Vim para aqui com uma ideia e, por isso, escolhi duas fotografias. Era para escrever para aqui umas maluqueiras, daquelas que não têm a ver com nada, histórias sem os pés na terra, com a cabeça sabe-se lá onde, o coração fora do peito, as mãos incapazes de agarrarem as palavras.
Mas, ao pôr as mãos no teclado -- oh sensação mais boa... -- a verdade é que parece que passou essa vontade e fiquei foi com vontade de contar o que no outro dia aconteceu. Não vou poder contar tudo tal e qual pois é recente e porque não quero que alguém se reconheça. Mas apetece-me falar porque me impressionou. E impressionou-me não por ser coisa inédita mas porque, pelo contrário, é muito habitual.
Tinha ido a uma consulta de rotina. Entrei e a médica estava desatenta, de volta do computador que não queria arrancar. Nem olhava para mim. Depois, lá deve ter-se lembrado que eu ali estava, começou a fazer-me perguntas sobre o estado de saúde e a seguir viu a tensão arterial, auscultou-me. A seguir, de forma um bocado desenquadrada e abrupta, perguntou-me como estava eu em geral e no trabalho. Achei graça à pergunta. Disse-lhe que bem. Não me pareceu relevante entrar em pormenores.
E, então, nem eu sei bem como, começou a falar-me dela própria. Falava, olhava-me, falava. E contou-me da sua actividade profissional sobrecarregada, do trânsito, do que gosta de estar próxima dos seus doentes, e contou-me que teve um problema de saúde há uns anos do qual lhe foi difícil sair, falou-me, então, de um filho que perdeu. E a forma como sorriu, como quis disfarçar a dor que ainda estava tão visível, tudo aquilo me tocou. E eu olhava para ela e ouvia-a com atenção e espero que sem demonstrar surpresa -- surpresa por, sem me conhecer, ela estar a contar-me apontamentos da sua vida, coisas tão pessoais e dolorosas.
Acontece-me tanto isto: não apenas com pessoas que conheço como, e isto é que me surpreende mais, com pessoas que não conheço. Seja onde for, acontece isto: as pessoas começam a falar-me das suas vidas.
Não tive como interrompê-la porque ela falava torrencialmente, como se as palavras lhe tivessem estado aprisionadas.
Pouco falei. Senti, isso sim, muita compreensão pelo que me contou e bastante empatia face às situações complicadas pelas qual passou. Não sei como é a minha expressão facial nestas alturas mas admito que deve desinibir as pessoas que, por alguma enigmática razão, resolvem desabafar comigo.
Quando saí do consultório, as pessoas à espera tinham-se acumulado e olharam-me com ar de natural impaciência.
Quando cheguei ao escritório, tarde e más horas, fui à copa para fazer um café. Estava lá uma colega. Estava com um ar cansado, encostada á parede com a chávena na mão. Disse-lhe (ou melhor, perguntei-lhe): 'Então? Como vai isso?'. E, então, para minha igual surpresa, começou a contar-me os problemas de saúde da sogra, do marido, os problemas profissionais e pessoais das filhas. Senti o peso que ela sentia sobre ela. Estive bem uma meia hora a ouvi-la. Incapaz de interromper. Sentindo que ela estava mesmo a necessitar de ter quem a ouvisse, deixei-me estar em frente dela e ouvi-a até ela querer.
Claro que essa manhã foi uma lástima em termos de produtividade mas compensei à hora de almoço e ao fim do dia. Mas, do ponto de vista humano, eu vou recebendo mais e mais histórias de vida.
Gostava de saber retribuir melhor a confiança que tantas pessoas depositam em mim mas, para além do que, na altura, se calhar faço -- e que acho que é apenas ouvir com genuíno interesse e compreensão --, nada mais sei fazer senão ir dando aqui umas pinceladas do que vou testemunhando. Mas o que é isso? Nada. Palavras à toa que se perdem no meio de tanto que escrevo.
Mas, muito a sério, gostava de deixar o meu testemunho de que termos tempo para ouvir os outros é importantíssimo. Há muita solidão na vida de muita gente. Ter quem as ouça pode fazer a diferença. Ou, então, não será solidão, talvez seja não quererem preocupar os que lhes são próximos, talvez sintam que devem ser fortes e, às tantas, o peso é de tal ordem que é mesmo necessário tentar aliviar a angústia ou a preocupação.
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Acabei por não colocar as fotografias que tinha pensado mas estas, da autoria da holandesa Suzanne Jongmans, que recriam pinturas. Parecem-me mais comedidas, mais ajustadas ao que quis escrever.
E, ao escrever isto e, ao mesmo tempo, ao não responder aos comentários ou aos mails que se vão acumulando, sinto que estou a ser talvez contraditória. Mas é que eu também tenho as minhas limitações. Estive a dormitar e depois a fazer o tapete e agora é tarde, tenho que ir dormir. Mas saibam que gosto de ler os vossos comentários e que gostava de ter tempo para conversar com cada um de vós. Acreditem que não é por falta de consideração, é mesmo incapacidade física e, confesso, algum egoísmo, por, em vez de responder e agradecer a generosidade de quem se dispõe a comentar, estar, antes, a fazer o tapete. Aceitem as minhas desculpas.
Desejo a todos quantos por aqui me acompanham uma boa semana, vivida com leveza e harmonia, com saúde e alegria.
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Para haver aqui alguma música, permitam que partilhe mais uma sugestão do Youtube
[A história de como um presente, em criança, mudou a vida de Elton John]
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8 comentários:
Vivo esse tipo de situação, a de simplesmente ouvir, ao balcão. Sério, acho que as pessoas nem se apercebem que não me conhecem ou, quando conhecem, não se importam que eu conheça partes da sua vida privada.
Boa semana
Claro que a UJM transmite algo de muito empático para as pessoas se abrirem, chama-se a isso capacidade de amar.
A história da sua médica traz a lume o quão importante é para a qualidade da relação clínica os profissionais de saúde estarem especialmente atentos ao seu próprio sofrimento, pois sem darem por isso podem ter atitudes que possam ser vistas como de antipatia e desinteresse pelo paciente. No caso dos médicos constroi-se por vezes um ideal de saúde e produtividade que os faz descurar da realística questão de que também podem adoecer ou sofrer sob os mais diversos pontos de vista e que se esse adoecer entra na relação com os pacientes há que procurar soluções, porque idealmente a relação clínica não pode ser intoxicada por malestares pessoais do profissional.
Infelizmente, o tal ideal também é chão fértil para pessoas egocêntricas que manifestamente não reúnem condições para exercer um saber que carece de capacidade de descentramento e empatia, pessoas que não têm pejo dos seus preconceitos pessoais ou de trazerem para relação os seus humores, transformando a mesma relação num exercício de poder.
Um processo psicoterapêutico ou psicanalítico é sempre uma mais-valia na vida de uma pessoa, pois permite um discernimento muito mais fino das vivências intrapsíquicas e a compreensão da sua influencia nas mais variadas dinâmicas intra e interpessoais.
Uma boa semana para a Sta. UJM.
Olá Gina,
Imagino as histórias que ouve, Gina. Trabalhar num estabelecimento assim deve ter vários aspectos fascinantes e esse, de ser confidente de tanta gente, deve ser bem interessante. Quantas histórias cruzadas, quantos desabafos.
Beijinhos, Yellow Lady. Ou melhor, Sunny Lady.
Olá Francisco,
E sabe que esse aspecto foi parte da minha surpresa: os médicos (e talvez também os psicólogos) são os curadores, os esteios, as fortalezas nas quais os doentes se refugiam. A gente não se lembra que são gente, que vão acumulando as dores e os problemas dos doentes, que um dia também podem desabar.
Ouvir a médica a desabafar, a falar-me dos seus males, da sua doença, da dor de ter perdido o filho... Foi para mim uma surpresa. Fiquei impressionada. Ouvi-a atentamente, com simpatia. E ela falou como se há muito tempo ninguém a ouvisse.
Já lhe contei que eu gostaria de ter sido psicóloga?
Fantástica profissão a sua, Francisca.
Um abraço. E um dia feliz.
Acho que ainda não tinha contado ;)
E acho, também, que é uma verdadeira psicóloga, mesmo não tendo seguido por este maravilhoso mundo.
Obrigado e um dia feliz, também!
Sendo tão difícil encontrar um bom psicólogo (e quanto falta fariam provavelmente bons psicólogos, digna profissão como qualquer outra, mas pululada de incompetentes como poucas), mais vale a psicologia do dia a dia praticada por todos nós uns com os outros. Não é assim tão difícil. Ajuda, talvez, ser mulher.
Como sou pequenina e de ar aparentemente fofinho, as pessoas têm tendência para também se sentir à vontade comigo. Depois, como tenho áurea de ser boa naquilo que faço, ficam sem saber bem como me hão de tratar, gaguejando entre o "menina" e o "Drª", usando frequentemente o meu nome no diminutivo e depois arrependendo-se até eu me rir e dizer que o meu nome profissional podia bem ser "Dr.ª ...inha". (Digo que me têm por boa naquilo que faço sem medo de estar a fazer despudorada auto-lisonja, pois se há algum mérito nessa reputação, há também fenómenos interessantíssimos de criação mitológica de que já beneficiei, como certo exame no 2º ano da faculdade: ainda antes de mo ser entregue, já toda a gente sabia a nota que tinha tido - nota formidável, quase inaudita. Passava no corredor colegas com quem jamais trocara duas palavras e recebia os seus parabéns. Respondia que ainda nem tinha recebido o exame, não sabia de nada, era provavelmente treta. "Não, verdade, verdade! Foi o Professor X que disse na turma y, no dia z!" Uma pessoa tenta manter o ceticismo, mas tanto ouve que se convence. Afinal, somos todos humanos. Era mesmo treta. Curiosamente, quando tive efetivamente a dita nota na mesma cadeira, uns meses depois, já ninguém soube - e ainda bem, que senão talvez tivesse acreditado ser nova partida).
Enfim, dizia que as pessoas me olham frequentemente como um bichinho doce e querido. Contam-me, por isso coisas. Como uma secretária de certo escritório, que me contava, com saudade, das suas anteriores experiências profissionais. Falava das suas colegas, muitas, com quem conversava e se divertia em alturas menos atarefada, com quem partilhava os stresses de uma grande organização. Ganhava mais nesses tempos, pré-crise; teve de se ajustar. A dada altura, diz: "É que isto aqui, sozinha sem ter ninguém com quem falar o tempo todo.. É horrível!" Depois, corou um pouco, porque me estava a confidenciar algo praticamente ilícito, ainda para mais porque os sócios - meus colegas, com quem me dou muito bem - vivem convencidos de que a secretária adora trabalhar ali e está imensamente grata por ter tido essa oportunidade depois de perder o emprego anterior. E é verdade, gosta do trabalho que tem e está efetivamente grata. Mas isso não é tudo, não é toda a verdade. A outra parte, aquela a que as pessoas muitas vezes fecham os olhos, seja por distanciamento profissional, conformismo ou mesmo falta de empatia, é que tem interesse descobrir e tentar perceber.
Abraço,
JV
Olá JV,
Pois, não me admira nada que as pessoas lhe contem as suas 'cenas'. Revejo-me muito no que relata. Até nas boas notas. Também tive notas que deixavam os meus colegas não apenas espantados como com vontade de brincalhotar com o assunto. Quando andava no liceu, até, sem querer, provoquei reunião de conselhos directivos das várias escolas da cidade para discutirem em que circunstâncias se deveria dar um 20 a um aluno. Mas o que retive é que isso das notas não deve fazer-nos pensar que notas altas são salvo conduto para alguma coisa. Não são. Pode parecer que sim mas, com o decorrer dos anos, a gente confirma que não.
Agora uma coisa lhe digo: ouvir, saber ouvir, ver como as pessoas confiam em nós, é uma coisa que nos toca o coração mas que, por vezes, talvez em momentos de maior fragilidade nossa, nos pesa. Ficamos sem saber como ajudar, ficamos com vontade de não ter sabido. Mas é momentâneo. Toca o nosso coração que alguém nos escolha para desabafar. Se soubesse os mails sentidos, alguns tão tristes, que recebo... Fico, por vezes, a sentir-me tão impotente, tão triste por não saber como consolar quem perdeu alguém, quem se sente infeliz.
Na sua profissão é importante a chamada escuta activa e isso treina-se sabendo ouvir as pessoas que confiam em nós.
Um abraço grande, JV.
É isso mesmo, UJM. As pessoas desligam-se umas das outras e prendem-se muito ao acessório. Ainda há quem me fale no dito histórico-inexistente exame. De olhos arregalados de admiração. Só me dá vontade de rir quando lhes digo que foi tudo um mal-entendido e alguns recusam, ainda hoje, acreditar. (Entretanto descobri a origem do mal-entendido: o dito professor, em momento de exaltação, comparou os testes fraquinhos de toda uma turma ao teste de alguém de outra turma, que era eu, em termos tais que toda a gente ficou convencido daquilo que contei. Enfim, uma tonteria.)
No outro dia, a propósito da greve dos juízes, li uma entrevista a uma senhora da classe, que dizia que os juízes ouviam de tudo e eram juízes, psicólogos, assistentes sociais, etc. Um juiz ouve, sem dúvida, muita coisa. Mas nem imaginam. Eu que nem trabalho com áreas bombásticas como crime ou família e menores, por causa de dois ou três casos sucessórios tenho ouvido o impensável. Meu Deus, as coisas que já tenho ouvido, seguidas de um corado "Mas isso não ponha na peça... Só quero arrumar este assunto, não quero nada, só não quero perder ainda mais. Mas nisso não quero voltar a falar". Episódios que até aqui, sem falar em nomes, tenho pejo em abordar.
O caso da secretária é coisa mais pequena, mais simples (outras me contou ela, da sua vida pessoal, bem mais sensíveis - sobre a mãe, os filhos, o marido, até o cão...); mas achei simbólico de como andamos enganados uns em relação aos outros, mesmo quanto a algo tão simples e tão óbvio. Algo que, na verdade, não tem mal nenhum (uma pessoa sentir falta de ganhar mais e de estar rodeada de pares e não apenas superiores); porém, não fizera ela o seu papel e, mesmo sendo os patrões pessoas boas e compreensivas, sem dúvida haveria mal-estar e provável ofensa.
Abraço,
JV
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