sexta-feira, maio 22, 2020

Os setenta infectados da Sonae na Azambuja





Nestes dias quase não vejo televisão e, se vejo, é tarde e más horas. Noticiários só de raspão. Hoje apanhei uma notícia que me deixou cheia de estranheza e incómodo. Já vão em setenta os trabalhadores da Sonae em Azambuja com teste positivo. Covid-19. E se isso, já de si, é estranho mais ainda o é quando ouvi dizer que são jovens e, se bem percebi, muitos deles vivem em conjunto. Tentei ouvir noutros canais para confirmar mas não consegui.

Ainda não há muito tinham sido para aí uns outros cem a ficar contagiados numa outra empresa de produtos alimentares naquela zona, a Avipronto.

Li também que só por ali a Sonae tem milhares de pessoas a trabalhar.

Que pessoas são estas?

Vivem em habitações partilhadas? Porquê? São imigrantes? Pessoas sem família? Quanto ganharão? Que condições de trabalho terão? Que tipo de contrato têm? A Soane acautelou as suas condições de segurança? O distanciamento físico? A desinfecção de condutas de ar condicionado e de superfícies? Obrigou-os a usarem máscara? Deu-lhes formação sobre os cuidados a ter?

São estas pessoas que têm garantido que as cadeias de abastecimento de bens essenciais não falhem. Se temos ido ao Continente ou ao Modelo e nada nos falta tem sido muito graças a estas pessoas, bem como foram eles ou outros como eles que provavelmente garantiram que as compras nos sejam entregues em casa, a tempo e horas. 

E que compensação recebem? Como são tratadas estas pessoas? 

Gostava que os jornalistas investigassem isto bem como julgo que seria interessante que a ACT visitasse aquelas instalações e percebesse o que se passa ali. E isto já para não falar nos locais onde vivem. Que locais são esses? Quartos alugados? Pensões (agora chamadas hostels)? Várias pessoa por quarto? Beliches? Em que condições de segurança dormem face a estes tempos de pandemia?


E não falo nas condições sanitárias do trabalho ou da higienização das embalagens em que tocam e que vão para os supermercados e para casa das pessoas, tendo estado a ser manuseadas por pessoas infectadas. E não falo pois provavelmente o vírus não se aguentam activo durante as horas que medeiam o manuseio por parte de trabalhadores infectados e o manuseio por parte dos clientes. Mas...

Nisto tudo suspeito da muito provável exploração de mão de obra barata e precária por parte das grandes cadeias de abastecimento. Como consumidores queremos tudo barato e fechamos os olhos às condições em que trabalham aqueles que mantêm a máquina em movimento, para que sejamos servidos sem falhas.

O meu coração bate à esquerda mas, sendo, como toda a gente, fruto das minhas circunstâncias, a verdade é que me esqueço mais frequentemente do que devia daquilo que é invisível. Daquilo e daqueles. Os exércitos invisíveis que trabalham na sombra, nos bastidores, num mundo em que mal se pensa  e que afinal são os verdadeiramente imprescindíveis são, também, os que vivem mais miseravelmente. E isso deveria fazer-nos pensar.

É, na realidade, todo um modelo de funcionamento da sociedade que nos deveria fazer pensar.


E, portanto, uma vez mais, daqui lanço um desafio a Marcelo e a António Costa e a Ferro Rodrigues e talvez a organismos como a Gulbenkian ou a redes de universidades ou sei lá a quem mais: desencadeie-se o debate, repense-se a forma como temos vivido, lancem-se desafios para se pensar em como viver uma vida mais justa e equilibrada, apontem-se caminhos, testem-se novas soluções. E que sempre esteja presente a necessidade de mais respeito pelas pessoas, por todas as pessoas, mais respeito pelo planeta, mais respeito pelo futuro.

Temos a sorte de não termos à frente do nosso pequeno país alimárias como o Bolsonaro ou o Trump. Pelo contrário, temos a sorte de termos democratas, homens cultos, humanistas, inteligentes, com visão. Seria bom que de Portugal saísse o exemplo. Seria bom que soubéssemos dar um pontapé no modelo de desenvolvimento que assentou na venda dos nossos principais activos ao estrangeiro, na compra de bens essenciais ao estrangeiro, na exploração de mão de obra barata e, provavelmente sem direitos, em viajar como doidos para fora do país, em trabalharmos feitos baratas tontas, todos os dias para trás e para a frente, poluindo o ambiente, dando cabo das nossas vidas.

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As fotografias provêm do The Comedy Wildlife Photography Awards 2020 e obviamente nada têm a ver com isto.

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Uma boa e happy friday a todos. Enjoy.

5 comentários:

Lúcio Ferro disse...

Bom dia UJM,
Tem a noção de que o diagnóstico que aqui traça dificilmente será alvo de reflexão por parte dos powers that be, certo? De qualquer modo, no caso em apreço, acrescentaria que é tão ou mais chocante do que nós, o povo que vai ao supermercado, fechar os olhos, o caso dos lucros astronómicos de quem manda na sonae e similares e o facto de muitas dessas mega empresas fugirem por todos os meios aos impostos, nomeadamente para a Holanda e offshores afins. O problema é estrutural e, como bem diz, dever-se-iam estudar alternativas ao modelo de desenvolvimento que temos em vigor. Mas, não me parece, não é isso que vejo; no início da pandemia tive realmente esperança de que a paragem propiciasse reflexão. Porém, o que vejo é que se quer reabrir, reabrir, mais automóveis, mais isto, mais aquilo e a qualquer custo. Ainda hoje li a notícia de a tap passar a poder voar com as aviões em lotação máxima; O futebol, uma indústria corrupta com lucros obscenamente milionários para meia dúzia de indivíduos, também em breve estará de volta e, qual cereja no topo do bolo, passe os olhos por isto: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/ansa/2020/05/19/desmatamento-da-amazonia-em-abril-e-o-maior-em-10-anos.htm

Bom, sobreviveremos, pelo menos por enquanto e quantos mais formos a denunciar este estado de coisas, melhor.

Francisco de Sousa Rodrigues disse...

Muito bem!!!

Um rico dia.

Anónimo disse...

Perfeitamente de acordo com o post da UJM e com o comentário. Também tive esperança, no princípio da pandemia, que esta situação, que mexe com todo o Mundo, nos fizesse repensar o modelo de desenvolvimento futuro. Mas, cada dia que passa, essa esperança vai-me abandonando, por tudo o que vejo à volta. Não temos Bolsonaros nem Trumps a governarem-nos, mas temos governos sem força para se imporem ao poder económico, por muito boas intenções que alguns governantes possam ter.
O que será ainda preciso a Humanidade sofrer para que a sociedade consiga exercer pressão no grande poder económico, para que as relações de trabalho se humanizem e para que as grandes empresas sirvam (e não se sirvam) de quem elas dependem, ou seja, trabalhadoes e clientes?

Contudo, é mesmo assim: "quantos mais formos a denunciar este estado de coisas, melhor".

E, brincando, brincando, já chegámos ao fim de semana, cheio de sol e de bom tempo. Esperemos que mesmo aqui no Oeste...

Um bom fim de semana

Filo

Paulo B disse...

UJM,

Eu, onde trabalho e no que trabalho e com a idade que tenho, vivo num quarto arrendado (em co-habitacao com mais 4 pessoas), a situação desses trabalhadores é só o velho normal da esmagadora maioria dos trabalhadores.
Nem de propósito: ficou um dos quartos livres cá de casa livre e esta semana veio cá uma senhora de 62 anos ver o quarto para arrendar... (a história que nos contou: divorciada, filhos emigrados, a recuperar de uma falência pessoal e comercial da anterior crise).
Isto não é o CoVid. É o pré-covid.
PS: neste momento tenho um salário acima da média, mas mesmo assim, o máximo que conseguiria nesta zona era uma renda com uma taxa de esforço superior a 40% do meu rendimento - e isto se encontrasse alguma coisa. Mas há mais: para fazer contrato é preciso pagar caução e rendas adiantadas (o que implica uma margem financeira para tal), implica ainda um fiador (pedir aos pais - e isto se eles tiverem condições!) e devassa da vida privada (disponibilizar a declaração de IRS). No meio disto tudo, com um contrato a prazo de.um ano e com perspetivas de renovação muito baixas é um risco tremendo! E volto a sublinhar: isto, uma pessoa com um salário superior à média.
O problema não é tão visível porque hoje em dia os relacionamentos são bastante mais flexíveis (casais que partilham casa com outros casais por exemplo ou que se mantém à distância) - embora cada vez mais seja difícil construir relações sólidas - ou, claro, o velho suporte familiar (daí que o berço em que se nasce ainda faz muita diferença).
Tudo isto numa cidade média portuguesa.

Abraço.
Bom fim-de-semana!

Paulo B disse...

Só mais um pormenor importante: trabalho numa instituição pública, sou altamente qualificado (no papel, porque desde logo a arranjar casa sou claramente pouco qualificado - para mais trabalho com o tema hahahahaha). Ou seja, não falo do alto do chão de fábrica de uma qualquer empresa das grandes cadeias de abastecimento. Mas imagino como é aí (aliás, sei... bem de perto).
PS: desculpem o uso da experiência pessoal, não é com intuito de vitimização, é mesmo para alertar que o problema é muito mais profundo, transversal e enraizado. É todo um modelo económico e social. Já se fez muita coisa fantástica em 45 anos, mas o país desenvolvido é sobretudo aparente. E não nos admiremos com o envelhecimento demográfico galopante, com a desertificação de vastas áreas do território, com a continua emigração ou ainda com a pobreza encoberta que Grassa em muitos cantos de um território que muitas vezes consideramos conhecer.
Abraço
Bom fim-de-semana!