quarta-feira, novembro 27, 2013

Leonor em toda a sua nudez






Os dias estão pequenos. Era já noite quando saíram do palacete. Com excepção do dono da casa, os restantes dirigiram-se aos seus carros. Afonso, como de costume tinha ido de moto. Tem aquele lado de rebelde que se manifesta de variadas maneiras, entre as quais esta: de vez em quando deixa em casa o carro e, com blusão de cabedal sobre o casaco e com capacete, rasga a estrada como um fugitivo.

Leonor não. Leonor é uma executiva a tempo inteiro. Dela diz quem a conhece que não brinca em serviço e, sempre que a vêem nestas circunstâncias, mostra o seu espírito analítico e implacável.

Envolta num casacão preto comprido e macio, Leonor desloca-se, pois, até à sua viatura de serviço, um topo de gama também preto.

Uns quantos ainda ficam ao portão, na conversa, mãos nos bolsos, ar enregelado, mas parece que ainda têm assuntos a resolver. Depois de um dia de conversa descontraída, parece terem guardado as preocupações para o cair da noite.

Leonor não. Afasta-se a passo decidido, senta-se ao volante e arranca. O carro está frio, aquela zona é sempre fria e húmida. No entanto, o ar condicionado rapidamente restabelece os níveis de conforto. Sem pensar muito escolhe June Tabor, a voz sem disfarces. E a música depressa a transporta para outro território.
This is a strange, this is a strange affair. Won't you give me an answer? Why is your heart so hard towards the one who loves you best?
As noites trazem-lhe, desde há algum tempo, uma desconhecida melancolia. 
My youth has all been wasted and I'm bent and gray with years
And all my companions are taken away
And who will provide for me against my dying day?
Mal chega a casa, Leonor começa a largar sapatos e roupa como um animal largando a pele. Está cansada. Ser outra cansa-a cada vez mais. Depois coloca-se em frente ao espelho, tira os brincos, o colar, os anéis, começa a desmaquilhar-se. Olha-se com indiferença. Sente uma nostalgia sem solução, talvez alguma solidão. A música continua a entoar dentro dela.
Oh, where are my companions? My mother, father, lover, friend and enemy? Where are my companions?
A seguir, uma a uma, liberta-se de todas as peças de roupa. Fica então nua ao espelho. Nua, ela apenas.
And where are the dreams I dreamed in the days of my youth?

Depois de tomar um longo banho com água bem quente, veste uma camisa qualquer e deixa-se ficar na sala, junto ao aquecimento, absorta, incapaz de pensar no que quer que seja. De vez em quando ocorre-lhe um lamento surdo, um lamento que não interrompe o silêncio que a rodeia.

Tantos idiotas, meus Deus, tantos idiotas. O que eu tenho que aturar. Até quando vou ter paciência para isto, até quando? 

Cada vez mais sente que não conseguirá aguentar por muito mais tempo tanto jogo, tanta nulidade, tanta mediocridade e hipocrisia.

Sabe que por vezes surpreende os outros com a sua violência, com as suas tiradas a raiar a inconveniência.

Adquiriu um estatuto em que tudo lhe é perdoado mas ela é que já não consegue perdoar a si própria os anos de vida perdidos a ser quem não é. E agora ainda, por cima, aquela situação. Tenta geri-la com firmeza, mas irá aguentar? Tem medo de não conseguir. E está cansada. Vale a pena isto tudo? Vale...?
Wake up from your sleep that builds like clouds upon your eyes. And win back the life you had that's now a dream of lies 
Sente uma angústia no peito a que não está habituada. Era quase meia noite quando pegou no telefone e lhe ligou,

Não lhe apetece vir até aqui dar um abraço quente a uma executiva cansada e infeliz?
- A esta hora? mas já viu que horas são...?! 
É a esta hora que costumo estar no meu melhor. Está a fazer o quê?
- A dormir.
A dormir? A esta hora? Ora. Deixe de se portar como um velhinho atrofiado e venha.
- Mas então porque não vem cá você, se está com essa pica toda?
Pois é, o drama é esse, é que não estou com pica nenhuma. Preciso é de um abraço quente mas se lhe custa assim tanto, deixe-se estar, não se incomode. 
- Ihhhh... chantagem emocional a esta hora...?
A sério, deixe. Também estou com sono. Adeus. Durma bem.


Quando desligou o telefone, Leonor deixou-se cair para trás. 

Estava já a dormir quando a campainha da porta tocou.


*   *   *

A quem chegou aqui de novo, informo que este meu texto vem na sequência do que escrevi ontem intitulado 'Leonor e Afonso'.

Informo ainda que, se descerem até ao post seguinte, poderão ler a minha opinião sobre uma notícia que li no Público sobre a exortação do Papa Francisco intitulada Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho) e que me deixou, uma vez mais, emocionada.


*   *   *

Gostaria ainda de vos convidar a visitarem o meu outro blogue, o Ginjal e Lisboa, onde Benjamin Schmid tem uma outra grande interpretação e onde um poema de Soledade Santos fez ter com que eu tivesse vontade de me levantar e levar comigo muitos mais, todos os que queiram ocupar a cidade (porque nossos são todos os caminhos).

*   *   *

E, por agora, nada mais. 
Resta-me desejar-vos, meus Caros Leitores, uma quarta feira cheia de coisas boas.

3 comentários:

jrd disse...

Espero que o velhinho se tenha vacinado contra a gripe. É que sair da cama para a rua,com o frio que estava, não é prudente. Ainda por cima só para dar um abracinho...

Um Jeito Manso disse...

Ná... A Leonor não é moça para incomodar velhinhos a meio da noite... Não sei quem foi mas vou descobrir, lá isso vou.

Um abraço, jrd!

Olinda Melo disse...


Suspense...aliás já vem de trás, com aquilo de um braço agarrar a Leonor. Pelo menos, o Afonso diz que sim.

Bj

Olinda