulher interessante.
Um resto de boa 5ªFeira!
P.Rufino
Caro P. Rufino,
É um tema que muito me seduz e tomara que, um dia que eu tenha tempo (e que desejo que seja daqui por alguns e bons anos), me lembre ainda de me debruçar sobre o tema porque, a sério, gostaria de investigar e escrever sobre isso.
Vou guardar os 'casos' que tem referido e, se se for lembrando de mais alguns e quiser ir-me dizendo, muito agradecida lhe ficaria.
Quanto à sedução concordo totalmente consigo. Um romance pode durar décadas, sobreviver a todos os sobressaltos, e ser uma coisa e aliciante de se viver. Para tal - digo eu - deverá haver admiração mútua, respeito, química, empatia, e, sempre, a vontade de recriar os afectos.
A monotonia, os dados por adquiridos, o desinteresse, a desabituação do exercício da sedução, acabará por enfastiar um relacionamento.
E, sobretudo, as pessoas não deverão falar como se o seu tempo fosse outro, o que passou. Se o fizerem, sentir-se-ão velhas, entorpecidas, desinteressadas pelo presente.
O nosso tempo é sempre aquele que vivemos e, a cada momento, deveremos vivê-lo bem, com o sentido da descoberta, da novidade.
Mas, enfim, isto é o que eu acho - e, já viu?, até estou a falar a sério, muito atilada.
Gosto desta troca de opiniões.
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