Sua poesia mudou. Sua vida mudou. Mas era assim que tinha que ser, pois a desarmonia sempre foi o seu alvo: “Eu não tenho projeto, eu nunca tive projeto”, dizia ele. Agia por impulso permanente de mudar. Revolucionário de si mesmo, sem pudores, mudava de opinião, e talvez corroborasse com Paulo Francis, mesmo em um período de sua trajetória na qual os dois pudessem estar diametralmente opostos, seguindo a máxima do jornalista (também outrora de esquerda): “Toda pessoa inteligente é contraditória. Só gente burra que nunca se contradiz”.
Gullar mudou, mas sem jamais deixar de ser Gullar, poeta que dava peso e medida a cada palavra desmedida de sua poesia, comprometida com a informação de um sentimento ou estado de espírito, mesmo quando parecia não estar.
(...) Gullar, na sua fragilidade física — era mais baixo e magro do que parecia aos que o conheceram somente pela televisão — era glutão como poucos se o assunto era o conhecimento. Sua biblioteca, que transformava sua casa, e especialmente sua sala, em um ambiente belamente claustrofóbico, misturava-se aos quadros e esculturas. Presentes que ganhou de tantos artistas sobre os quais escreveu e a respeito dos quais se calou, mas amou profundamente. Lá havia também sua gatinha, presente da cantora Adriana Calcanhoto, mais um mimo de artista, e mais uma coisa viva que lhe rendeu um poema, no qual se refere à cor dos olhos da gatinha: “olhos azuis safira”, muito mais dignos de interesse do seu sujeito lírico do que os mistérios do mundo, ante os quais se rendia, deles nem querendo saber: a vida presente, os homens presentes, o tempo presente.
[in A poesia morreu de Carlos Augusta Silva na Revista Bula]
Com raras exceções
os minerais não têm cheiro
quando cristais
nos ferem
quando azougue
nos fogem
e nada há em nós que a eles se pareça
(...)
Rígidos em sua cor
os minerais são apenas
extensão e silêncio.
Nunca se acenderá neles
– em sua massa quase eterna –
um cheiro de tangerina.
Como esse que vaza
agora na sala
vindo de uma pequena esfera
de sumo e gomos
e não se decifra nela
inda que a dilacere
e me respingue
o rosto e me lambuze os dedos
feito uma fêmea.
(...)
E não obstante
se digo – tangerina
não digo a sua fresca alvorada
que é todo um sistema
entranhado nas fibras
na seiva
em que destila
o carbono
e a luz da manhã
(durante séculos
no ponto do universo
onde chove
uma linha azul de vida abriu-se em folhas
e te gerou
tangerina
mandarina
laranja da China
para
esta tarde
exalares teu cheiro
em minha modesta residência)
(...)
não de plantas e frutas
não dessa
fruta
que dilacero
e que solta
na sala (no século)
seu cheiro
seu grito
sua
notícia matinal.
(...)
O cheiro das tangerinas, Ferreira Gullar (10 de Setembro, 1930 – 4 de Dezembro, 2016)
Ferreira Gullar, poeta, crítico de arte e ensaísta, ilustra o nascimento da poesia a partir de uma situação pessoal. Da experiência repetida, surge um encantamento, revela-se uma nova visão sobre algo já conhecido. Abre-se um novo mundo até então nunca vivido: “É isso que faz o encantamento da poesia, porque o resto é tudo previsto.” Conferencista do Fronteiras do Pensamento 2015.
Ferreira Gullar explica como nasceu um de seus principais e mais autobiográficos trabalhos, “Traduzir-se”: “Uma parte de mim é todo mundo; outra parte é ninguém: fundo sem fundo”.
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(Fotografias feitas na manhã deste domingo que começou bem chuvoso.
Na primeira, o cor de rosa é uma ponta da minha esvoaçante écharpe)
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Desejo-vos, meus Caros Leitores, uma semana feliz.
Saúde, sorte e amor para todos.
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