Música, por favor
Salve Regina - Monges da Abadia de Notre Dame
Anunciação - Fra Filippo Lippi (1406 - 1469) |
Na igreja,
Rosarinho se confessou:
engravidei do rio, senhor padre.
Com gesto de água
arredondou o ventre.
O padre
se enrugou:
ela que não usasse desculpa
para os seus mortais pecados.
A ofensa tremia
na voz dela quando retorquiu:
- Desculpe, padre,
mas Nossa Senhora
não emprenhou de um feixe de luz?
Para mais, acrescentou Rosarinho,
o senhor padre
nem nunca, nem jamais viu esse rio.
E rematou
com lânguida saudade: aquele ondear,
as tonturas que ele traz...
Pegou o padre pela mão
e o convidou a descer o vale.
Agora,
todas as noites
o padre se banha
nas águas do rio pecador.
['O pecado do rio' de Mia Couto in 'idades cidades divindades']
Sónia Braga em Gabriela Cravo e Canela |
Confrade do sim, o frade
se cansou de tanta oração,
e, errando, acertou na vida,
fez-se compadre do não.
Almejou, então, em braseiro
errar todo, de corpo inteiro,
vadiar até perder o missal
e ousar até o pecado imortal.
Desejou não apenas a porção
mas a vida sem proporção
e sonhou exercer-se macho
inclinar todo seu cacho
em mulher de travesseiro
tendo feitiço e sendo feiticeiro.
Agora, sem reza, a si mesmo se reveza
e provando que só morto não peca
o frade esgotado de benzer
inventou, enfim, o bem ser.
['O frade e a fraude' de Mia Couto in 'idades cidades divindades']
E, a propósito de padres ou frades (não sei se é a mesma coisa) que se deixam tentar: a sério,
The Thorn Birds (Pássaros Feridos)- com Richard Chamberlain e Rachel Ward
ou a brincar,
O crime do Padre Amaro segundo os Gato Fedorento
^^^^^^^
Hoje, à beira do meu rio, também temos Mia Couto, o urbano que visita o Ginjal ao som de Rêverie de Debussy. Se quiserem aparecer por lá, serão muito bem vindos.
E, meus Caros, tenham uma bela quinta feira, com muito riso (... a quantidade de siso é à vossa escolha e a forma também, isto é: em santidade ou em pecado - conforme vos aprouver).
4 comentários:
Jeitinho amiga:
Adoro Mia Couto. Passe a redundância, a poesia dele é muito poética. Lindo o primeiro poema, brejeirote o segundo, mas ambos muito bons.
Quanto ao "Crime do Padre Amaro", acho esta versão muito melhor do que a verdadeira.
Sou fã dos "Gato Fedorento", adoro o Ricardo Araújo Pereira, que tem um tipo de humor que me agrada. É venenoso que se farta, mas é isso que me faz rir. Quando reencarnar, quero ser como ele.
Hoje, fui eu, que me fartei de rir.
Beijinhos
Mary
Olá Mary,
Fiquei surpreendida com a poesia de Mia Couto. Estou habituada à sua prova inventiva, desconhecia-lhe esta veia brejeirota (ainda que, de certa forma, ternurenta). Fez-me lembrar a sensualidade do Brasil de Jorge Amado e, por isso, repesquei da memória a Gabriela Cravo e Canela.
E aquele número dos gatos-padres é o máximo.
Beijinhos em noite de chuva, Mary.
Jeitinho amiga:
Se soubesse o que eu gostei de ver chover! Tive que ir ao veterinário com o marido e o cão... Quer dizer: Tive que acompanhar o marido a levar o cão ao veterinário e, apanhei uns pingos desta abençoada chuva.
Falando de estilos: realmente, há qualquer coisa de Jorge Amado, no Mia Couto. As cenas da Gabriela fizeram-me saudades do tempo em que ver uma telenovela, era um prazer e se aprendia alguma coisa.
Adoro séries e telenovelas de época, bem feitas.
Estes pastelões que andam agora na moda, irritam-me com tanta estupidez.
Beijinhos e até já.
Maria
Mary,
Olhe que os Gato Fedorendo deveriam alistá-la como o 5º elemento. O seu sentido de humor é fantástico. Essa da ida ao veterinário e a explicação que se seguiu é de gargalhada mesmo!
Mas tenho que abrir um parêntesis para desejar que o cãozinho não tenha nada de grave. Tive durante 13 anos uma cadela que era, para nós, uma menina querida, e sei bem o que é a estima que a gente lhes ganha (e eles a nós).
Quanto às telenovelas agora, estas nossas então, não consigo ver, é tudo previsível, forçado, sem graça. Tenho saudades da novidade que eram as primeiras telenovelas brasileiras sobre romances do Jorge Amado.
Um beijinho.
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