domingo, dezembro 13, 2020

Memórias e medos a caminho de um heaven transbordante de cogumelos mágicos

 


Quando eu era pequena tinha medos. Aliás, tinha um medo. Um senhor medo: um pavor. Tinha medo de ver alguém com alguma doença que me parecesse grave. Era um medo incapacitante. Toda eu tremia por dentro, aterrorizada. Não sei precisar quando nasceu esse medo. Seria quando o meu avô materno morreu? Não sei. Pensava que teria uns três anos quando ele morreu num acidente. Afinal, tinha dois anos, disse-mo a minha mãe. No outro dia, quando morreu a filha do Tony Carreira, a minha mãe disse que nem queria imaginar o choque da família ao receber a notícia. Chorava enquanto falava. Perguntei porque chorava assim. Disse-me que se lembrava de quando recebeu a notícia do acidente do meu avô. Diz que até hoje ainda não recuperou do choque e desgosto. Imagino como terá sido, na altura. Tinha vinte e cinco anos, ela. Tinha uma relação por vezes um pouco indiferente em relação à mãe mas era amicíssima dele. Durante toda a vida presenciei o desgosto pela morte prematura do pai. Foi um acidente traumatizante. A minha avó, que era apaixonada pelo marido e que nesse dia ia ao cinema com ele, teria quarenta e um ou quarenta e dois. Durante anos a vi chorar ao falar do meu avô. Vestiu luto durante quase toda a vida. Na altura esconderam de mim (já o contei muitas vezes) mas devo ter percebido. Penso que é, portanto, provável que tenha nascido aí o meu medo da morte. 

Depois foi um acidente grave que aconteceu ao irmão da namorada de um dos meus tios, aquela que veio a casar com ele e de quem eu ainda sinto muitas saudades, custando-me, por vezes, até a acreditar que já se tenha ido, tão alegre era e tão saudável parecia. Ficou paraplégico, esse irmão dela, o mais novo de cinco irmãos. E eu, que o conhecia bem, um jovem simpático e tímido, ao ver a consternação de toda a gente, dos meus pais, dos meus avós, dos meus dois tios, jovens como ele, fiquei soterrada pela dor que sentia em toda a gente. Esteve internado durante muito tempo. Eu desejava que ele não regressasse, antevendo já o terror que nasceria da proximidade. Lá por casa, sabendo-me muito sensível a esses sofrimentos, escondiam de mim, falavam por meias palavras ou em voz baixa. Eu ouvia, pressentia, adivinhava. Os pais dessa que viria a ser minha tia, face ao estado em que tinha ficado o filho, tiveram que mudar de casa. Era uma casa térrea que ficava na mesma rua que a escola infantil em que eu andava. E eu, a partir daí, passei a ter medo de ir para aquele lado do recreio com pavor de o ver ou de me aperceber que alguma coisa de grave estava a acontecer. Mas devia perceber que, se falasse neste meu terror, preocuparia os meus pais. Por isso, calava-o, escondia-o.

Depois foi o pai de uma colega de escola, uma a casa de quem eu ia muito até porque, por coincidência, também morava perto da escola. Além disso, ele era colega do meu pai. Eu percebia que se passava alguma coisa de grave e morria de medo. Nunca mais lá fui a casa, para desgosto da minha colega. Nem falava com ela na doença do pai com medo de descobrir que a morte rondava a casa. Quando ele morreu, a minha vontade era não ir à escola. Fui mas nem olhava para a rua, aturdida de pavor. E quando ela regressou à escola nunca falei na morte do pai com medo de saber pormenores e com uma pena imensa por ela já não ter pai e porque tinha ouvido dizer que ele estava muito magro, irreconhecível, e que tinha muitas dores.

Durante anos íamos passear e fazer compras à Baixa, usando um transporte público que era usado por quem também ia para a 'Palhavã', o IPO. O pavor que eu sentia, o terror que me trucidava as entranhas só eu sei. Se via alguém com pensos, ligaduras ou ar de doente quase morria de medo. Mas escondia-o. Tinha medo de preocupar os meus pais. Penso que eles perceberam pois tenho ideia que tentavam que eu compreendesse que não tinha mal nenhum. Mas era mais forte que eu. 

Feridas, chagas, sofrimentos terminais, tudo isso sempre me aterrorizou. Mas só nos outros. Penso que, no fundo, sobretudo, tinha medo de deixar transparecer o meu medo e que as outras pessoas se sentissem ainda piores por verem os cuidados e medos que me inspiravam. E a verdade é que penso que isso ainda subsiste em mim, embora mais controlado.

Comigo, no entanto, não existe esse medo. Em mim, suporto relativamente bem a dor física, tenho uma certa coragem e desprendimento em relação a mim própria.

Já o contei. Desculpem que me repita. Quando era pequena, talvez três anos, parti uma clavícula. Estava em casa sozinha com o meu avô paterno. Gostava de me pôr de joelhos em cima de um banco que havia na cozinha e de me balouçar lá em cima. Ninguém queria que eu fizesse isso mas eu gostava de pôr o banco em dois pés e de o inclinar para ver até onde conseguia equilibrá-lo. Os meus pais e a minha avó agarravam-me, zangavam-se. Mas o meu avô, muito meu amigo e muito condescendente, tinha dificuldade em zangar-se. E, naquele dia, o banco virou-se, eu caí e, ao contrário do que costumava acontecer, chorei muito. O meu avô percebeu logo que alguma coisa se passava e mandou chamar o meu pai que estava a trabalhar. Quando o meu pai chegou, lembro-me bem, eu estava na cama do quarto ao lado do quarto dos meus avós e estava a chorar. O meu pai vinha assustado e ao tentar perceber o que se passava deve ter-me mexido no braço ou deve ter visto, através da pele, que o osso estava partido. E eu vi o meu avô também assustado e a declarar-se culpado, e o meu pai, aflito, quase a chorar. Então, para os descansar, disse que já não me doía e fiz de tudo para não chorar. Fui de imediato levada ao médico que, à vista, percebeu logo o que se passava. Tinham-me pegado ao colo e puseram-me numa marquesa que me lembro como sendo muito alta mas que, se calhar, era normal. Sei que o médico disse que ia, com as mãos, endireitar os ossos, alinhando as duas partes. Avisou que ia doer e que eu tinha que ser corajosa. E fui. Lembro-me bem. Doeu-me muito. Mas não chorei. Os meus pais sim. O médico ficou espantado com a coragem daquela criança; e eu hoje espanto-me com isto. 

Toda a vida fiz de tudo para me mostrar corajosa para não assustar os outros. 

Corria muito, descia a correr por veredas, voava pelo campo em descidas acentuadas, subia muros e árvores, brincava muito, caía muito, esfolava-me toda. Para não assustar os outros, não chorava. Tenho os joelhos com marcas, tamanhos os ferimentos que fiz. Por vezes, infectavam. Os meus pais desinfectavam, muitas vezes com tintura de iodo, que me ardia e magoava muito. Lembro-me, em especial, já andava na primária, de um ferimento profundo que fiz num dos joelhos. Estava ainda a cicatrizar, voltei a cair, entrou areia. Infectou, já tinha pus. Pedi, então, ao filho de uma vizinha da minha avó, um recém adolescente, que tratasse de mim para não preocupar nem a minha avó nem os meus pais. Ainda me lembro: eu sentada num muro, ele com um pauzinho a retirar os grãos de areia da carne viva. O que me doía... Depois ele foi a casa buscar mercurocromo. Quando a minha mãe viu o estado em que aquilo estava, ficou toda zangada. Eu não me queixava. Por causa disso, não tive tétano por um triz, tendo que ser levada, a meio da noite, de urgência, para o hospital, onde, a custo, me espetaram uma seringa na barriga.

E de tal maneira me habituei a esconder as minhas dores que acabei mesmo por me tornar a modos que estoica em relação a mim própria. 

Em contrapartida, mantive-me medrosa em relação aos outros. Por exemplo, com os meus filhos sempre fui de uma fragilidade total, por vezes absurda. Mal tinham alguma coisa, logo eu ficava num estado de nervos que frequentemente não era proporcional ao mal que os assolava. Penso que notoriamente vinha desses tempos primordiais em que o medo me estrangulava. Mas nem era preciso ser alguma coisa de especial: bastava uma coisinha. Lembro-me, por exemplo, do que eu sofria quando eles tinham os dentes quase a cair. Nunca fui capaz de os ajudar a tirá-los. Uma vez a minha filha tinha um dente preso por um fio. Já nem conseguia comer. Estávamos numas termas (um tempo abençoado, esse). E estávamos a almoçar no restaurante de lá. Com o dente preso por um fio de carne, fomos as duas ao quarto a ver se conseguíamos resolver aquilo. Mas qual quê... Só a perspetiva de poder magoá-la me deixava transida. Ela a querer que eu puxasse e eu aflita. Pior: já a sentir-me mal, quase a desmaiar. A miúda, pequena, a tranquilizar-me e a incentivar-me e eu está quieto. Tive que me sentar na cama e ela, corajosa, ao espelho, teve que resolver, sozinha, o assunto. Às vezes ainda fala disso. Uma vez foi o meu filho. Também caiu de um banco na cozinha, a mesma coisa que eu. Só que se magoou num dedo, cortou-se. O meu pânico ao ver como ele tinha o dedo, ao pensar como lhe devia doer, a minha aflição quase despropositada. Felizmente não sou de exteriorizar senão ainda mais ridículo ficaria. Fico transida, sem falar, simplesmente num temor enorme.

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E vinha para escrever sobre outra coisa e, afinal, distraí-me e acabei por me perder. Não era de nada disto que eu vinha para falar. Ia contar que, à ida para o campo, íamos a ouvir o Jaime Nogueira Pinto e o Pedro Tadeu a falarem da pandemia e das pestes ao longo da história, tema do último livro do Jaime Nogueira Pinto. E falavam de como isto vai mudar a vida e o mundo e do medo com que aprenderemos a viver porque primeiro que esta se extinga muito tempo decorrerá e, a seguir a esta, outra pandemia virá. Aprenderemos a viver com medo do invisível, do mal que nos pode chegar através de um filho, de um neto, de um amigo. E falou de como é desolador o estado da baixa de Lisboa, muitas lojas fechadas, provavelmente definitivamente fechadas. E eu pensei como deve ser frustrante e triste para as pessoas mais velhas que poderiam viver os seus últimos anos mais tranquilamente e agora a terem que andar de máscara, sem a ternura de um beijo ou abraço, longe da companhia dos seus.

À tarde, ao receber o telefonema de um amigo, soube que uns outros tinham tido covid e, mais estranho, soube que uma delas, que teve covid há quatro meses, semanas de sintomas e testes positivos, agora, num teste serológico, soube que não está imune. Foi a outro lugar fazer o mesmo teste, convencida que o primeiro estava errado, e obteve a confirmação: está como se não tivesse tido covid. E fiquei a pensar que esta porcaria desta doença, de facto, tira o tapete a toda a gente. Parece não seguir um padrão e isso mais difícil se torna de gerir. Uma roleta russa. 

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Mas isto das pandemias e dos medos até era para ser de passagem pois a minha ideia era mesmo falar da maravilha dos verdes in heaven. Do perfume do campo. Dos passarinhos e dos seus alegres e inocentes cânticos. Dos cogumelos. E da gata. 

Num blog, a escrita deve ser contida, parca. E eu, sabendo disso, esqueço-me e escrevo desabaladamente, esquecendo-me de que pouca gente deverá ter paciência para estes longos testamentos. Por isso, agora que vejo o comprimento do que já escrevi, não vou poder alongar-me a descrever o encantamento em que por ali andei. Apanhei laranjas e tangerinas, comi algumas, fotografei tudo o que vi, vagueei, maravilhei-me.

A quantidade e variedade de cogumelos continua a deixar-me espantada. Hoje até com uns redondos e peludos, coisa nunca vista, me deparei. Outros, umas bolinhas acastanhadas, compactas, superfície também a querer dar-se ares de felpuda. Outros cor de laranja, ondulados e como se de borracha, outros translúcidos, outro grande, quase azul. Uns grandes, outros minúsculos. Outros aos folhos verdes, como se de bordado inglês às palas. Não sei que terra mágica virou o meu querido e abençoado heaven para dele saírem seres tão extraordinários. Nem sei o significado disto, se é que tem significado. Mas será que, nas grutas, também vivem animais assim, às cores, seres nunca sequer imaginados? Teria graça.

E, de novo, eu a levitar por ali, silenciosa, em estado de êxtase, e ela, esfíngica, a observar-me. 

Aproximei-me, quase emocionada por ela estar ali, parada, a ver-me. Deixou-se estar. Fui-me aproximando, falando com ela. E ela a ver-me. Até que, sem querer desliguei a máquina e, ao voltar a ligar, o som de arranque a fez ir-se embora. É esquiva. Mas sinto-a como um ser superior. 

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Como é bom de ver, as fotografias foram feitas in heaven e acompanham The Lullaby Project pelas mãos de Catrin Finch & Seckou Keita

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Desejo-vos um belo dia de domingo, sem medos.

Saúde. 

6 comentários:

João Lisboa disse...

"Mas sinto-a como um ser superior"

Evidentemente. Acabou de entreabrir a porta da sabedoria.

Isabel disse...

Fotos lindas! A gata é tão bonita!

Não tenho medo da morte, mas tenho muito medo de perder as pessoas que amo... mas é inevitável. Claro que mais aceitável quando já são mais velhas e nunca na flor da idade como a Sara Carreira, ou uma criança.
Este ano perdi dois tios e gostava muito de ambos. Um deles muito ligado a boas recordações de infância, na quinta dos meus avós paternos. Temos que aceitar.

100% !

Beijinhos e uma boa semana:))

Portugalredecouvertes disse...

Passei por aqui vinda de outro blogue
gostei do texto, muito intimista e muito bem escrito :)
o medo tornou-se negócio, mas o pior ainda é que existe,
e nós somos conscientes da dor e da perda daqueles que amamos,
e isso é muito difícil de aceitar
boa semana
Angela

Um Jeito Manso disse...

Olá João,

Tive uma cadela boxer que foi uma presença amiga durante quase treze anos. Era meiga e inteligente e era um membro de pleno direito da nossa família. Todos os dias me surpreendia com a sua inteligência e sensibilidade.

Em relação a gatos sempre tive uma relação distinta. Ou melhor: distante. Não sei o que pensam. Tenho receio de fazer uma festa com receio que não gostem e se assanhem. Olho-os sempre com admiração e respeito mas sem ser capaz de pensar em 'amizade' como pensava com a minha doce amiga boxer. Os gatos parecem-me animais misteriosos, estranhamente sábios. Não têm aquela transparência e afectuosidade dos cães.

Mas, se calhar, é impressão minha. Penso sempre que deveria ser capaz de romper a barreira que me separa deles... mas nunca tive coragem...

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel,

Sim, a morte é inevitável e, por vezes, um merecido descanso. Temos que aceitar, sim, é verdade. Até não há muito eu tinha grande parte da minha família próxima viva. Era tudo gente de grande longevidade. No outro dia o meu filho pegou num álbum de fotografias e ficámos espantados com a quantidade de gente que convidávamos para as festas de anos deles, desde miúdos a graúdos. E os graúdos eram muitos. Um friso de gente da qual a minha mãe é agora a única sobrevivente. O último a partir foi o meu pai. Antes tinham sido um tio e uma tia, muito queridos, meus padrinhos de casamento. Vamos aprendendo a aceitar mas é penoso de qualquer maneira: ou porque partem inesperadamente ou porque sofrem, vendo a morte a rondar.

Mas, enfim, é o que diz: temos que aceitar.

No post de hoje, ao escolher o filme dos presentes feitos em casa pensei em si. Não é também o género de coisa que a Isabel faria de gosto?

Beijinho, Chabeli, e dias felizes.

Um Jeito Manso disse...

Olá Angela,

Fiquei contente que tenha vindo ter até este meu espaço. Escrevo como se conversasse com quem me lê e fico contente quando quem me lê sente que escrevo para si.

Obrigada pelas suas palavras. Volte sempre.

Dias felizes, Angela.