sábado, outubro 05, 2013

Os mortos de Lampedusa, os pobres, tão pobres, que teimam em vir morrer ao largo das belas praias de Lampedusa. Dias de lágrimas, diz Francisco. Concordo. Junto as minhas às dele e aos de todos os que choram por aqueles por quem tão poucos choram.


Há assuntos em que, para eu falar neles, tenho vontade de me curvar, de me ajoelhar, de me embrulhar numa manta escura, sinto frio quando penso neles, invade-me por dentro uma densa escuridão. E faltam-me as palavras. Sinto, sobretudo, um aperto no peito, uma garra a apertar-me o pescoço, vergonha e aflição, vontade de me recolher da luz, impotência absoluta.

Durante os meus dias de trabalho, põem-me problemas para os quais eu devo arranjar soluções. Estou formatada para isso, para ouvir falar de problemas e, acto contínuo, a minha cabeça começar a pensar em formas alternativas de os resolver e, mentalmente, contrasto as vantagens e desvantagens de cada um. Por vezes vêm falar-me de problemas e, enquanto os ouço, já eu estou a delinear um caminho e, no entanto, estão a reportar por reportar pois já o resolveram. Portanto, nem valia a pena eu ter estado logo a equacionar soluções. Mas já está arreigado em mim. Grande parte da minha formação académica passou por resolver problemas, fazer modelos, demonstrar conceitos; grande parte da minha vida profissional passa igualmente por isso.

Mas há situações para as quais não vejo solução. É em alguns desses casos que sinto angústia. 

Tantas vezes ouço pessoas a lamuriarem-se de pequenos nadas. Sei que, por eu ter uma visão optimista e descontraída face à vida, algumas pessoas acham que eu sou superficial, ou que invento uma descrição fantasista da minha vida, que o que aqui escrevo é uma abstração. 

Mas não, sou mesmo assim. Desvalorizo as pequenas coisas porque sei que quase tudo tem solução ou, não tendo solução, não são um beco sem saída, há maneira de ir por outro lado, ou são situações transitórias para as quais há que arranjar resistência e criatividade para as ultrapassar. Sinto frequentemente que, se as pessoas se deixam atolar em coisas que não são problemas é porque, por inércia ou preguiça, não tentam dar a volta à sua vida ou porque gostam de carpir. Outras vezes deixam-se devorar pelos males dos outros ou abater por temas tão genéricos que não têm solução possível. Tantas vezes insignificâncias ou imensidades absurdas: ou porque está calor, ou porque ouvem barulho na mesa ao lado, ou porque os colegas do trabalho são mesquinhos, ou porque o marido ou namorado não é atencioso, ou porque há muita injustiça e maldade no género humano.

Face a lamúrias sobre assuntos destes penso sempre que não são problemas pois ou têm mil soluções, é só escolher uma e seguir em frente, ou não têm solução nenhuma e é escusado angustiarmo-nos com o que não tem solução (o que não tem remédio, remediado está).

Mas depois há os outros: ou as grandes desgraças pessoais (as doenças fatais, os acidentes dramáticos, as perdas que ferem aqueles que amamos, as ausências irreversíveis) ou as grandes desgraças colectivas (guerras sem quartel, miséria absoluta, traições inclementes e sem rosto). Perante estes, se por vezes consigo abstrair-me, pôr para trás das costas, há sempre uma parte de mim que fica em sofrimento.

Não gosto de falar dos meus sofrimentos. São pequenos quando comparados com a dimensão do que os origina.

E temo usar palavras que não saibam respeitar o sofrimento dos que verdadeiramente sofrem. De facto, o que sinto é que apenas o silêncio seria adequado a momentos assim.

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Música, por favor




No entanto, de vez em quando, não consigo calar a angústia que me atravessa. Hoje sinto-me assim, inútil.

Lampedusa é uma ilha italiana do arquipélago das Ilhas Pelágias no Mar Mediterrâneo. As águas são transparentes, a paisagem convida ao lazer, ao sonho.




Contudo, ao largo, onde a fundura do mar perde transparência, quantos corpos jazem?

A Eritreia e a Somália são países localizados no Chifre da África. A democracia é uma miragem, a economia é débil, a fome é muita, as guerras e perseguições fazem parte do quotidiano da população.




Mas, quem diz a Eritreia e a Somália pode dizer a Etiópia, o Egipto ou outros países que, por uns ou outros motivos, não acolhem a esperança da sua população. Todos os anos são inúmeras as pessoas que se metem em pequenas embarcações em fuga, buscando um mundo melhor.


Pensemos: o que sabem da Europa os mais pobres dos pobres, os que não mal puderam estudar, os que são perseguidos, os que não têm trabalho,  os que não têm o que comer, os que não conseguem pensar num futuro decente dos seus filhos?

Saberão de crises da Europa, dívidas insustentáveis, milhões de desempregados, lideranças fracas? Não, não sabem nada, não podem saber.

Apenas sabem que querem fugir e, no meio da miséria e da infelicidade, teimam, ainda, em sonhar com uma outra vida.

A maior parte são homens que vêm sozinhos, deixam as famílias para trás, desenraizam-se e vêm, mas há também mulheres que pegam nos filhos pequenos ou que ainda os têm no ventre e que, ignorando toda a espécie de riscos, se aventuram - tamanho o amor pelas crianças que puseram no mundo, tamanha a capacidade de sonhar.


Os barcos são frágeis para tanta gente, são barcos sem condições de qualquer espécie.

Os que conseguem chegar ao seu destino, chegam muitas vezes desidratados, esfaimados, e contam depois que foram atirando cadáveres pelo caminho. 

Mais humilhante e trágico é geralmente o que lhes acontece: são 'apanhados' à chegada e enviados de volta para a miséria da qual tinham fugido.



Não raramente há naufrágios, são embarcações muito frágeis.

Este último barco que naufragou com pesadas perdas trazia cerca de 500 pessoas a bordo. 


Perdidos no meio do mar, sem possibilidade de emitirem avisos, resolveram fazer fogo, talvez alguém os visse. Mas o fogo espalhou-se. Imagine-se o que é um incêndio num barco carregado de gente (de gente assustada, cheia de fome, sem forças). 


Diz-se que alguns outros barcos, barcos pesqueiros, terão visto a aflição mas que não ligaram, já estão habituados. 

É a indiferença, a habituação, perante a suprema miséria alheia.

Mas outros tentaram fazer alguma coisa, sem grandes resultados, contudo.

O que se sabe é que parece que os mortos confirmados já ultrapassam os cem mas que se sabe que são forçosamente mais, teme-se que ultrapassem os trezentos - mas talvez nunca se encontrem, agarrados no fundo do mar, os corpos a desfazerem-se. Mas para que serve um corpo inteiro quando os sonhos se desfazem?


Não é costume haver tantos mortos assim em Lampedusa. 


Depois de anos de fome, repressão e medo, aqueles que antes de serem corpos enfiados em sacos de plástico, eram gente. Eram pessoas que se aventuraram, ignorando pavores, tudo para tentarem vir ao encontro de uma vida melhor.

E, afinal, depois de viagens que devem ser um terrível pesadelo, vêm ao encontro da morte às portas da Europa com que tão ingenuamente sonham.

As ruas do cais estão pejadas de sacos.

Dentro dos sacos, jazem os corpos daqueles que tiveram um sonho que jamais se concretizará. São eles, os mais sonhadores dos sonhadores, os mais corajosos dos corajosos. Em Lampedusa não sabem o que fazer com tantos corpos.



Nessa mesma noite um outro barco chegou com 463 pessoas. 

A 30 de Setembro 13 outras pessoas tinham morrido, obrigadas pelos traficantes a atirarem-se à água apesar de não saberem nada. 

Em Agosto, outras seis pessoas tinham morrido depois de se terem atirado à água depois da embarcação em que vinham e que trazia mais de cem pessoas ter encalhado.


Uma mortandade terrível: morte de pessoas, morte de sonhos. E a Europa a assistir impotente a isto.

Como podemos nós fazer alguma coisa para resolver um desastre tão permanente? Não sei. E tenho tanta, tanta pena por eles, tanta, tanta, sinto-me tão impotente, tão incapaz de acreditar que haverá uma solução.


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A música é de Arvo Part,  [Te Deum] Berliner Messe - Veni Sancte Spiritus

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Desejo-vos, meus Caros Leitores, um fim de semana muito bom.

13 comentários:

Anónimo disse...

Há dois tipos de problemas, os que dependem de mim e só de mim para os resolver, e os que dependem da vontade dos outros para ajudar-me a resolve-lo.Imagine-se numa ilha com outra pessoa, há coisas que vai resolver sozinha, e há outras que por muita vontade que tenha em fazer só o pode, se o outro tiver vontade de ajudar.E como isto é tão elementar, suponho que seja das altas horas da noite em que escreve, já deve ser sono a mais.
Para mim só não há solução para a morte,mas isto já deve ser influência deste senhor - https://pt.wikipedia.org/wiki/O_mundo_como_vontade_e_representa%C3%A7%C3%A3o

Anónimo disse...

"Sinto frequentemente que, se as pessoas se deixam atolar em coisas que não são problemas é porque, por inércia ou preguiça, não tentam dar a volta à sua vida ou porque gostam de carpir", pois o problema é esse, é que o problema é uma subjectividade,e o que para si é um palito para outros é uma sequoia.

Anónimo disse...

há uma série na RTP2 , chama-se "No limite", uma das personagens, não sai de casa e quando vai até à porta da saída é uma vitória,isto não é problema para a maioria e por isso é considerado um não problema,é o que chamo de ditadura dos números.Tudo o que seja normal a maioria da pessoas fazer não é considerado problema,e os que acham que é um problema como disse, gostam de carpir.Será?

Anónimo disse...

e para terminar os comentários ao post. Há os problemas que vamos resolvendo, há os que ficam resolvidos,e os que não se resolvem, mas isto tudo leva a outro problema, nunca mais somos como antes do problema,e nunca é para melhor que vemos o mundo.Alguém escreveu " a felicidade e a ignorância andam de mãos dadas".Claro que isto não invalida , momentos de felicidade, estavamos fod... se assim não fosse.

Anónimo disse...

os problemas matemáticos que aqui postei, são insolúveis (sequoias), até aparecer um tipo que palite os dentes com eles,por isso o tempo também faz parte da solução.e podemos agradecer à igreja este atraso, como disse o Papa Francisco, é uma vergonha, e eu digo que sim.

Anónimo disse...

e há uma frase de Estaline que adoro (dele,só esta frase), porque representa o que é a realidade " uma morte singular é uma tragédia, milhões é estatística"

Anónimo disse...

em um semana de secrer story - https://www.facebook.com/secretstorycasadossegredos, 637 mil gostos, a petição(stopvivisection),para portugal precisa de 16500 e só tem 4365, em mais de um ano.Carpir é falar deste país.Não houve um abovinado de um orgão de comunicação que falasse sobre isto, mesmo o expresso a fazer opinião á 40 anos

margarida disse...

O que sucede é a tragédia dos barcos negreiros revisitada em tempos ditos civilizados: uma enormidade sem perdão!
Como o foi a guerra dos Balcãs no séc. XX depois da Segunda Grande Guerra, como dão os dramas de Chernobyl e Fukushima após Hiroshima e Nagasaki. Os homens sabem o que sucedeu e o que pode repetir-se e, no entanto, permitem que volte tudo de novo, os mais hediondos factos novamente, como um castigo perpétuo...
Não aprendemos.
Nem individual, nem colectivamente.
Só espero que, de facto, exista um Além melhor.
Porque estes sofredores bem o merecem.

Pedro disse...

Já uma vez tive a oportunidade de lhe dizer o quanto me toca os seus escritos. Desta vez impressiona-me a beleza do texto sobre uma tão grande tragédia.
Obrigado

Um Jeito Manso disse...

jrd,

Tenho que lhe pedir desculpa. Estava no carro quando vi, no telemóvel, o seu comentário. Quando ia publicá-lo, o carro abanou um pouco e o dedo deslizou para o "eliminar". Aquilo é tão pequenino, no telemóvel, que qualquer deslize faz com que se clique no sítio errado.

De qualquer maneira, se bem estou recordada, fazia um trocadilho com a célebre frase de Giuseppe Tomasi di Lampedusa: "Para que as coisas permaneçam iguais, é preciso que tudo mude." trazendo-a para estes tempos de inclemência e naufrágio.

As minhas desculpas.

Anónimo disse...

não se usa o telemóvel quando se conduz-))

Um Jeito Manso disse...

NOTA:

Em relação ao meu comentário anterior, não era eu que ia a conduzir...!!!!!!

jrd disse...

Um jeito manso,
Não se preocupe, acontece.
O meu comentário está reflectido no poste que escrevi no bth.