Não quero que pensem que isto sou eu a pôr-me em bicos de pés, nem quero que pensem que isto que vou escrever tem a ver comigo. Não. Tem a ver com ele. Eu entro nisto mas, em vez de mim, poderia ser qualquer outra.
Por isso, que não venham para cá com censuras ou bocas estapafúrdias nem por eu escrever isto nem por aquilo que vou relatar.
É daquelas coisas que de tão inocente e banal que é, nem seria digna de registo. Mas estando a festejar-se, e muito justamente, o centenário daquele que sempre será o nome maior da liberdade e da democracia do Portugal contemporâneo e tendo toda a gente alguma coisa a dizer, vou também arriscar.
[Nestes tempos de wokismos, puritanismos e cancelamentos, uma pessoa até tem medo de abrir a boca. Não é que isto de haver virgens ofendidas, beatas histéricas e totós encartados seja coisa de agora. Não. Sempre os houve. A questão é que ninguém os levava a sério e agora não apenas leva como meio mundo parece que tem medo deles.]
Mas, enfim, apesar de recear ser mal interpretada, ainda assim vou contar.
Eu teria acabado de fazer dezanove anos, creio. Ainda era verão ou, pelo menos, estava calor. Talvez fosse em Setembro. Lembro-me do que tinha vestido. Aliás, lembro-me de ter pensado que devia ter vestido calças pois andar de bicicleta com um vestido curto e justo era capaz de não ser grande ideia. Mas a combinação de irmos os dois andar de bicicleta ali no Campo Grande tinha acontecido já durante o dia e não tinha tempo de ir à Residência mudar de roupa.
Alugávamos bicicletas na Cidade Universitária e depois era a alegria de andarmos a sentir o ventinho na cara ali pelo Estádio Universitário, Jardim do Campo Grande e arredores.
Claro que ia sempre de credo na boca não fosse dar de caras com quem não devia, pois ia ter com o outro. Eu vinha dos lados do Marquês (acho que na altura ainda não havia estações mais para cima) e ele, o 'outro', ia da Alameda, e encontrávamo-nos lá, junto às bicicletas.
Tinha, pois, saído do metro na Estação do Campo Grande e ia a pé, com a ideia de que ainda me dava tempo para ir dar uma espreitadela rápida à 111.
Quando ia a passar ali mais ou menos à porta da Biblioteca Nacional, vejo o Mário Soares a vir com aquela sua passada descontraída.
Quando nos cruzámos, com um sorriso largo fez-me um cumprimento de cabeça e, com um ar bastante simpático, disse-me boa tarde. Retribuí, claro. E continuei. Mas fiquei admirada com a afabilidade do cumprimento. Voltei-me, então, para trás. E eis que o vejo também virado para trás, parado, a olhar para mim. Voltou a fazer-me um sorriso e um aceno com a cabeça.
Atrapalhada, quase se tivesse sido apanhada em falso, a olhar para trás, voltei-me para a frente e segui. Mas fiquei a pensar que o que eu tinha surpreendido tinha sido um homem a olhar para uma mulher.
Nada de mais, nada de mal. Mas achei piada. Na altura, ele era talvez o político mais relevante, mais influente, mais carismático do nosso País. E, no entanto, ali era apenas um homem. E ainda hoje, quando penso nele, relembro, de forma muito vívida, a expressão dele, o sorriso, o olhar, o aceno, naquela tarde ensolarada e feliz.
Todas as pessoas têm muitas facetas e ele certamente teria esta, a de gostar de apreciar a vida.
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