quinta-feira, setembro 09, 2021

A dor dos outros

 






Uma vez, não me lembro porquê, fui a casa à hora de almoço e regressei de autocarro. Foi há muito tempo. Ao meu lado sentou-se uma mulher mais velha do que eu mas que, certamente, seria mais nova do que sou agora. Eu ia calada, do lado da janela. Ela começou a falar. Contou-me que o filho se drogava, que a roubava, que lhe batia. Eu estava quase petrificada. Era muito nova nessa altura e ainda não estava habituada a que estranhos me contassem os seus dramas. Não sei o que lhe disse, não sei se na altura estava preparada para dizer o que, numa situação de angústia, uma pessoa precisa de ouvir. A senhora contava que morava num rés-do-chão e que tinha mandado colocar grades para o filho não entrar. Dizia que, sempre que ele conseguia entrar ou sempre que ela ia buscá-lo à esquadra ou que o apanhava caído na rua e acabava por deixá-lo ficar em casa, ao fim de pouco tempo, ele acabava por desaparecer e que, sempre que desaparecia, ela já sabia que ele tinha roubado alguma coisa. E que outras vezes, quando ela escondia o pouco que tinha, ele a ameaçava e agredia. 'Já me bateu tantas vezes...', disse 'tenho tanto medo dele'. Tinha a voz presa, por vezes quase não conseguia falar. Quando cheguei à minha paragem tive pena de sair antes dela, sentia que deveria continuar a ouvi-la. Nunca mais me esqueci desta mulher. Lembro-me perfeitamente dela e do que me disse. Não me lembro de uma única palavra que eu tenha dito.


Outra vez foi a senhora que, por vezes, via a passear o cão e que tinha um filho estranho que devia morar com ela. O filho deveria ter uns trinta e tal ou quarenta anos e era esquisito. O meu marido dizia que, se calhar, ele tinha tido problema com drogas e estaria a recuperar. Costumava andar com uma grande máquina fotográfica, uma objectiva das boas, equipamento dir-se-ia que profissional, e estava quase sempre a fotografar não sei bem o quê, acho que pormenores. Quando eu estacionava o carro, por vezes via aquele trio, a mãe, o filho e o cão. Uma vez estacionei e ela estava sentada no muro de uma das casas que dá para o pequeno parque onde eu tinha estacionado. Vi-a levantar-se e vir na minha direcção. Penso que, na altura, descrevi essa situação aqui no blog. Chegou-se ao pé de mim e disse-me: 'Morreu o meu filho', um fio de voz. De facto, estava vestida de preto. Lembro-me de me ter sentido aterrada perante a dor imensa daquela mãe. Estava numa angústia imensa. Disse que não conseguia estar em casa, que só queria estar no cemitério. Que ele tinha adoecido e que ela nunca tinha percebido que a doença era tão grave. Não lhe tinha ocorrido que o filho estivesse em vias de morrer. Que tinha sido muito rápido. Que quando lhe disseram que o filho tinha morrido não conseguia acreditar. E eu ouvia, esmagada pela dor dela, também sem saber o que dizer. Não sei o que lhe disse. Só me lembro do que ela me disse. Fiquei ali na rua a ouvi-la até ela querer, esmagada pela dor. Quando contei ao meu marido ficou muito admirado não apenas pela morte do filho da senhora como pelo facto da senhora, sem me conhecer, sem nunca antes ter falado comigo, ter chegado ao pé de mim para me dizer tudo aquilo.

Uma vez íamos, à noite, para a nossa casa no campo e, pelo caminho, parámos no supermercado da cidade mais próxima. Eu tirei a senha para o peixe e o meu marido foi comprar fruta, legumes, queijo -- essas coisas. Eu fiquei à espera da minha vez. Estavam várias outras pessoas à espera. Então, uma das pessoas, uma mulher, abeirou-se de mim e começou a contar-me sobre os problemas que tinha com o filho, separado, incapaz de se fixar num emprego, só a falar em ir para fora, com uma criança pequena de quem não queria saber. A mulher, à beira das lágrimas, dizia que não sabia o que seria do filho se fosse para outro país, que ficaria sem saber como é que ele estava. E que perderiam o contacto com a criança. Que não sabia o que fazer. Que achava que ia perder o filho e o neto. O meu marido, que se tinha despachado, ao ver a senhora a falar comigo, ficou de longe, penso que era alguma pessoa minha conhecida. Quando chegou a vez dela ser servida, ao ir-se embora, agradeceu-me. Quando contei, o meu marido voltou a dizer que não percebe como é que, do nada, alguém chega ao pé de uma pessoa que nunca viu e começa a falar de assuntos tão pessoais. Também acho estranho. Mas é isto que acontece.

Ultimamente, quando percebo que isso está prestes a acontecer, afasto-me um pouco, agarro-me ao telemóvel para que as pessoas se retraiam. Aconteceu no outro dia à porta da farmácia. A lotação é limitada pelo que a espera se faz no exterior, esperando a vez da nossa senha. Estava ali e vi uma senhora que se foi chegando. Percebi que não haveria de faltar muito para me falar de assuntos muito seus. Fiz de conta que não tinha percebido e dei uma volta por ali. Não sei porque agora evito. Creio que é porque receio não estar à altura e não ter a palavra ou a atitude certa. 

Lembro-me de quando salvei uma mulher que tinha tentado suicidar-se. Também o contei, não sei se aqui se no outro blog. Andávamos a caminhar à beira rio e o meu marido foi por um lado e eu quis ficar ali, não sei se a fotografar, se quê. Já era lusco fusco ou noite, também não recordo com exactidão. Havia o barulho das ondas a bater na amurada. Só eu estava ali. O meu marido detestava que eu ficasse para trás, em locais ermos, ainda por cima já sem luz. E, então, pareceu-me ouvir uma voz, um choro, a vir da água. Abeirei-me e vi que estava uma mulher dentro de água, tentando segurar-se ao muro. Mas as ondas puxavam-ma e, por vezes, desaparecia. Quando me viu, suplicou-me que a ajudasse, suplicou-me que ficasse ali, que não a deixasse sozinha. Sem ver vivalma, sem ver o meu marido, sem saber se haveria de ficar a falar com ela se sair dali para ir em busca de alguém, vivi uns instantes de aflição. Não vou descrever em pormenor mas consegui chamar ajuda. Estive o tempo todo a dizer-lhe que se aguentasse, que tudo se iria resolver. Ela, mesmo quando estava a ser puxada com cordas, não parava de me pedir que não a deixasse, que a ajudasse. A custo, os bombeiros conseguiram resgatá-la. Estava gelada, perturbada. Pediu-me que ligasse ao marido, quis que fosse eu a falar. Pedi ao senhor para ir ter ao hospital. Ela não me largava a mão, pedia-me 'ajude-me, ajude-me'. Disse-me: 'sou muito infeliz'. Queria que eu fosse com ela na ambulância mas os bombeiros não deixaram. Fiquei muito perturbada. A mão gelada dela agarrada à minha não me sai da memória. Não a procurei no hospital. Pensei que ela deveria ter apoio clínico especializado, não o apoio de uma leiga, de uma desconhecida. Mas não sei se fiz bem.

Mesmo aqui já recebi apelos aflitos, pedem-me que lhes ligue e enviam-me o número de telemóvel ou pedem-me que vá ter a alguns lugares, já me disseram que não sabiam a quem mais recorrer, pedem-me ajuda, que não aguentam mais, percebo que estão no limite. Não acedo, não ligo, não me encontro. Tento ajudar de outra forma, tento que procurem ajuda especializada. Não tenho preparação para lidar com situações limite. Tenho receio de falhar.

No outro dia, quando fiquei em observação no hospital, perto de uma jovem suicida que toda a noite gritou e chorou, tive muita vontade de ir falar com ela. Várias vezes me soergui e me preparei para me ir sentar ao lado dela. Mas ela estava rodeada de enfermeiros que a seguravam e atavam à cama, e eu própria tinha que estar em repouso -- não iam aceitar. E, depois, que lhe diria eu? 

Mas, se calhar, em situações assim, não é preciso dizer muito, se calhar basta ouvir e sentir o sofrimento que os outros sentem.

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Excerto de pinturas de Pieter Bruegel, o Velho, ao som de A Garota Não que interpreta Mediterrâneo

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Desejo-vos um dia bom

2 comentários:

Estevão disse...

Não é apenas a comunicação oral entre si que o “ser eminentemente social” reprime. Também reprime a comunicação via tacto. Isso está bem patente nas crianças. Não há criança que não faça um esforço para falar com outras crianças. E não há criança que fale sem tocar. E, parece-me, há uma fase em que elas interiorizam que isso não se deve fazer, como se fosse um pecado. Parece-me que aqui está a origem de muitos dos nossos recalcamentos.

Uma cultura assim, tendencialmente individualista, precisa de um acontecimento importante para banir a barreira que isola as pessoas. É a morte do filho, como nos conta a UJM, mas também é o golo no futebol que leva os jogadores a tocarem-se com todo o à vontade, tudo isto sem que haja qualquer ponta de recriminação social. Em termos de tacto, ainda se tolerava que um adulto fizesse uma pequena festa a uma criança. Mas isso já era, sobretudo depois da percepção da pedofilia. E com o fim da obrigação social de salvar os outros, idem, aspas, aspas. Não falar, não tocar, não olhar ..

O que resta neste “ser eminentemente social”, é a vontade de falar com os outros, é a vontade de tocar nos outros.
E digo tudo isto com uma profunda “mea culpa”. Eu que fiquei todo indignado quando um dia, num subúrbio que não conhecia, entrei num café grande, também desconhecido, totalmente vazio, sentei-me num dos seus cantos, e o cliente seguinte, o segundo, no meio de todo aquele espaço vazio, optou por acomodar-se na cadeira que pertencia à mesa que eu ocupava. Passamos a ser dois naquele café enorme. Tudo normal. O anormal estava na minha indignação.

Anónimo disse...

Parecem relatos extraídos de filme tipo Eat, Pray, Love. Fui uma vez de autocarro e uma senhora abeirou-se de mim. Há muita gente em sofrimento atroz, é normal acontecerem encontros assim meia dúzia de vezes na vida de qualquer pessoa, por muito lineares que ela e a sua vida sejam.