segunda-feira, outubro 16, 2023

O que éramos, o que somos. Os que deixaram de ser.
E o mundo que não compreendo.

 


A minha mãe encontrou uma carteirinha de fotografias pequenas daquelas a que, há milénios, se chamava 'tipo passe' com algumas fotografias de colegas de liceu. Nem todas têm o nome atrás. Naquela altura devíamos pensar que não fazia falta escrevê-lo. Agora olho para algumas dessas, lembro-me das pessoas que elas representam mas não tenho ideia do nome.

Partilhei com outros colegas dessa altura. Duas dessas foram identificadas. Outras não. Desapareceram nos meandros da memória de toda a gente.

De uma disseram que não está bem da cabeça, ausente, desinteressada do mundo. Fez-me muita impressão, isso.

Claro que, de tudo, o que me faz impressão são os vários que já morreram. Parece-me uma coisa muito contra natura. Já falei disso e estou a repetir-me. Mas a sério que isso me incomoda muito.

Não sei se também falei no seguinte: dou por mim a olhar para as fotografias em que estão os que já morreram. Tento perceber se, neles, naquela altura, já alguma coisa poderia fazer prenunciar o que iria acontecer. De uma delas já não me recordava. Ao ver as fotografias, reparo que estava sempre um pouco isolada, parecia um pouco distante. Ou triste. Um outro era muito divertido, gordinho, muito simpático. Vejo-o nas fotografias. Qualquer coisa nele me parece agora assimétrico. Uma outra era muito carismática quer na maneira de ser quer na maneira de se vestir. Vejo-o nas fotografias. Parecia quase nossa mãe, muito mais desenvolvida, rosto já um bocado marcado. Uma outra, médica, disse-me agora que foi terrível, que era a médica dela. Como me viu muito perturbada, disse-me que naquela família todos têm morrido de cancro. Ela disse-me isso como para me dizer que eu não estivesse impressionada pois ela já estaria 'fadada' à morte por aquela doença. Mas eu fiquei a pensar que os filhos e netos dessa que morreu devem estar bem apreensivos com essa triste sina.

De uma outra de quem fui muito próxima e a quem depois perdi completamente o rasto, disse-me a minha mãe que, tendo ela engravidado ainda miúda, foi afastada, levada para uma quinta que tinham no campo.

Mas agora soube que está bem, que se reformou agora, que também tem uma mão cheia de netos. Vejo a fotografia dela. Tão bonita e alegre que era. Já aqui falei delas algumas vezes. Gostava de voltar a vê-la. 

Uma coisa que, olhando para aquelas fotografias, também reparo é que antes, alguns de nós, quando éramos pequenos parecíamos mais velhos. Por exemplo, uma que, deveria ter uns catorze ou quinze anos, já parecia ter uns vinte e tal ou trinta. Não dá para perceber. Mas mesmo as que tinham ar de miúdas, frequentemente se mostravam circunspectas. 

Poder-se-ia pensar que o mundo hoje é mais leve para as crianças.

E, contudo, sabemos como isso pode não ser verdade em algumas partes do mundo. A televisão mostra crianças a sofrerem horrores pelos quais nem os adultos deveriam passar. Vejo-as a falarem, cheias de medo, a chorarem e o meu coração quase me dói. Não falo por falar, não é uma metáfora. É mesmo dor. E é sobretudo uma grande incompreensão.

Por vezes penso que se um dia um grande meteorito ou uma qualquer outra coisa chocar com a Terra e der cabo de grande parte dela, se calhar até fará algum sentido já que parece que grande parte dos humanos têm uma pulsão brutal pela autodestruição, não só de si próprios e dos outros, como do seu habitat. 

Tirando isso, vou falar de quê?

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Só se, por exemplo, partilhar um vídeo. Um qualquer. Talvez este aqui abaixo.

President Joe Biden: The 2023 60 Minutes Interview

President Biden answers questions on Israel, efforts to locate American hostages in Gaza, the state of the war in Ukraine and more during a wide-ranging conversation with Scott Pelley.

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Lá em cima, Jakub Józef Orliński interpreta "Amarilli, mia bella" (Giulio Caccini)

A fotografia lá em cima é da autoria de Ali Jadallah/Anadolu Agency/Getty Images e outras poderão ser vistas no Guardian

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Desejo, a todos, uma boa semana a começar já nesta segunda-feira

Saúde. Força. Paz.

Paz. Paz. Paz. Paz. Paz. Paz. Paz. Paz. Paz. Paz. Paz. Paz. 

4 comentários:

Anónimo disse...

Com a idade, vai crescendo o número de mortos que caminha ao lado de cada um. O primeiro encontro dos que saíram do liceu naquele ano, fizemo-lo 25 anos depois. Ainda éramos jovens e bonitos; e todos vivos, creio. As reuniões seguintes, espaçadas por alguns anos, vieram trazendo notícias tristes. A última, no final, a organização decidiu lembrar, com fotografias tipo passe, as existentes nos registos do liceu, todos/todas os/as que tinham falecido. Não senti que tivesse sido mórbido. Sobre esta última reunião, já decorreram, pelo menos, 5 anos. Outros mais terão morrido, ou estarão ausentes de si. Sobre aquele ano, decorreram 56. Não sei se terei coragem para ir a uma próxima reunião; se a houver.

ccastanho disse...


Cara UJM,

Nestes tempos conturbados que nos incomodam e de que maneira, proponho um exercício de história que podem ver aqui,

https://www.youtube.com/watch?v=lSx4RkUbwaw&t=461s

Um Jeito Manso disse...

Olá Anónim@,

Percebo-a bem. É mesmo isso. O facto de, à medida que o tempo passa, o número de desaparecidos que caminham junto às nossas memórias ser cada vez maior é extremamente visível com a minha mãe. E ela própria parece encarar isso com naturalidade. No outro dia falava-me num colega professor que tinha morrido, um que eu conhecia bem e que, quando eu era pequena, era nosso vizinho. Pensei que ela ficasse abatida. Mas não, disse-me, como se relativizasse a gravidade daquele desaparecimento: 'Também já tinha 90 anos'. Mas essa é a idade dela. E, no caso dela, creio que tem a expectativa de viver ainda uns bons anos. Mas, em relação aos outros, aos que morrem, parece achar natural. Fico sempre um pouco desconcertada.

Quanto aos nossos colegas de liceu, tenho gostado muito de os reencontrar. Parece que a informalidade e amizade que tínhamos naquela altura está intacta. E fico feliz por saber o que fizeram na vida, de saber dos filhos e netos (quando os têm). No meu caso, pelo menos por enquanto, gostaria muito de manter o contacto com todos. Mas se, às tantas, começarem a desparecer ainda mais ou a ficarem mal, não sei se não vacilarei. Isto se eu for das que continuam vivas e boas da cabeça...

É a finitude da vida. Todos sabemos disso. Mas quando começa a aproximar-se de nós... a coisa começa a apresentar-se com cores mais sombrias.

Saúde!

Um abraço.

Um Jeito Manso disse...

Ccastanho,

Hoje não tive tempo para ver mas vou ver se amanhã consigo.

Obrigada.

Saúde!