domingo, abril 08, 2012

Onde a propósito de 'O Bem e o Mal' de Manuel S. Fonseca se fala de 'Não de todo o coração' de Manuel António Pina e onde se mostram fotografias de Sebastião Salgado, se interroga sobre o grande enigma da mente humana e se mostra uma pintura de Salvador Dali - e tudo ao som da Patética de Beethoven. Não sei se é grande programa para um Dia de Páscoa mas foi o que me ocorreu


Música por favor

Beethoven - Sonata nº 8 para piano (Patética), por Daniel Barenboim


Charlot


A propósito da crónica de Manuel S. Fonseca no Expresso que também pode ser vista no Escrever é Triste e que dá pelo nome de O Bem e o Mal e na qual fala de Charlie Chaplin, pessoa de mau feitio e carácter não totalmente piedoso, lembrei-me de uma outra escrita em 2008 por Manuel António Pina em 2008 com o título Não de Todo o Coração.

Transcrevo alguns excertos:

Deixem-me parafrasear Beethoven: a bondade é a única forma de superioridade (não gosto da palavra, mas é a que usa Beethoven). A primeira vez que ouvi isto - e ouvi-o como se ouvem coisas que sempre soubemos mas não sabíamos que sabíamos -, perguntei-me se conheceria alguma boa pessoa. E conheço. Pelo menos, três ou quatro (sou um privilegiado). No entanto, o nazismo serviu-se de Beethoven, como se a própria beleza não fosse imune à maldade.

Rapazinho - Fotografia de Sebastião Salgado

E Manuel António Pina refere um poema escrito há cerca de 50 anos por um miúdo, o Ferraz, então com 12 anos, que vivia num Centro de Recuperação de Crianças:

                       Eu quero ser bom,
                       mas não de todo o meu coração
                       porque a bondade é intolerante,
                       é uma fortaleza contra os maus

E continua com um outro poema em que um miúdo, o Paiva, na altura com 8 anos, falava dos 'maus':

                      Os maus querem matar
                      o Nosso Senhor
                      com um chicote,
                      andam com setas.
                      Pregaram Nosso Senhor na cruz
                      atiraram-lhe setas
                      a ver se ele diz ai,
                      andam com cassetetes
                      os anjos maus,
                      andam à procura do Nosso Senhor
                      e o S. José a fugir com o cavalinho.
                      Depois ele parou em casa
                      depois deitaram o anjinho na cama.

E continua Manuel António Pina:

Por outro lado, a  bondade, como a beleza e como a justiça, pode ser terrivelmente destruidora, a bondade pode ser má.

Einstein e Mileva, a sua primeira mulher

Uma das mais inquietantes descobertas da minha juventude, foi a de que muitos dos meus ídolos eram feios, porcos e maus, que Pound e Eiolt eram anti-semitas, que Rilke era uma oportunista, que Chaplin batia na mulher, que Einstein se aproveitara de Mileva, nunca conhecera a filha Liserl e abandonara o filho mais novo, demente. 

É um pouco inquietante, de facto. Como podem pessoas até um pouco mesquinhas produzir obras grandiosas, pessoas lúgubres serem, noutra faceta da sua vida, divertidas; como pode a mente humana desdobrar-se de forma tão antagónica?

Salvador Dali - O enigma infinito


E como podem tantas pessoas fechar-se no seu pequeno mundo e não ver o grande mundo à sua volta? 

E como podem tantas pessoas, em nome da bondade, serem tão intolerantes, tão insensíveis, tão cegas às necessidades e anseios dos outros, como podem ser tão más?

E, mais inquietante ainda, como podem tão poucas pessoas causar mal a tantas pessoas?

Como podem as pessoas esquecer o sentido da palavra bondade?

[Não a bondade das pessoas boazinhas, moralistas, intolerantes, cheias de pequenas certezas, mas a bondade das pessoas imperfeitas que querem, acima de tudo, o bem de todas as pessoas.]

Rapariga numa escola - Fotografia de Sebastião Salgado

Há algum tempo, durante uma acção de voluntariado numa escola de uma zona carenciada, pedi aos miúdos (que tinham à volta de 14, 15 ou 16 anos) para escreverem algumas palavras e dizerem, a propósito, qualquer coisa que lhes ocorresse. E disse algumas palavras entre as quais a palavra bondade. Uma das raparigas, uma muito faladora, virou-se para mim, muito admirada: 'Bondade? Bondade...? O que é que isso quer dizer...?' e não sabia mesmo. Expliquei-lhe e ela sorriu, encolhendo os ombros como se eu estivesse a falar de metafísica, coisa totalmente deslocada naquele contexto. Várias vezes essa rapariga me disse que não queria estudar, dizia que não aprendia nada de útil, que só estava na escola a perder tempo, estava desejando ter idade para poder desistir. Eu andava intrigada com aquilo, aquele desinteresse absoluto, aquela vontade de ir para casa. Um dia perguntei-lhe. Ela explicou-me 'Quero ir tomar conta dos meus irmãos para a minha mãe poder ir trabalhar'. Simples, afinal.

Já nem sei onde é que quero chegar com esta conversa, com esta deriva. Comecei com uma ideia mas acabei aqui, nem sei como. 

Talvez queira apenas dizer que mais do que palavras vãs, moralismos sem sentido, intolerâncias absurdas, deveríamos antes pensar nas crianças, nos que mais precisam, nas pessoas em geral, no seu bem estar, no seu futuro, na segurança, na estabilidade, no desenvolvimento, na liberdade.

Ninguém é perfeito, há pessoas absolutamente contraditórias, parecem uns anjos mas afinal são pérfidas criaturas. Pode acontecer que, apesar disso, deixem uma obra fantástica. Mas o pior é quando nem isso, quando deixam atrás de si aridez, pobreza, devastação.

Mas hoje é dia de renascimento, dia de todas as esperanças. Por isso, vamos esperar que venham tempos que justifiquem o sacrifício de todos os que, de uma maneira ou de outra, se sacrificam, se esforçam, lutam por uma vida melhor.

Crianças - Fotografia de Sebastião Salgado


Tenham, meus Caros, um belo dia de Domingo de Páscoa.


10 comentários:

Alice Alfazema disse...

Bom-dia!
Gostei muito do texto. As verdades são coisas simples.
Feliz Páscoa.
Um abraço.

Isabel disse...

Lindo texto para um Domingo de Páscoa.
Um Domingo feliz
Um abraço

Maria disse...

Querida Jeitinho:
Ao som da Patética, sorrio vendo Charlot, comovo-me com as fotos de Sebastião Salgado, baralho-me toda, com Dali.
Quem vê caras, não vê corações, diz o povo. Todos temos defeitos e sabemos disso. O que nos custa a admitir, é que aqueles que admiramos, por uma ou outra razão, os têm.
Todos os ídolos têm pés de barro.
Custa a admitir, mas é assim.
Já vi, caírem-me aos pés, muitos ídolos. Ao principio, sentia-me revoltada. Agora, custa-me, mas aceito.
Aos meus filhos já pedi, que me amassem, mas nunca pensassem, que sou perfeita. Sou um ser humano e quero que me lembrem assim: Excessiva no amor, meiga (ma no troppo), irritadiça, capaz de tudo por eles, mas incapaz de ser hipócrita. E tenho mais dfeitos. A minha maior qualidade, é a lealdade, seguida da teimosia, que às vezes, também é defeito.
Sou assim e, nem tento mudar.
Beijinho. Descanse.
Mary

Anónimo disse...

Belíssima Sonata! O Mal, no caso o Nazismo, aproveitou-se igualmente do grande Wagner (este sim, um anti-semita assumido na sua época). Sempre me impressionou a singela campa de Beethoven, onde se encontra apenas escrito: “Beethoven”. Nada mais. E igualmente o facto de o seu funeral ter atraído uma multidão imensa. A sua peça, “Fur Elise”(Therese?), tão divulgada hoje em dia e que se pode escutar nas ruas de Viena (e Praga), tem explicações românticas muito curiosas.
E nisto de génios, ou gente de excepção por razões várias, vá lá tentar explicar-se o porquê de certos comportamentos ou opções! No caso de Ezra Pound, um grande poeta, que foi um apoiante do fascismo italiano, concilio com dificuldade a sua poesia (que li alguma) com aquela sua opção.
O conceito de bondade não deve estar distanciado da sua prática, quer-me parecer. Interessante, a definição dada por Beethoven (esse génio do Romântico, que ele iniciou).
Por oposição, vem-me á mente a “Maldade” e uma visita (turística) que fiz ao campo de Auschwitz, não muito longe de Cracóvia, aqui há uns anos atrás. Ao visitar, vagarosamente e em silêncio, tudo aquilo, aquela montra do que foi o horror nazi, perguntava-me: Como foi possível tudo aquilo? Porquê? Que “pessoas” foram capazes de semelhante coisa? Que tipo de gente era aquele conjunto de oficiais que depois de terem enviado mulheres, crianças, homens, idosos, etc, só por serem diferentes, para as câmaras de gaz, de seguida regressavam a casa, calmamente, para estarem com as suas famílias, que viviam ali perto, pegando ao colo ou acariciando os seus filhos, as suas mulheres, acarinhando os seus mais velhos parentes?
A Humanidade é por vezes difícil de compreender. Já Marco Aurélio, nas suas “Meditações” tinha chegado a essa conclusão (li, em tempos, com vagar, uma tradução daqueles seus pensamentos, uma tradução inglesa do grego antigo, e o imperador-filósofo estóico está, ainda hoje, muito actual, em várias das suas considerações, designadamente quanto aos princípios, ética e valores).
As fotografias de Sebastião Salgado – e felizmente estão publicadas, pelo menos a sua grande maioria – são uma pequena maravilha!
Permita-me uma sugestão musical, já que gosta também de Jazz: “Julia Hulsmann – trio with Rebekka Bakken (outra excelente artista do género) - Scattering Poems”.
P.Rufino

Um Jeito Manso disse...

Olá Alice rodeada de alfazema,

Muito obrigada. À primeira vista concordo consigo mas, pensando melhor, por vezes as verdades estão muito bem escondidas, debaixo de teias complexas. No entanto, lá no fundo, o que está é sempre uma coisa simples. Ou seja, pensando bem, bem, dou-lhe razão, Alice.

Um abraço.

Um Jeito Manso disse...

Olá Isabel,

Muito obrigada. Foi um belo domingo de Páscoa, sim, rodeada pelos meus mais queridos (uma confusão, muito barulho, a casa virada do avesso, as crianças tiram tudo do sítio, mas é uma alegria, uma alegria enorme). Não posso pedir mais que isto.

Um abraço Isabel.

Um Jeito Manso disse...

Mary,

Começo por onde a Mary acabou ('descanse'). Pois... de facto, devia. Mas estou com tamanha dor nas costas que me parece que a melhor posição ainda é sentada numa cadeira dura como estou agora. Ontem já estava assim, tive que tomar um comprimido (coisa que em mim é rara). De manhã estava tão empenada que nem consegui ir dar a minha caminhada. Depois tive um dia daqueles, casa cheia, lotação esgotada. Mas há pouco, antes de cair a noite, casa sossegada, apeteceu-me ir passear e lá fui, devagarinho, e agora estou aqui só à espera de ir tomar outro comprimido que já lá não vai de outra forma. Amanhã tenho que estar boa. Mas até parece que a dor das costas já se espalhou, já me doem os joelhos, parece que me dói tudo.

Enfim. É capaz de ser a idade a mostrar-se para eu não pensar que sou mocinha nova...

Adiante. Descreve as suas qualidades e defeitos e era assim mesmo que eu a imaginava. A sua fotografia no seu 'perfil' mostra alguma secura na expressão pelo que não custa imaginá-la irritadiça e meiga ma no troppo. Mas deve ser mesmo uma pessoa directa, franca, sensível, bruta às vezes, frágil outras, apaixonada, teimosa. Ou seja uma verdadeira mulher latina, uma mulher de armas. Não mude que assim tem muita graça.

Quanto à perfeição eu também quero que os meus filhos não esperem perfeições da minha parte. Penso que gostam muito de mim mas riem-se e gozam entre eles das minhas 'coisas'...


Um beijinho e espero que, a si, os ossos já tenham dado tréguas.

Um Jeito Manso disse...

Caro P. Rufino,

Aprendo sempre consigo e os frequentadores aqui desta tertúlia certamente que também. E, só por isso, já eu tenho motivos para lhe agradecer.

Nunca fui a Auchwitz, acho que nunca conseguirei ir. O mal excessivo, pensado, frio, o desprezo continuado pelas outras pessoas, a maldade sem perdão, metem-me medo, causam-me um asco insuportável. Não conseguiria estar num sítio em que um mal tão visceral esteve à solta.

Houve uma altura em que li várias obras sobre o nazismo, sobre os campos de concentração. Acho que procurava uma explicação. Mas apenas ganhei um temor ainda maior. Não há explicação. E como podia a população permitir isto?

E penso também: pode ordenar-se a escravidão mais mórbida, assistir à crueldade mais abominável e, a seguir, ir para a casa, ver a menina a tocar piano, sentar depois a menina nos joelhos, fazer festas ao cãozinho, sentar-se à mesa, sorridente, marido e pai extremoso?

Fico doente quando penso nisto. Não percebo, parece que não pode ser gente normal. Mas era, era gente normal.

Olhe, também aprendi agora consigo que a Elise afinal pode ter sido Therese Malfatti, não fazia ideia.

Logo irei ouvir a música de que fala. Tomara que não seja daquelas que não dá para pôr aqui nos blogues. Cada vez mais há destas restrições. No outro dia queria pôr o Cheek to Cheek com a Ella Fitzgerald e o Louis Armstrong e não consegui, todas as versão estavam barradas. Ultimamente perco um tempão com isto, à procura de descobrir versões ou músicas que estejam disponíveis para inserção nos blogues.

Obrigada por tudo P. Rufino!

Maria disse...

Jeitinho amiga:
Parece que lhe peguei as maleitas dos ossos. Tenho conseguido aguentar as dores, sem comprimidos, porque o estômago dá-se mal com eles, mas acho, que não há articulação que não me doa.
Daqui a pouco, vou tentar deitar-me, mas as costas e as pernas, protestam.
Pode ser, que com a melhoria do tempo amanhã, nós melhoremos.
Beijinho e as melhoras dos ossos
Mary

Um Jeito Manso disse...

Mary,

Que coisa esta, até parece que já me doem também os pés, não sei que coisa é esta. Já tomei um comprimido e é dos que faz mal ao estômago, sim, mas da maneira que estou acho que isto não vai lá de outra maneira, que amanhã de manhãzinha já tenho que me pôr a caminho, a conduzir... Credo, que é isto? Uma artrite generalizada que apareceu do nada? Pensava que tinha sido um mau jeito a pegar numa das crianças mas não deve ser.

Espero que amanhã já esteja em forma. Espero que os seus vaticínios batam certo e que, como por milagre, já não me doa nada.

Beijinhos Mary e as melhoras também para si!