Na Revista do Expresso, Ana Soromenho escreve um interessante artigo sobre personagens literários que ganham contornos de gente de verdade e que acabam por ficar para a história de forma vívida, como se tivessem existido de verdade.
Vários exemplos são referidos, alguns escritores foram ouvidos (incluindo o Valtinho a quem parece que toda a gente teima em incluir na categoria dos escritores). Se há um Mário de Carvalho que cria, usa e depois arruma os seus personagens, há os outros que, de forma geral, ficam com eles a viver uma vida paralela dentro da sua cabeça.
Tenho pensado por vezes nisto.
Quem é mais real? Personagens como uma Maria Eduarda (de Os Maias de Eça de Queirós) ou um Ravic e Joan Madou (do Arco do Triunfo de Erich Maria Remarque) ou Robert Jordan e Maria (de Por quem os Sinos Dobram de Hemingway), e tantos, tantos outros, que quem teve o prazer de conhecer não mais esquecerá, ou o Zé Maria dos Anzóis que teve carne e osso mas de quem nem os bisnetos se calhar ouviram falar quanto mais eu e você, meu Caro Leitor?
(Foi pura coincidência a repetição da Ingrid Bergman. Lembrei-me dos personagens dos livros e, apenas ao escrever sobre eles aqui, me dei conta de que, em ambos os casos, foi Ingrid Bergman que lhes deu corpo. No entanto, a própria Ingrid Bergman já se foi há uns anos e são essencialmente as personagens que interpretou que ficarão na nossa memória, mais do que, propriamente, a vida real dela - que, por acaso, até foi uma vida bem cheia de romance e aventura)
Na minha vida fora da internet não sou nada de me colocar no centro da conversa mas, aqui, em que não posso ouvir as vossas opiniões, tenho eu que fazer a conversa toda. Por isso, trago à liça tantas vezes o meu caso pessoal. Percebam que não me considero referencial para coisa nenhuma mas, à falta de quem aqui exerça o contraditório, tenho eu que me chegar à frente.
Vem este aparte agora a propósito de que, também a mim - que não me considero escritora, mas nem de longe nem de perto mas que na minha useira e vezeira insustentável leveza do ser, já me deitei a ficcionar por estas bandas uma dúzia de vezes - me acontece ficar com alguns personagens a viverem ao meu lado, uma existência quase paralela à minha.
Lídia, a mulher triste, Eva, a sedutora, Isabel, a ciumenta (cuja história nunca foi acabada), Tomás, o carpinteiro calado e digno, Paulo, o homem que restituíu o sorriso a Lídia, são alguns em quem penso muitas vezes. O que andarão a fazer? Por onde andarão?
Por vezes, dou por mim curiosa como se eles fossem gente de verdade. Para mim são. Dei-lhes um bom bocado da minha vida e depois ganharam vida própria. Quando me sentava aqui a escrever nunca sabia o que ia sair, eram eles que me contavam o que faziam. Afeiçoei-me a eles. De cada vez que acabei uma das minhas histórias foi sempre com pena por me ir separar deles.
Ora se isto acontece comigo e com os meus personagens, imagino o que se passará com escritores de verdade.
O mundo é habitado por muitos seres, uns a quem o sangue alguma vez correu nas veias e outros que, apesar de sempre terem sido intangíveis, são eternos.
*
E, já agora, por insustentável leveza do ser, aqui vos deixo o trailer da adaptação do livro homónimo de Milan Kundera, com realização de Philip Kaufman
Daniel Day-Lewis é Tomas, Juliette Binoche é Tereza e Lena Olin é Sabina
(E não me venham dizer que Tomas, Tereza e Sabina nunca existiram... Então eu não li a história deles? Eu não os vi depois? Não me lembro eu tão bem, até, do cão que a Tereza tinha e do desgosto tão grande no fim? Então não me lembro? Vão agora dizer-me que inventei tudo?)
*
Desejo-vos, meus Caros Leitores, um belo domingo.
1 comentário:
'Escrevo-te, logo existes'?, penso que sim, o problema é daqueles, que não penso "mesmo" e no entanto existem e não deixam de existir caso pense que não existam.Um aparte "A teoria de Darwin aplica-se a Portugal?"
Enviar um comentário